A economia brasileira na era PT. Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

O setor elétrico era a “especialidade” da presidente Dilma Rousseff. Tendo sido secretária de energia no Rio Grande do Sul e ministra das Minas e Energia no começo do governo Lula, essa era, definitivamente, a sua praia. E, como veremos neste episódio, a presidente tinha ideias muito firmes, convictas e erradas sobre como reduzir as tarifas de energia elétrica.

O setor elétrico é muito complexo. Entender exatamente como são formadas as tarifas de energia elétrica é coisa para profissionais. Por isso, aqui vou procurar simplificar bastante a explicação, de modo que a maioria dos leitores possa entender o que aconteceu. Peço antecipadamente desculpas para aqueles que entendem do setor, caso encontrem alguma simplificação excessiva. Saibam que foi para o bem do entendimento da maior parte dos leitores. O que vai a seguir foi em grande parte baseado na tese de doutorado de Diogo Mac Cord de Faria, Regulação Econômica da Geração Hidrelétrica, de 2016, junto à Escola Politécnica da USP, além de notícias do jornal Valor Econômico. Logo no primeiro ano do governo Lula, em dezembro de 2003, uma Medida Provisória inspirada pela ministra Dilma Rousseff mostrou a que veio o governo do PT no setor. Segundo reportagem de 12/12/2003, a MP (que depois seria transformada na Lei 10.848/2004) trazia uma série de alterações no funcionamento do setor, que fortalecia o papel das estatais em relação à iniciativa privada.

Mas foi durante o governo Dilma que a intervenção estatal no bom funcionamento do setor se mostrou em todo o seu esplendor. É o que veremos a seguir.

O uso da Eletrobrás como indutor de preços mais baixos nos leilões de energia elétrica

Além de todos os usos, digamos, menos ortodoxos que as estatais propiciam, o PT gosta de estatais, entre outras coisas, porque permite ao governo operacionalizar políticas econômicas de seu interesse sem custos aparentes, pois estes são, em um primeiro momento, absorvidos no balanço das empresas. Com a Eletrobrás não foi diferente: a empresa foi extensivamente utilizada em várias frentes, de modo a viabilizar a política definida pelo seu acionista majoritário.

Um primeiro exemplo foram os leilões de linhas de transmissão. Para que os linhões sejam construídos, é preciso realizar leilões, em que as empresas oferecem lances que possam remunerar os seus investimentos. Ocorre que, por fatores que não vamos explorar aqui, os critérios determinados pela ANEEL tornavam esses leilões, em geral, pouco atrativos para empresas do setor privado. Ao invés de ajustar os critérios, o governo decidiu utilizar a Eletrobrás para viabilizar esses leilões, obviamente, com prejuízo para a empresa.

Entre 2008 e 2012, apenas 5% dos leilões não tiveram lances, dando a impressão de grande sucesso do modelo. A partir de 2013, no entanto, grande parte das subsidiárias da Eletrobrás foi impedida de participar dos leilões por conta de atrasos nas entregas dos empreendimentos decorrentes dos leilões vencidos anteriormente. A partir daquele ano, quase 50% dos leilões passaram em branco, ou seja, não houve lances de nenhuma empresa. Em outras palavras, sem a Eletrobrás para sustentar os leilões, estes passaram a fracassar com muito mais frequência.

Um outro exemplo foi o leilão para a construção da Usina de Belo Monte, realizado em abril de 2010. O governo estabeleceu um preço teto bem abaixo da viabilidade econômica, e usou a Eletrobrás para garantir o “sucesso” do leilão. Reportagem do Valor Econômico no dia seguinte ao leilão mostra como o lance vencedor do leilão foi construído dentro do próprio governo, sendo que os parceiros privados do consórcio vencedor não ficaram exatamente felizes com o resultado.

Mas, de longe, a principal barbeiragem do governo Dilma Rousseff no setor elétrico foi a Medida Provisória 579.

