Risco sistêmico e intervenção governamental: o capitalismo em cheque

Em toda crise bancária, é o mesmo lenga-lenga: quando a coisa pega, o sistema financeiro não sobrevive sem o socorro do governo. Neste momento, todo liberal-selvagem precisa ajoelhar no milho keynesiano, e admitir que, no final do dia, o capitalismo não sobrevive sem uma mãozinha do governo.

Mas será isso mesmo?

Para entender por quê essa imagem é falsa, precisamos entender o que é um banco.

Esqueça o banco que vende fundos de investimento e seguros. Isso aí qualquer um pode fazer. Vamos nos concentrar na essência da atividade bancária, que consiste em tomar dinheiro de um lado e emprestar do outro.

Antes de avançar, vamos distinguir o banco do mercado de capitais. No mercado de capitais, não existe a intermediação dos bancos. Quando você compra um título público, uma debênture, um CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários) ou um Fiagro (Fundo de Investimento no Agronegócio), você está emprestando dinheiro diretamente para uma empresa, conforme a figura 1. O banco pode até atuar como um intermediário, mas ele recebe uma comissão pelo serviço, nada mais. O seu risco é a empresa não conseguir pagar esse empréstimo. No mercado de capitais, a relação é direta entre o investidor e o tomador de empréstimo. Essa relação é representada por um título de dívida.

No sistema bancário, por outro lado, os bancos são os responsáveis por tomar os empréstimos e emprestarem para as empresas e para os indivíduos. É o que podemos observar na figura 2: você investe no banco, comprando CDBs, Letras Financeiras, Caderneta de Poupança, ou simplesmente deposita seu dinheiro na conta corrente. O banco, por sua vez, pega esse dinheiro e empresta para as empresas, assinando um contrato de empréstimo.

Qual a diferença do primeiro para o segundo esquema? Simples: no primeiro, o seu risco de crédito (de não receber seu dinheiro de volta) é o governo ou a empresa. No segundo, o seu risco de crédito é o banco. Pouco importa o que o banco vai fazer com o seu dinheiro, desde que ele seja devolvido quando devido. Vamos, então, examinar mais de perto como o banco funciona. Para tanto, veja a figura 3.

O banco recebe um capital inicial (no exemplo, são R$ 8. Com esse capital, o banco tem a permissão de tomar emprestado e emprestar R$ 100, segundo a regulação brasileira (isso é uma simplificação grosseira, só para entender o processo). Esse índice de 8% é o chamado Índice de Basiléia. Trata-se de uma regra prudencial, para limitar a alavancagem dos bancos. Porque, em tese, não haveria limite para o montante que os bancos poderiam tomar emprestado e emprestar. Só que, quanto maior for o montante, maior o risco. O capital mínimo serve justamente para cobrir o risco de inadimplência.

Imagine, por exemplo, que dos R$ 100 que o banco emprestou, receba de volta somente R$ 95. Os R$ 8 do capital seriam suficientes para cobrir esse prejuízo de R$ 5. Os acionistas precisariam capitalizar o banco em R$ 5 para retomar o capital mínimo prudencial, mas o pagamento dos credores (o pessoal que depositou dinheiro no banco) não dependeria dessa capitalização.

Agora, vamos ao exemplo concreto do Silicon Valley Bank, que quebrou nessa semana. Veja a figura 4 (os números são fictícios, somente para entender a natureza do problema).

O SVB recebeu depósitos dos seus clientes (na maioria, start ups de tecnologia) no valor de $ 100. Com esse dinheiro, comprou títulos, também no valo de $ 100. Até aí, tudo certo. No entanto, como sabemos, as taxas de juros subiram de quase zero para quase 5% no último ano. Quando isso acontece, esses títulos (todos com taxas prefixadas), se desvalorizam. No exemplo, se desvalorizaram 30%, o que não deve estar muito distante da realidade. Assim, ocorreu um descasamento entre ativos (os títulos que o banco comprou) e passivos (os credores do banco). Quando o banco anunciou que estava chamando uma nova capitalização (os $ 8 não seriam suficientes para cobrir o rombo), uma onda de desconfiança tomou conta dos depositantes (a maioria não coberta pelo FDIC, o FGC deles), o que causou uma corrida de saques, inclusive facilitados pela própria tecnologia embarcada nos celulares. Obviamente, não haveria dinheiro para todos, por causa do descasamento (havia $ 100 depositados, mas somente $ 70 em ativos), o que fez o Fed decretar o fechamento do banco, cobrir todos os depósitos com o seguro do FDIC e estender uma linha de crédito emergencial para todos os bancos que enfrentassem a mesma dificuldade.

É neste último ponto que se apegam os que acusam o capitalismo de funcionar apenas até a página 2. Quando o bicho pega, todo mundo corre para o colo do governo.

Ocorre que bancos não são um negócio como outro qualquer. Quando a Americanas apresentou um rombo de bilhões (ninguém sabe ainda o real tamanho, pois a empresa ainda não publicou balanço), o governo não saiu correndo para socorrer a empresa. O lugar da empresa de varejo que se vai é ocupado pelos seus concorrentes, e vida que segue. Os fornecedores terão perdas, os funcionários perderão seus empregos, mas é questão de tempo para que fornecedores e funcionários encontrem lugar na concorrência. E, mesmo que não encontrem, isso não coloca a economia como um todo em risco.

