Kafka e o Estado Democrático de Direito

Defensores do Estado Democrático de Direito das mais diversas cores saudaram a decisão da 2a turma do STF de compartilhar os dados apreendidos na operação Spoofing com a defesa de Luís Inácio Lula da Silva.

O racional é o seguinte: todas as partes do processo precisam ter acesso aos mesmos dados. Se a PF, o MP e o juiz tiveram acesso aos vazamentos das conversas entre Moro e os procuradores, por que a defesa não haveria de ter? “Paridade de armas” é um dos pilares da justiça em um Estado Democrático de Direito, segundo seus defensores.

A confusão é grande aqui. Vamos focar apenas na questão formal, ou seja, na ação dos hackers em si. O conteúdo das mensagens e seu significado perde relevância diante da forma como foram obtidas, ainda que, em minha humilde opinião, não invalidem uma vírgula do processo contra Lula.

Imaginemos uma situação em que hackers invadam e sequestrem as comunicações entre Lula e o seu advogado de defesa, para deles obter vantagem. Em uma operação da PF, esses hackers são presos. O MP, então, entra no STF com o objetivo de ter acesso às conversas obtidas pelos hackers. O STF daria acesso em nome da “paridade de armas”?

Alguém poderia dizer que, neste caso, a relação entre réu e advogado é sagrada, e nada pode violá-la, enquanto a relação entre o juiz e os procuradores não é sagrada. No entanto, apesar de não sê-lo, a inviolabilidade da comunicação é princípio basilar em qualquer democracia digna do nome. No momento em que escutas não autorizadas servem como elementos em um processo, o sistema de justiça passa a ser terra de ninguém. Ou seja, inviolabilidade da comunicação também é sagrada, e só pode ser quebrada por ordem judicial em uma democracia.

O argumento de que todas as partes precisam ter acesso a todos os dados do processo é risível. As conversas entre o juiz e os promotores já eram de acesso destes ANTES dos hackers. Por definição. Afinal, são eles os autores das conversas. Imaginemos que os hackers não tivessem tido sucesso em sua empreitada. Qual seria a chance de êxito de uma injunção da defesa de Lula junto ao STF para ter acesso ao conteúdo dos celulares de Moro e procuradores? Nenhuma, por óbvio. E ninguém estaria aqui falando de “paridade de armas”. Quer dizer, foi a própria ação dos hackers que legitimou uma “prova” a ser usada no processo. É coisa de malucos. Ou mal-intencionados.

Do jeito que a defesa de Lula, os ministros do STF e todos os outros defensores do Estado Democrático de Direito colocam a coisa, parece que Lula é Josef K., personagem de Franz Kafka processado e condenado por crime não conhecido pelo próprio réu. Ora, Lula foi condenado por crimes bem conhecidos em processos abertos e com base em provas mais do que robustas, referendadas em duas instâncias adicionais à primeira. Alegar cerceamento de defesa ou parcialidade do juiz é somente mais uma chicana das inúmeras que nosso sistema de justiça é pródigo em oferecer a quem pode pagar bons advogados. A isso chamam Estado Democrático de Direito.

A importância dos partidos políticos

Um total de 1.216 candidatos concorreram nas eleições presidenciais norte-americanas: Joe Biden, Donald Trump e mais 1.214 candidatos independentes.

Surpreso com essa informação? Pois é. Quem está acostumado a ver apenas dois candidatos disputarem as eleições nos EUA, não imagina a quantidade de maluco que acha que pode ser presidente fora das máquinas partidárias dos partidos Democrata e Republicano.

Quem quer concorrer de verdade à cadeira no Salão Oval, submete-se ao escrutínio interno de um desses dois partidos, para, assim, poder contar com a máquina partidária trabalhando a seu favor. Uma campanha eleitoral do tamanho da americana envolve centenas de milhões de dólares, sem os quais não dá nem para começar a pensar em concorrer.

Pensei nisso quando vi as articulações entre Huck e Moro com vistas às eleições de 2022. Nenhum dos dois pertence a qualquer partido. E, mesmo assim, não são vistos como um dos 1.214 malucos que querem chegar à Casa Branca de forma independente. Pelo contrário: suas pretensões são levadas à sério pelos políticos e pela mídia.