A Medida Provisória 579

Antes de abordarmos a MP 579, vamos ver como a tarifa de energia elétrica é formada. Grosso modo, a tarifa é formada por impostos, encargos e remuneração das empresas prestadoras do serviço. No gráfico abaixo, reproduzido no Estadão no dia da publicação da MP 579, podemos observar que, em média, os impostos e encargos representavam, na época, 50% do custo, sendo os outros 50% a remuneração das empresas prestadoras do serviço (geradora, transmissora e distribuidora). Os impostos são, principalmente, o ICMS, enquanto os encargos são todos os penduricalhos que foram sendo agregados ao longo do tempo, e que servem para pagar alguma política pública. Aqui temos o programa Luz Para Todos, a energia de Roraima (que não está interligada ao sistema) e os subsídios aos painéis solares, entre outros.

A MP 579 eliminou alguns desses encargos, passando-os para o Tesouro e, indiretamente, reduziu o ICMS, pois este é cobrado sobre o valor da tarifa, e se o valor da tarifa é menor, o imposto também será menor. A redução das tarifas com a eliminação desses encargos da conta de luz seria da ordem de 7%. Muito pouco. O governo queria uma redução da ordem de 20%. Para isso, o grande pulo do gato foi mexer na remuneração das empresas. Acompanhe.

Assim como todo investimento em infraestrutura, o setor elétrico tem como característica um grande investimento inicial (seja em hidroelétricas, seja em linhas de transmissão), que depois será pago através da cobrança de tarifas, em um mercado sem concorrentes. Por isso, para entrar neste mercado, é preciso que a empresa interessada vença uma concorrência para prover o serviço, na qual a tarifa e os reajustes são combinados em contrato. Essa tarifa e a regra dos reajustes devem pagar o investimento inicial para construir a infraestrutura e as despesas da operação em si ao longo dos anos (salários, manutenção etc). No jargão do mercado, o investimento inicial é chamado de CAPEX (Capital Expenditure), enquanto as despesas de operação são chamadas de OPEX (Operational Expenditure). Para tornar o texto mais simples, vamos usar estes dois termos daqui em diante.

Uma grande parte das empresas de geração e transmissão de energia operavam com base em contratos de 20 anos assinados entre os anos de 1995 e 1997, ainda no primeiro governo FHC. Portanto, haveria uma grande necessidade de renovação desses contratos entre os anos de 2015 e 2017, em que provavelmente novos leilões seriam realizados. Qual foi a ideia genial de Dilma Rousseff? Antecipar a renovação desses contratos para 2012 por mais 30 anos. Para isso, essas empresas deveriam ser indenizadas pelo CAPEX realizado no passado e que ainda não havia sido coberto pelas tarifas cobradas no período. Foi aí que se deu o grande “pulo do gato”.

O governo tirou da cartola uma metodologia de cálculo dessas indenizações que prejudicaria fortemente as empresas do setor. No dia seguinte ao anúncio das medidas, as ações do setor protagonizaram um banho de sangue na Bovespa.

Claro, sempre podemos considerar que os contratos foram malfeitos no passado, e que as empresas estão recebendo mais do que deveriam. O problema é que contratos são contratos, e devem ser cumpridos. O governo Dilma Rousseff tentou diminuir a remuneração devida às geradoras e transmissoras através de um cálculo malandro do CAPEX, usando subterfúgios contábeis que não vem ao caso aqui explicitar e que podem ser consultados em detalhe no trabalho de Diogo Mac Cord de Faria citado acima. Aliás, se pudéssemos caracterizar o governo Dilma com uma expressão, essa seria “o governo das malandragens contábeis”.

Não à toa, a única empresa não pertencente ao governo federal que aderiu ao “plano” foi a Transmissora Paulista, que até hoje, 10 anos depois, está aguardando na fila para receber a sua indenização. Coube à Eletrobrás carregar o piano da MP 579 nas costas, o que fez com que a empresa perdesse totalmente a sua capacidade de investimento nos anos seguintes. A Eletrobrás fez o papel da Petrobrás na tarefa de reduzir preços administrados, às custas de sua saúde financeira. Talvez este seja um dos motivos pelos quais o PT declare tanto amor a essas empresas.