Banco, por outro lado, é um negócio diferente. Vejamos a figura 5.

Podemos observar que há uma espécie de teia ligando bancos, tomadores de empréstimos e depositantes. Um desses nós que porventura falhe pode causar um efeito dominó, em que outros pontos do sistema falham porque o nó anterior também falhou. Além disso, o sistema todo funciona na base da confiança: mesmo que não haja realmente um problema, se a desconfiança cresce, pode ocorrer uma corrida de saques que tem o potencial de desestabilizar todo o sistema. Foi basicamente o que ocorreu com o SVB. O Fed entrou para tranquilizar os depositantes, ao garantir que outros bancos do sistema não iriam seguir pelo mesmo caminho.

O sistema financeiro funciona como a corrente sanguínea no corpo humano. Qualquer interrupção em uma artéria importante pode levar a consequências sistêmicas, que podem terminar na morte de toda a economia. O crédito, que é o encontro entre tomadores e doadores de dinheiro, é a base de todo o sistema econômico capitalista. E esse sistema está baseado em uma teia sensível, alavancada, que só funciona na base da confiança.

Por isso, é necessário que, quando algum ponto desse sistema se mostre instável, a autoridade monetária do país intervenha, sob pena de retrocedermos séculos, para uma economia sem crédito. E porque precisa ser a autoridade monetária (governo) a intervir? Por que o sistema não consegue atingir estabilidade por si próprio? Simples: a emissão do dinheiro de um país é monopólio do governo. Portanto, é o governo que, em última instância, precisa garantir a confiabilidade do sistema monetário. Nenhum agente privado possui este poder. A moeda fiduciária é baseada na confiança dos agentes no governo. E este precisa agir quando o sistema se torna instável por qualquer motivo.

Isso não significa, obviamente, que, então, o governo deveria intervir em toda e qualquer âmbito da atividade econômica. Pelo contrário. A iniciativa privada, via de regra, produz melhor bens e serviços. E no caso dos bancos, empresta dinheiro melhor também. Mas, quando se trata de proteger o sistema financeiro e, em última instância, a economia, o governo é insubstituível por sua própria natureza de emissor e garantidor último da moeda. Daí a extrapolar para o conjunto da atividade econômica, vai uma distância estelar.

Talk is cheap

Ainda não vi nenhuma montadora reduzindo o preço dos seus veículos, vendendo com prejuízo, em “solidariedade” aos seus clientes. Talk is cheap, dizem os americanos.

Existe uma forma muito simples de solucionar esse problema: basta que o governo assuma o risco do calote. Os bancos, assim, serviriam apenas como meros conduítes dos empréstimos às empresas, podendo cobrar taxas sem o spread para compensar o risco do calote.

Mas daí, adivinha, os calotes seriam pagos por todos nós, em forma de mais dívida do governo e maior carga tributária. Nada contra, em momentos de emergência é preciso fazer isso mesmo. Mas exigir que os bancos assumam esse risco não parece ser o mais prudente.

A natureza da atividade bancária

Editorial do Estadão destaca a lentidão do governo e Congresso em responder às necessidades econômicas dos mais atingidos pela quarentena. E aproveita para dar uma estocada nos bancos, que não estariam fazendo nada para mitigar o problema. Provavelmente querem dizer que os bancos deveriam colocar a mão no bolso, engordado por anos de lucros bilionários, para agora ajudar os mais necessitados.

Bem, esse discurso é de quem não conhece a natureza da atividade bancária.

É preciso ter em mente duas características dos bancos: 1) são intermediários entre quem tem dinheiro e quem precisa de dinheiro e 2) trabalham alavancados, o que significa que têm uma parcela de capital próprio, mas o grosso de seus empréstimos é feito com dinheiro dos outros. Essa alavancagem é limitada pelo Banco Central, ou seja, os bancos não podem emprestar quanto dinheiro quiserem, mas apenas um certo número de vezes o seu capital próprio.

Pois bem. É líquido e certo que, no ambiente recessivo que estamos entrando, o calote vai aumentar. Se os bancos não se protegerem aumentando a taxa de juros dos empréstimos, esses calotes começarão a comer o seu capital próprio, limitando a sua capacidade de fazer novos empréstimos, pois o limite de alavancagem não permite. Isso só pioraria a situação.

Uma outra forma de baixar os juros seria os investidores (a outra ponta dos empréstimos) abrirem mão de seus rendimentos e até de parte do seu principal. Não vi nenhuma cobrança do editorialista a esse respeito, mesmo porque é sempre mais fácil pedir sacrifícios dos outros.

Alguns poderão insistir que os bancos geram lucros bilionários, e precisam dar a sua contribuição. Pode ser. Só é preciso calibrar bem essa contribuição. Se você acha que a desaceleração da economia está forte, experimente acrescentar uma crise bancária. O que estamos vivendo parecerá um passeio no parque.