Bolsonaro chegou ao poder em um partido de aluguel, ao qual não está mais afiliado. Nunca teve vida partidária, sempre foi um lobo solitário. A operação Lava-Jato desnudou um esquema de corrupção de tal envergadura, entranhada de tal forma nas máquinas partidárias e no financiamento eleitoral, que a ideia mesma de partido político tornou-se sinônimo de falcatrua. Bolsonaro surfou essa onda.

A questão de fundo, no entanto, é a seguinte: existe democracia sem partidos políticos fortes? Observando-se a experiência das maiores e mais estáveis democracias ocidentais, a resposta é um rotundo não. Ou, por outra: não temos experiência de democracias estáveis sem partidos políticos fortes.

O que é um partido? Um partido é um agrupamento de pessoas com ideias semelhantes e que trabalham de forma mais ou menos unida para chegar ao poder e implementar essas ideias. Um sistema de poder sem partidos fica refém de personalismos: o líder carismático, cuja palavra se torna lei.

No Brasil, temos dezenas de partidos políticos, assim como nos EUA, onde existem 52 partidos além dos democratas e republicanos. Apesar dessa miríade de partidos, somente alguns poucos realmente podem ter a pretensão de chegar ao poder máximo da República.

Um partido político não serve apenas para eleger o presidente. Há um sem número de cargos executivos e legislativos que formam a teia de sustentação de uma candidatura presidencial. Quer dizer, além do dinheiro, estamos falando também de apoio político para a campanha.

O fenômeno Bolsonaro foi único, em um momento particular da história brasileira. Pode até ser reeleito em 2022, com base em seus atributos pessoais, mas dificilmente fará o seu sucessor se não montar uma máquina partidária digna do nome. As dificuldades em montar o Aliança não autorizam muito otimismo nesse campo.

Achar que a democracia brasileira será uma exceção à regra das democracias ocidentais é uma ilusão. Aqui os partidos políticos continuarão a formar a infraestrutura do poder político. Bolsonaro já reconheceu esse fato implicitamente, ao liberar espaços para o Centrão em seu governo.

Huck e Moro, portanto, antes de pretenderem alguma coisa, precisarão encontrar partidos políticos que lhes deem base para a sua pretensão. Como disse acima, o fenômeno Bolsonaro foi único em um momento muito particular da história brasileira. Muito difícil se repetir, a não ser que outro fenômeno do porte da Lava-Jato ocorra novamente.

Uma verdadeira chapa de centro

“Conversa com Moro irrita aliados de Huck”.

Daí, você vai ler a reportagem, e o único “aliado” entrevistado é Flávio Dino, governador do Maranhão e “cotado” para compor chapa com Huck. A reportagem vai além, dizendo que Dino já defendeu publicamente a aproximação de Huck com Lula.

Estamos a 2 anos das eleições. Luciano Huck é apenas uma possibilidade eleitoral. Uma possibilidade remota. A esquerda sonhava com um cavalo de Tróia que a levasse de volta ao poder, e Huck podia fazer esse papel. Ao entabular diálogo com Moro, Huck desmancha ilusões.

O que é uma chapa de centro? Basicamente é uma que é vista como de esquerda por quem é de direita, e vista como de direita por quem é de esquerda. Huck e Moro desagradam bolsonaristas e lulistas. Talvez esteja nascendo aí uma verdadeira chapa de centro.

As ‘nossas causas’

Bolsonaro não apontou Sérgio Moro para o STF porque o ex-juiz não seria “leal às nossas causas”.

Fiquei curioso: que “causas” seriam essas?

As mais óbvias seriam a pauta de costumes e ideológica. Mas as principais lideranças evangélicas não se reconheceram na indicação. Então, não parece que sejam essas “as causas”.

As “nossas causas” poderiam ser, então, econômicas. O indicado seria um magistrado “terrivelmente liberal”. No entanto, não vimos o mercado soltando fogos, como seria o caso, por exemplo, se a indicação fosse do ex-presidente do TST, Ives Gandra.