E não foi por falta de aviso. O maior investidor privado da estatal à época, o fundo norueguês Skagen, usou termos duríssimos para se referir ao que o governo havia feito, em uma carta ao embaixador brasileiro na Noruega.

A própria Eletrobrás, em documento interno, descreve o cenário de pesadelo que seria (e acabou sendo) a aceitação das condições da MP 579. Vale a pena ler um trecho.

O resultado foi uma queda expressiva das cotações da empresa. No gráfico a seguir, podemos observar a evolução dos preços da Eletrobrás, da CESP e da Cemig, as três em relação ao Ibovespa.

Observe a diferença de comportamento entre a Eletrobrás e as concessionárias de SP e MG, que não aceitaram os termos da MP 579 e não renovaram as suas concessões, mesmo ao preço do custo político de não “ajudar” a derrubar os preços da energia elétrica.

No final, a vitória foi de Pirro. Assim como a Petrobrás, a Eletrobrás foi quebrada para que se conseguisse uma redução dos preços da energia elétrica que não se sustentou no tempo. É o que podemos acompanhar no gráfico a seguir:

Observe como houve uma redução de quase 20% nas tarifas de energia elétrica em 2013, conforme prometido pelo governo. No entanto, este ganho já foi quase todo perdido no ano seguinte, e 2015 foi marcado por um tarifaço para compensar uma série de encargos que estavam corroendo o Tesouro. Foi como se o governo cobrasse uma conta atrasada, que havia deixado de cobrar para fazer populismo. No final de 2015 a conta já estava 50% mais alta do que no final de 2012, antes da MP 579. No final de 2021, a conta de luz estava 2,2 vezes mais cara do que no final de 2012. Descontando-se o IPCA do período, a energia elétrica está 30% mais cara do que antes da MP 579.

O problema dos altos preços da energia elétrica é muito complexo e não há canetada que dê jeito. Aliás, como vimos, canetadas somente agravam o problema, ao postergá-lo para o futuro. Porque a conta sempre chega. Sempre.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

Eletrobras ou não Eletrobras, eis a questão

As pessoas físicas poderão comprar ações da Eletrobras com o seu FGTS. Vale a pena?

O primeiro raciocínio é que qualquer coisa maior que TR + 3% é melhor que o FGTS. E qualquer investimento rende mais que TR + 3%. Portanto, valeria a pena comprar ações da Eletrobras com o FGTS.

No entanto, ainda está fresca na memória de muitos a catastrófica capitalização da Petrobras em 2010. Na ocasião, os detentores de saldo no FGTS também puderam participar. E ninguém que tenha participado guarda boas lembranças desse investimento.

Voltando um pouco no tempo, no ano 2000 o governo também abriu a possibilidade de comprar ações da Petrobras com o FGTS. Naquela época, o valor de mercado da empresa era por volta de R$ 50 bilhões. Dez anos depois, por ocasião da megacapitalização do PT, a empresa valia R$ 400 bilhões. O capital havia se multiplicado por 8, refletindo a descoberta do pré-sal, além de políticas macroeconômicas que levaram o país e a empresa ao grau de investimento. Olhando pelo retrovisor, muitos projetaram para o futuro o mesmo que havia acontecido no passado. Além disso, o risco era baixo, pois “qualquer coisa rende mais que o FGTS no longo prazo”.

O que se viu nos anos seguintes foi um circo de horrores, que levou o valor de mercado da Petrobras a encolher até R$ 85 bilhões no início de 2016, véspera do impeachment. Ou seja, para quem entrou em 2000, o investimento rendeu em linha com o FGTS. Já quem entrou em 2010 viu evaporar 80% do seu investimento em pouco mais de 5 anos. Nem criptomoeda perde tanto em suas maiores crises.