Só a Caixa baixa juros – já vimos essa história antes

Tabela extraída do jornal Valor Econômico

A Caixa fez um movimento agressivo de redução de juros. Ao contrário de 2012, no entanto, aparentemente não obedeceu a uma ordem do governo, foi uma decisão empresarial. O BB não acompanhou, por enquanto.

Os grandes bancos privados não foram atrás, também por enquanto. A aposta da Caixa é de que taxas de juros menores diminuirão a inadimplência e, portanto, diminuirão as perdas do banco com esses empréstimos, mais do que compensando a queda das taxas. É uma estratégia, que pode dar certo ou errado.

Os grandes bancos só vão se mexer nessa direção se começarem a perder clientes para a Caixa. E,mesmo assim, talvez não se mexam. A estratégia da Caixa pode sofrer do fenômeno de “seleção adversa”: tendem a migrar para a Caixa primeiramente aqueles clientes com mais dificuldades para pagar suas contas. A Caixa fica com os clientes mais arriscados e com uma taxa de juros menor, enquanto os grandes bancos ficam com os clientes menos arriscados e com uma taxa de juros maior. Por que os grandes bancos evitariam este movimento?

Existe um pressuposto por trás desse movimento da Caixa que, desconfio, está equivocado: o de que as pessoas não pagam seus saldos devedores no cheque especial e no cartão de crédito porque os juros são muito elevados. O que de verdade acontece, na minha opinião, é que as pessoas que acumulam dívidas no cheque especial e no cartão é porque são descontroladas financeiramente. Juros menores somente abrirão mais espaço para essas pessoas gastarem mais, não pagar suas dívidas. No final, haverá dívidas maiores e a mesma dificuldade de pagamento.

O nível dos juros do cheque especial não está lá à toa, serve para compensar este risco. Se os grandes bancos não estão seguindo a Caixa, é bom ficar de olho: esses grandes bancos são sobreviventes em um país que já viu tudo quanto foi crise e que transformou o sistema bancário brasileiro em um imenso cemitério. Eles sabem fazer conta, mais do que um “forasteiro” que teve experiência somente com bancos de investimento, como é o caso do presidente da Caixa, Pedro Guimarães. Não estou dizendo que não possa dar certo, só estou alertando para um potencial rombo criado por essa estratégia, e que será pago pelo meu, pelo seu, pelo nosso. Como sempre.

Libra, a nova moeda do Facebook

A moeda do Facebook, que receberá o nome de Libra, começará a circular a partir do ano que vem.

Em princípio, nada demais. Trata-se de uma unidade de conta que poderá ser usada para adquirir produtos no ambiente virtual. Funciona mais ou menos como o dinheiro das festas juninas: você vai no caixa, troca seus reais pelo “dinheiro de festa junina” e, com esse “dinheiro”, compra a comida e os jogos na festa. A “moeda” só vale dentro daquele ambiente.

O desafio começa a surgir no estabelecimento da taxa de câmbio. Na festa junina, não tem dúvida: cada unidade da “moeda de festa junina” vale R$1,00. Sempre, por definição. Por outro lado, quantos reais (ou dólares, ou euros) valerá uma libra?

Em princípio, para não dar margem a arbitragens, cada libra deve valer o equivalente ao lastro que lhe deu origem. Ao contrário do Bitcoin, que não tem lastro, é um dinheiro criado “do nada” pelos mineradores, as Libras serão criadas em troca de dinheiro de verdade, moedas nacionais. Assim, digamos, por hipótese, que 100% das libras tenham sido criadas com o aporte de dólares. Ou seja, 100% das pessoas que foram no guichê do Facebook para comprar Libras, o fizeram com dólares. Neste caso, cada Libra vale US$1,00, com o FB funcionando como uma grande festa junina, em que os dólares são substituídos por Libras.

Mas, obviamente, o lastro não será formado somente por dólares. Haverá outras moedas, provavelmente em proporção à sua importância nas transações globais. Dólares e Euros deverão dominar, seguidos por ienes, libras esterlinas, francos suíços e iuans. A taxa de câmbio para Libras, portanto, deverá ser formada pela composição dessas moedas no lastro da Libra.

Mas isso só vai acontecer se houver ampla publicidade da cesta de moedas que forma o lastro da Libra. Caso contrário, estará aberta a possibilidade de arbitragens com alto potencial de lucro para quem possuir essa informação (o Facebook e o seu consórcio), comprando a cesta de moedas e vendendo Libras, ou vice-versa, a depender da distorção criada.

Por enquanto é isso. Como toda tecnologia, a Libra pode criar vida própria, assumindo papéis e facilitando processos que hoje não conseguimos visualizar, a ponto de substituir com vantagens as moedas nacionais. Quando a Internet foi criada, não passava de uma forma de comunicação interna dentro das universidades. Os seus criadores não imaginavam o seu potencial. Hoje, da mesma forma, a Libra não passa de “dinheiro de festa junina”. Mas o seu potencial ainda é desconhecido.

Cota de sacrifício

“Banqueiros também precisam de cota de sacrifício”.

Na verdade, quem vai dar a sua cota de sacrifício serão os tomadores de crédito, pois o imposto adicional será repassado ao spread bancário.