Resta, então, a causa da luta contra a corrupção de alto coturno. Mas não, Kakai elogiou a indicação do conterrâneo de Ciro Nogueira. Não parece ser especialmente alvissareiro para esta causa.

Resta, então, a causa da Tubaína. As “nossas causas” se resumem a compartilhar um copo de Tubaína com o presidente. O ministro-tubaína saberá defender as “nossas causas” no momento certo.

A verdade da verdade de Lula

Publiquei o texto abaixo no dia 13/01/2018, em resposta a um vídeo da defesa de Lula, chamado “A verdade de Lula“. Trata-se da minha convicção a respeito da robustez das provas que levaram Lula à condenação em duas instâncias por unanimidade (as instâncias superiores apenas confirmaram a lisura do processo, não a adequação das provas).

Republico aqui porque são cada vez mais fortes os indícios de que a sentença do triplex será anulada por “parcialidade” do juiz Sergio Moro. Lula já apareceu ontem colocando sua candidatura para 2022, tão certo está de que a sentença será anulada.

O texto é longo, muito longo. Esse tipo de discussão não cabe em dois parágrafos. Não sou jurista, apenas procuro analisar textos e ligar fatos através de raciocínio lógico. É isso o que faço a seguir. Repito: a questão técnica já foi definida por um juiz e 3 desembargadores por unanimidade. Aliás, este texto foi escrito antes do julgamento do recurso da defesa no TRF-4.

O tempo é um agente corrosivo da História. As coisas vão ficando longe, indefinidas. Para mim, este texto serve como uma forma de manter a memória viva.


Textão para rebater a “falta de provas” no caso triplex.

Lula e o PT estão usando de todos os meios para constranger os juízes do TRF-4 e jogar a opinião pública, local e internacional, contra a justiça. Faz parte desse processo a produção de, digamos, “vídeos educativos”, inclusive em inglês, para jogar no nome do País ainda mais na lama. O mais longo e que lista os argumentos da defesa está no link abaixo. É útil assistir, pois Lula e o PT estão martelando, dia e noite, que “não há provas”. Então, ao assistir o vídeo, você poderá entender a fragilidade dos “argumentos” da defesa. Fiz aqui uma análise desses argumentos, até para que eu mesmo tivesse certeza de que não estou condenando um inocente. Afinal, uma mentira martelada mil vezes se transforma em verdade.

Argumento 1: competência. A defesa insiste em que Lula deveria ser julgado por um juiz de Brasília ou do Guarujá. O MP incluiu a ação de Lula no âmbito da operação Lava-Jato, pois ligou a propina distribuída pela OAS a 3 contratos com a estatal. A defesa usa em sua argumentação uma frase usada pelo juiz Sergio Moro na sentença dos embargos de declaração (íntegra aqui): “Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente.”

Análise do argumento 1: ora, a frase foi retirada do seu contexto. Na sentença aos embargos de declaração, o juiz complementa a frase acima com o seguinte: “Nem a corrupção, nem a lavagem, tendo por crime antecedente a corrupção, exigem ou exigiriam que os valores pagos ou ocultados fossem originários especificamente dos contratos da Petrobrás.” Vamos entender uma coisa de uma vez por todas nesse processo: está mais que provado que a OAS pagou propina para vencer a licitação das 3 obras citadas na ação. Isto é pacífico. Na outra ponta, resta provar duas coisas: 1) que o presidente Lula tinha ascendência sobre os operadores da Petrobras que receberam a propina e 2) que a OAS concedeu benefícios ao ex-presidente Lula. Ou seja, não se faz necessário que haja um “caminho do dinheiro” entre a contabilidade da Petrobras referente a estes 3 contratos e os gastos específicos com o triplex. O juiz deixa isso claro no item 199 da sentença: “dinheiro é fungível e a denúncia não afirma que há um rastro financeiro entre os cofres da Petrobrás e os cofres do ex-Presidente, mas sim que as benesses recebidas pelo ex-Presidente fariam parte de um acerto de propinas do Grupo OAS com dirigentes da Petrobrás e que também beneficiaria o ex-Presidente. Logo, a perícia seria inócua pois a acusação não se baseia em um rastreamento específico”.