Voltemos à questão da Eletrobras. A diferença, neste caso, é que a Eletrobras vai ser privatizada, ao passo que a Petrobras continuou sob o controle do Estado. Espera-se que a gestão privada não arruine a empresa como foi o caso da Petro.

Mas tem um detalhe importante nessa história. O setor elétrico é um dos mais regulados da economia. As empresas dependem do cumprimento de contratos de longo prazo com o governo. Ainda está fresca na memória os prejuízos causados às empresas do setor pela MP 579, de 2013, em que o governo Dilma arbitrou preços fora da realidade para a renovação de concessões, com o objetivo de reduzir as tarifas de energia. Ok, na época somente a Eletrobras topou os termos do governo, levando a empresa a prejuízos bilionários. Com uma Eletrobras privatizada, o governo teria que pensar em outros truques.

E é aí que mora o perigo. O governo do PT sempre se mostrou muito criativo na hora de tungar investidores. Qual seria o coelho que um novo governo do PT tiraria da cartola para “baixar os preços das tarifas de energia”? O deputado do PT Jean Paul Prates, cotado para ser o ministro das Minas e Energia de um eventual governo do PT, já afirmou que essa privatização da Eletrobras seria revertida em um governo Lula. Claro, trata-se de mais uma afirmação incendiária que não vai acontecer, assim como tantas outras saídas da boca do próprio candidato.

Esse é o problema da desconfiança. Se os investidores, inclusive os detentores do FGTS, tivessem absoluta certeza de que não seriam vítimas de manobras ”espertas” do governo de plantão, estariam dispostos a pagar muito mais pelas ações da Eletrobras, e o governo arrecadaria muito mais com a venda. No entanto, como cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça, os investidores descontam no preço o risco de novas intervenções.

Em plantas de fábricas, é comum encontrarmos uma placa com os dizeres “estamos trabalhando há X dias sem acidentes”. Precisamos de décadas sem “acidentes de percurso” para que nossos ativos deixem de ser descontados pelo chamado “risco Brasil”, que é o risco de políticas econômicas que destroem valor. Infelizmente, o governo do PT zerou a contagem da placa, enquanto o governo Bolsonaro, com suas constantes investidas contra a diretoria da Petrobras, está se esforçando por zerar novamente.

A conta sempre chega

Por ocasião da aprovação do projeto de privatização da Eletrobras, os senhores parlamentares aproveitaram o ensejo para aprovar a construção de termelétricas movidas a gás em seus redutos eleitorais. Detalhe: sem infraestrutura de transporte do gás.

Daqui a alguns anos, os próximos parlamentares terão esquecido o custo adicional dessas termelétricas, e estarão reclamando da “insensibilidade” agência reguladora ao incorporar esse custo na tarifa.

Da mesma forma, os parlamentares atuais já se esqueceram dos custos acrescentados à conta de luz fruto do populismo de seus antecessores.

A conta de luz não é cara no Brasil por causa da “insensibilidade” da agência reguladora ou das distribuidoras, que têm o direito de terem seus contratos respeitados. A conta de luz no Brasil é cara por causa da “sensibilidade” de nossos parlamentares, que penduram benesses na conta de luz sem se preocuparem com quem vai pagar a conta. E a conta sempre chega. Sempre.

Pássaros

Ana Carla Abrão, ex-secretária de Finanças do Estado de Goiás, escreve artigo hoje comparando os opositores das privatizações no setor elétrico aos pássaros de Hitchcock. Perfeito.

O setor elétrico do governo Temer

Frete tabelado.

Fiscalização de preços nos postos de gasolina.

ANP impondo periodicidade de reajuste de preços à Petrobras.

O governo Dilma desorganizou o setor elétrico ao intervir no sistema de preços, e vamos pagar a conta ainda por muito tempo.

O setor de combustíveis é o setor elétrico do governo Temer.