Argumento 2: cerceamento de defesa. A defesa alega que o juiz negou a perícia judicial para 1) provar a propriedade do triplex e 2) se o mesmo estaria vinculado em garantia a operações financeiras de um fundo gerido pela Caixa. Neste segundo caso, esta vinculação provaria a propriedade do imóvel por parte da OAS, pois não se pode dar em garantia algo que não é seu.

Análise do argumento 2: na sentença (veja a íntegra neste link), o juiz Sergio Moro estabelece o raciocínio que irá derrubar a tese de que o apartamento não pertence ao ex-presidente. Vale a pena transcrevê-lo todo, pois é de uma clareza meridiana (itens 304 a 308): “Na resolução desta questão, não é suficiente um exame meramente formal da titularidade ou da transferência da propriedade. É que, segundo a Acusação, a concessão do apartamento ao ex-Presidente teria ocorrido de maneira sub-reptícia, com a manutenção da titularidade formal do bem com o Grupo OAS, também com o objetivo de ocultar e dissimular o ilícito. Então, embora não haja dúvida de que o registro da matrícula do imóvel, […] aponte que o imóvel permanece registrado em nome da OAS Empreendimentos S/A, empresa do Grupo OAS, isso não é suficiente para a solução do caso. Afinal, nem a configuração do crime de corrupção, que se satisfaz com a solicitação ou a aceitação da vantagem indevida pelo agente público, nem a caracterização do crime de lavagem, que pressupõe estratagemas de ocultação e dissimulação, exigiriam para sua consumação a transferência formal da propriedade do Grupo OAS para o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não se está, enfim, discutindo questões de Direito Civil, ou seja, a titularidade formal do imóvel, mas questão criminal, a caracterização ou não de crimes de corrupção e lavagem. Não se deve nunca esquecer que é de corrupção e lavagem de dinheiro do que se trata.” Por isso, o juiz não perdeu tempo com perícias inúteis: a titularidade é, sempre foi e sempre haveria de ser da OAS.

Com relação ao tal “fundo da Caixa Econômica”, o juiz, na sentença, também aborda este assunto, nos itens 813 a 818. Na verdade, o que ocorreu foi uma operação de crédito imobiliário comum na fase de construção de empreendimentos: a OAS hipotecou todos os imóveis do empreendimento (incluindo o triplex) para obter o financiamento para construir o prédio. Uma vez construído e vendidos os apartamentos, cancelou a hipoteca. No caso do triplex, a OAS bancou o valor do imóvel para levantar a hipoteca. Cai no mesmo caso anterior: a propriedade formal é da OAS, mas isso pouco importa para o crime de lavagem de dinheiro.

Argumento 3: o juiz teria condenado por crime diverso daquele pelo qual Lula foi acusado pelo MP. Ou seja, Moro teria “inventado” um crime. Este argumento se divide em duas partes: 1) o MP acusou Lula de receber benefícios em função de 3 contratos da Petrobras. Ou seja, um fato determinado. No entanto, o juiz teria admitido que “este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente.” Portanto, como não há dinheiro da Petrobras envolvido, não haveria como incriminar Lula nesta acusação. 2) Além disso, o MP, na acusação, teria afirmado que a OAS transferiu a PROPRIEDADE (grifo meu) do triplex para Lula. No entanto, como não se conseguiu provar esta transferência, o juiz usou o verbo “atribuir” o triplex a Lula, o que não consta, de maneira alguma, da acusação.

Análise do argumento 3: com relação ao item 1), é o mesmo que vimos no argumento 1 acima. Portanto, não vamos nos repetir como fez o advogado de defesa. O item 2) é mais capcioso. De fato, esta frase consta do número 180 da denúncia do MP (link aqui). No entanto, como sempre feito pela defesa, foi retirada do contexto. A denúncia continua: “Todavia, o apartamento não foi formalmente transferido para LULA e MARISA LETÍCIA porque tal estratagema foi arquitetado com a finalidade de ocultar e dissimular a origem, a movimentação, a disposição e a PROPRIEDADE (grifo meu) dos recursos utilizados para a aquisição da cobertura em favor de LULA e MARISA LETÍCIA, haja vista serem valores ilícitos oriundos de crimes de cartel, fraude a licitação e corrupção praticados pelos executivos da CONSTRUTORA OAS contra a Administração Pública Federal, notadamente a PETROBRAS. Tal estratagema também decorreu do fato de que LULA ainda estava por demais exposto como Presidente da República e, na medida em que o empreendimento ainda não estava concluído, não poderia ocorrer a transferência formal da propriedade da cobertura 164-A do Condomínio Solaris para o casal. Materialmente, contudo, a cobertura passou a ser de propriedade de LULA e MARISA LETÍCIA.” Por isso, o juiz usou o verbo “atribuir” na sentença, para significar a propriedade material (não formal) do apartamento por Lula. Aliás, no item 850 da sentença, o juíz diz: “Considerando então que o o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram proprietários de fato do apartamento 164-A”. Portanto, Moro também usa o termo “propriedade” na sentença, o que torna o argumento da defesa sem fundamento.

Argumento 4: não há “ato de ofício” específico praticado pelo ex-presidente e nem prova de que Lula tenha pedido especificamente o triplex como propina.

Análise do argumento 4: este é o argumento mais delicado. De fato, o grande problema da acusação é ligar Lula ao esquema de corrupção. Na minha opinião, o recebimento do triplex, mais do que provado, seria o suficiente. Afinal, porque receber um apartamento se não houve corrupção? No entanto, o MP e o juiz Sergio Moro são diligentes e não deixaram este item sem resposta. Para começar, no item 863 da sentença, o juiz Sergio Moro lembra que, de acordo com os artigos 317 e 333 do Código Penal, a existência de “ato de ofício” aumenta a pena, mas não é necessária para tipificar o crime de corrupção. De fato, diz o art. 333: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.” Portanto, o ato de ofício pode nem existir. No entanto, e isso é o principal, conforme o item 890 da sentença, a ligação de Lula com a corrupção da Petrobras está na nomeação e manutenção dos operadores da corrupção na empresa, conforme inclusive depoimento do próprio Lula, transcrito no item 838 da sentença. Este é o “ato de ofício” que liga Lula à corrupção. Fecha-se o círculo.

Quanto a ter pedido especificamente o triplex como propina, fica provado pelas reformas personalíssimas feitas no imóvel.

Argumento 5: a sentença diz que Lula teria praticado “atos de ofício indeterminados”. Pergunta o valente defensor: como pode alguém ser condenado por “atos indeterminados”???

Análise do argumento 5: a única menção da sentença a “atos de ofício indeterminados” ocorre no item 865. Transcrevo: “Basta para a configuração que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam.” Moro não afirma que os atos foram indeterminados. O que ele afirma é que, mesmo que fossem indeterminados, servem como contrapartida de pagamento de propina. Não há nada mais determinado do que a nomeação de diretores da Petrobras para facilitar a vida da OAS na empresa.

Argumento 6: a sentença tomou como base fundamental para condenar Lula o depoimento de Léo Pinheiro, que, sendo corréu da ação, prestou o depoimento sem o compromisso de dizer a verdade. Inclusive, Rodrigo Janot teria rejeitado o acordo de delação de Léo Pinheiro porque este não teria apresentado provas de suas acusações.

Análise do argumento 6: como diria Jack o estripador, vamos por partes. O argumento 6 se divide em 3 partes: 1) o depoimento de Léo Pinheiro foi base fundamental da sentença; 2) Léo Pinheiro não tinha compromisso de dizer a verdade e 3) Léo Pinheiro não apresentou provas de suas acusações. Vejamos.

1) A delação de Léo Pinheiro não foi base fundamental da sentença. O juiz Sergio Moro gasta praticamente metade da sentença (até o item 515) montando o arranjo de provas documentais e testemunhais (incluindo do próprio ex-presidente), antes de introduzir o testemunho de Léo Pinheiro. E este testemunho apenas corrobora o conjunto de provas.

2) O juiz alertou Léo Pinheiro de que, por ser acusado, não estava sujeito ao art. 342 do Código Penal (falso testemunho), mas responderia por “denunciação caluniosa” (art. 339 do CP) se prestasse informações inverídicas sobre terceiros. Ou seja, haveria um custo para o réu se este mentisse em relação ao papel de Lula.

3) Rodrigo Janot suspendeu o acordo de delação de Léo Pinheiro em agosto/2016 porque parte vazou para a imprensa, inclusive com a citação do nome do ministro Toffoli. Isto está amplamente noticiado, basta dar um Google. Não tem nada a ver com “falta de provas”. Aliás, provas do que Leo Pinheiro disse foram apresentadas. Por exemplo, a troca de mensagens nos celulares dos principais executivos da OAS sobre a reforma no triplex. Ou o fato do triplex ter sido a única unidade do edifício a nunca ter sido colocada à venda.

Argumento 7: “lawfare”. Este argumento não está no vídeo, mas incluí aqui porque é bastante comum ouvir os petistas falando em “perseguição política usando a justiça”. Então resolvi rebater este argumento também.

Análise do argumento 7: “lawfare” é a submissão do Poder Judiciário ao ditador de plantão, que o usa para perseguir seus opositores. Basicamente o que está acontecendo na Venezuela. No Brasil, os poderes são independentes, e o Presidente da República está longe de dominar o Judiciário. Muito pelo contrário, como pudemos ver nas duas denúncias de Rodrigo Janot. Então, não tem o mínimo cabimento falar em “lawfare”. A não ser para aqueles que insistem em culpar “a zelite” por tudo. As tais “zelite” e “setores reacionários da imprensa” estariam manipulando a justiça para perseguir Lula. Acho que não precisa responder a esta patacoada, né?

Enfim, pode ser que o TRF-4 absolva Lula. Afinal, os juízes podem ter outra interpretação sobre a culpabilidade do ex-presidente. Isto não mudará a minha convicção, amparada nas provas apresentadas pelo MP e acolhidas por Moro. Mas, ao contrário de Lula e dos petistas, respeitarei a decisão da justiça.”

Narrativas

Bolsonaro culpa o ex-ministro Sérgio Moro pelo desfecho da investigação sobre a tentativa de assassinato a faca durante a campanha.

Bem, há 4 meses temos outro ministro da justiça e chefe da PF. Por que o inquérito não foi reaberto? Ou seria essa mais uma afirmação sob medida para os que não podem viver sem uma teoria da conspiração? Daqui a uma semana completar-se-ão 6 meses desde que Bolsonaro prometeu “para amanhã” mostrar provas de fraudes nas urnas eletrônicas. Ficou o dito pelo não dito.

Talk is cheap, como dizem os americanos. Bolsonaro joga no ar afirmações ilógicas mas que apelam para os que têm resposta para tudo, pois tudo é sempre explicado a partir de uma grande conspiração contra o paladino da justiça.

Fica difícil entender como Bolsonaro ganhou eleições fraudadas, ou que interesse teria Moro em abafar investigações. Mas esses são detalhes menores. O que importa, no final, é manter a narrativa do herói contra tudo e contra todos, para consumo de sua grei.

Assim é se assim lhe parece.

Falta oposição

Destaco editorial do Estadão e duas notícias no mesmo jornal na página seguinte.

No editorial, o jornal pede candidamente que a oposição “se apresente”. Selecionei apenas o primeiro e o último parágrafos, que resumem a ideia. A angústia do editorialista é que, por mais que Bolsonaro não preencha o figurino do líder de que a nação precisa, não surge uma alternativa viável na oposição.

O diagnóstico do editorial está correto: é preciso um líder que “dialogue de verdade com a população”. Pois é. Para haver algum diálogo, é necessário que o interlocutor esteja disposto a ouvir. Não parece ser o caso da oposição a Bolsonaro.

Articular uma mensagem minimamente inteligível supõe não brigar com a realidade. Aqueles que poderiam ser a tal “oposição que se apresenta” fazem vista grossa para articulações no Congresso para burlar a Constituição (no caso da reeleição para as presidências das casas) e para a cada vez mais próxima suspeição de Moro no condenação de Lula.

Peguei esses dois casos particulares porque são notícia hoje, mas poderia fazer uma capivara muito mais longa com fatos que se acumulam e que justificam a eleição de Bolsonaro. Podemos dizer que as “instituições brasileiras” se esforçam para se auto dinamitarem. Bolsonaro é apenas o cara que dá risada quando tudo explode.

Concordo com o editorial do Estadão: a oposição precisa encontrar um discurso. Desde que esse discurso não colida com a realidade.

A imparcialidade em cheque

Eu poderia começar este post desancando os ministros do Supremo, dizendo que atendem interesses inconfessáveis de seus respectivos amigos. Mas não. Vamos nos ater à questão técnica, ou pelo menos lógica, já que não sou da área jurídica. Assumamos a boa fé dos ministros do Supremo, e consideremos que a suspeição de Moro se baseie em argumentos absolutamente técnicos.

A suspeição tem como pressuposto uma suposta parcialidade do juiz. Ora, para todo crime, é necessário que haja um motivo. Se não há motivo, o crime (se é que o há) nada mais é do que um erro, um acidente. Em um jogo de futebol, o juiz pode errar, e muitas vezes erra. Mas daí a acusá-lo de parcialidade há uma looooonga distância. Seria necessário encontrar elos que unam o juiz a um dos times. E não basta dizer que o juiz é torcedor de tal ou qual time. Precisa ter uma mala preta na jogada.

Voltemos ao caso de Moro. É possível (e até provável) que o juiz de Curitiba tenha errado. Afinal foram dezenas de processos complexos no âmbito da Lava-Jato. Mas daí a acusá-lo de parcialidade vai uma looooonga distância. Seria necessário que se encontrassem provas da tal suspeição. Caso contrário, temos apenas erros processuais, que podem ser corrigidos em instâncias superiores. Instâncias essas, aliás, que confirmaram a esmagadora maioria das ações de Moro.

Que a torcida chame o juiz do ladrão faz parte do jogo. Petistas e os neo-amigos de Bolsonaro do Centrão estão em seu papel político de levantar suspeitas com relação ao juiz que colocou o mundo político na cadeia. Coisa bem diferente é condenar um juiz por parcialidade. Para tanto, é preciso que o comitê de árbitros (no caso, o STF) julgue com base em provas. Caso contrário, o STF estaria se juntando à torcida, o que significaria o fim do Estado Democrático de Direito.

A caça às bruxas

A orquestração para enquadrar o combate à corrupção no mundo político se dá, agora, a céu aberto. Note que não falei “combate à Lava-Jato”. A Lava-Jato é apenas um grupo de trabalho que alcançou o maior sucesso nessa empreitada. É um exemplo a ser seguido, e é esse o problema. Por isso, é tão importante “vilanizar” a Lava-Jato: seu fim ignominioso servirá de exemplo para outras forças-tarefa.

Esta orquestração inclui desde advogados criminalistas, mui legitimamente defendendo os interesses de seus clientes, até políticos de todo o espectro ideológico, desde a esquerda ideológica até à direita bolsonarista, passando, obviamente, pelo centrão pragmático. Aliás, este combate somente está sendo possível a céu aberto porque Sérgio Moro tornou-se uma ameaça ao projeto reeleitoral de Bolsonaro. Fosse, por exemplo, Temer a liderar o processo, a máquina de produção de memes do bolsonarismo faria picadinho do ex-presidente. E com toda razão. Agora, essa mesma máquina está dedicada a moer a reputação de Sérgio Moro, o que agrega à batalha um exército considerável.

Mas não é sobre estes dois batalhões (advogados e políticos) que gostaria de falar a respeito. Há um terceiro grupo alinhado ao que se convencionou chamar de “combate ao lavajatismo”. Este grupo, mais disperso e mais intelectualmente honesto, é formado por aqueles que, legitimamente, temem a “criminalização” da atividade política, o que daria espaço para uma solução não democrática. Afinal, se a política é corrompida pela sua própria natureza, não há solução a não ser um regime de força liderado por um salvador da pátria. Aliás, vimos exatamente isto no primeiro ano do governo Bolsonaro. Escrevi neste espaço algumas vezes sobre a incapacidade do presidente de dialogar com o Congresso, uma atividade política normal em qualquer lugar do mundo. Sempre que escrevia sobre isso, bolsonaristas me lembravam que “diálogo”, no léxico político, significava roubalheira. Compreendi, então, que a atividade política estava interditada, pelo menos da parte do presidente. Este era o fruto amargo temido por aqueles que acusavam a Lava-Jato de criminalizar a política.

Abre parênteses: vivi para ver Bolsonaro beijando de língua políticos do Centrão, enquanto os mesmos bolsonaristas que antes chamavam a todos de ladrões, agora se dedicam a acabar com a reputação de Moro e da força-tarefa da Lava-Jato. A História exagerou na ironia dessa vez. Fecha parênteses.

Os que temem pela criminalização da política costumam se referir à força-tarefa da Lava-Jato como uma espécie de “seita religiosa”, cujos líderes se auto-atribuem status de messias, que vieram salvar a humanidade de toda a corrupção. De fato, Dallagnol e seus companheiros muitas vezes fizeram discursos colocando a corrupção como o maior mal do país, e colocando-se na posição de paladinos da justiça. Tenho uma certa prevenção natural contra todos os que se colocam como “a solução de todos os seus problemas”, mas, neste caso, entendo este discurso de dois modos.

Em primeiro lugar, e já disse isso aqui algumas vezes, não se combate a corrupção em altos escalões da República de maneira burocrática. É preciso ganhar a opinião pública e, para isso, é necessário alguma dose de espetáculo. Trata-se de uma exigência da própria dinâmica de combate a esse tipo de corrupção. Homens públicos escolhem essa carreira com todas as suas consequências, inclusive terem suas vidas devassadas em público.

Em segundo lugar, e isso me ocorreu hoje, todo mundo deve trabalhar por um ideal. Claro, trabalhamos pelo salário no final do mês, mas precisamos de um ideal. Caso contrário, a vida torna-se insuportável. Todos precisamos de um propósito para o trabalho que fazemos, senão, nada tem sentido. Os integrantes da força-tarefa da Lava-Jato têm o ideal de acabar com a corrupção nos altos escalões da República. Aqueles que os acusam de “messianismo”, na verdade prefeririam que se ativessem ao seu trabalho burocrático, com o objetivo de receber seu salário no final do mês. Querer “acabar com a corrupção”, segundo essas pessoas, seria coisa de “seita religiosa”, quando nada mais é do que o idealismo que empurra qualquer ser humano para frente. Sem isso, nada é feito.

Há, como em tudo o que é humano, uma linha tênue entre o certo e o errado. As pessoas, por sua própria natureza, dão valores diferentes para os diversos matizes de um problema. Nada é preto ou branco, tudo depende de como interpretamos e julgamos as coisas. Por isso, entendo a discussão saudável sobre os meios utilizados pela Lava-Jato.

Outra coisa são os resultados concretos que a Lava-Jato tem para mostrar: bilhões de reais devolvidos aos cofres públicos e condenações que sobreviveram a várias instâncias da justiça. Não concordo que os fins justifiquem os meios, de maneira alguma. Só não vi, até o momento, nada que a força-tarefa da Lava-Jato tenha feito que fosse, em si, ilegítimo ou ilegal. Pode-se não gostar de seu discurso. Mas é preciso mais do que isso para legitimar uma caça às bruxas.

O que realmente importa

Esqueçam as chamadas dos jornais sobre a última pesquisa Datafolha. O foco das manchetes foi sobre a possibilidade ou não de abertura de processo de impeachment, e o apoio ao ex-ministro Sergio Moro. Isso tudo importa quase nada.

O que importa, de fato, é a aprovação do governo. E essa continua no mesmo lugar que estava em dezembro/2019, última pesquisa Datafolha sobre a aprovação geral do governo Bolsonaro. Quatro meses atrás, a diferença entre ótimo/bom e ruim/péssimo estava em -6 pontos. Na última pesquisa, feita após o affair Moro e o desgaste com o Covid-19, a diferença estava em -5 pontos. Não mudou absolutamente nada.

Mas todos sabemos que a Datafolha é comunista. Vamos aguardar alguma pesquisa que seja idônea.