Lavagem de biografia

E continua o esforço de lavagem da biografia de Fernando Haddad, de forma a torná-lo palatável aos agentes econômicos. Hoje, temos um Haddad que criticou os dogmas da esquerda e condenou o sistema soviético. Como se isso, por si só, o transformasse no mais liberal dos petistas.

Vamos lá. Não posso opinar sobre sua monografia pois não consegui achá-la. O máximo que consegui foi o resumo na base de dados da USP, em que o futuro ministro da Fazenda afirma algo que nos é familiar: o sistema soviético não era socialista, era só uma forma primitiva de acumulação de capital. Só faltou usar o termo “real” (o sistema soviético não era o socialismo real).

Sabemos o que isso significa. O verdadeiro socialismo nunca foi implementado de verdade. Se tivesse sido implementado como manda o figurino, estaríamos no paraíso. Mas o sistema soviético desvirtuou o conceito e se perdeu.

Criticar o despotismo stalinista é bacana, mas chegou com 34 anos de atraso: Khrushchov já havia feito isso em 1956. Mas, antes tarde do que nunca. Eugênio Bucci, meu guru para assuntos das esquerdas, afirma que a tese de Haddad foi corajosa, porque “desafiou os dogmas da esquerda”.

Só se for da esquerda tupiniquim, que estava, para não variar, algumas décadas atrasadas em relação ao que acontecia no mundo.

Haddad escreveu a sua tese em 1990, depois, portanto, da queda do muro de Berlim. Naquele momento, apontar para os problemas do sistema soviético era fácil, e até necessário para livrar a cara do socialismo real. Isso, obviamente, não torna Haddad um champion da economia capitalista, como quer sugerir reportagens como as de hoje. Suas ideias sobre como funciona a economia continuam tão retrógradas quanto as de Dilma Rousseff e outros economistas do PT.

A nossa esperança é que Lula cumpra a sua promessa e seja ele mesmo o responsável pela condução da política econômica. A que ponto chegamos.

Whataboutism

O “whataboutism” é uma forma de argumentação que lança mão do oposto para relativizar a gravidade de uma condenação, apontando uma suposta hipocrisia do interlocutor. Por exemplo, “e o PT?” virou o meme de uma clássica resposta whataboutista para críticas ao governo Bolsonaro. Como se cada crítica a cada ator político precisasse ser sempre acompanhada de uma crítica igualmente virulenta ao seu campo oposto, sob pena de o crítico ser tachado de petista ou bolsonarista, a depender do lado da crítica.

Ontem, as redes foram invadidas de “whataboutism” com respeito ao affair Monark/nazismo. A crítica mais comum era a falta de igual condenação ao comunismo, que também foi responsável pela morte de milhões de pessoas inocentes. A pergunta que as pessoas se fazem, e que foi verbalizada por Monark e pelo deputado Kim Kataguiri, é porque um partido comunista é legal em vários países, inclusive no Brasil, e um partido nazista não o é. A porca torceu o rabo quando os dois avançaram o sinal, e sugeriram que um partido nazista deveria também ser legalizado.

Não vou aqui entrar no mérito dessa sandice, já objeto de meu post de ontem. Meu objetivo é procurar entender porque existe essa diferenciação de tratamento entre o comunismo e o nazismo. Que fique claro, desde o início, que o que vai a seguir é uma análise da realidade como ela é, não como eu particularmente gostaria que ela fosse, ok?

Para essa análise, será útil artigo de Eugênio Bucci publicado hoje.

Bucci é o arquétipo do intelectual de esquerda, e o que ele escreve é bastante útil para entender o que vai na cabeça desse pessoal. Hoje, o professor da ECA comenta o affair Monark/nazismo desde o ponto de vista do esquecimento da História. O jovem Monark seria o representante de uma geração que, esquecendo as lições da História, tende a repetir suas barbaridades. E é o canal por onde o fascismo, o grande inimigo da história, ressurge. Para ilustrar a sua tese, Bucci usa como exemplo o último filme de Almodóvar, Mães Paralelas. O trecho em destaque abaixo mostra duas mães, uma querendo se livrar de sua família “burguesa”, a outra, procurando o túmulo do bisavô morto pelo franquismo. Para Bucci, a História tem somente um lado: o fascismo, representado aqui pela burguesia e pelo franquismo, é o inimigo. No entanto, mais útil do que enfurecer-se com essa clara preferência por um dos lados da disputa, é procurar entender o por quê dessa preferência.

Pode ser uma imagem de texto que diz "mesmas: Ana (Milena Smit) quer se libertar da família bur- guesa, enquanto Janis (Penélo- pe Cruz), mais velha que a com- panheira de quarto, está empe- nhada em encontrar o lugar em que foi sepultado o seu bisavô, executado na Guerra Civil por tropas do franquismo. A partir daí, as verdades íntimas de cada uma delas se descortinam em paralelo com os fatos históricos que vão sen- do exumados. A subjetividade irredutível de Ana e Janis vai ganhando consistência no mesmo ritmo em que os cri- mes contra a humanidade são dados à luz."
Pode ser uma imagem de texto que diz "E o que é que não se cala? Ο fascismo. Dia desses, um rapaz -que dizem ser famoso nas re- des sociais defendeu publica- mentealegalização de um parti- do nazista no nosso País. É recalcado que retorna, nos bra- ços da ignorância e do esqueci- mento da história."

A crítica à existência do partido comunista, que mereceria a lata de lixo da história onde está o partido nazista, se resume a números. O comunismo foi também responsável por milhões de mortes de inocentes. Nesse campeonato macabro, deixa o nazismo no chinelo. Desculpem-me, mas quem usa esse argumento está errando o alvo de longe. Como teria dito Stálin, uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística. Para a narrativa, o que importa não é o número de mortes, mas as circunstâncias que levaram a essas mortes.

Por essa narrativa, o comunismo matou traidores da revolução: os chamados “inimigos do povo” e os kulaks, a burguesia da época. Passou um pouco da medida, é verdade, mas a sua intenção era boa, implementar uma sociedade nova, em que todos fossem iguais. Já tive a oportunidade de resenhar o livro “Sussuros – A vida privada na Rússia de Stálin”, onde isso fica bastante claro. Nada a ver, portanto, com o nazismo, que montou uma máquina de extermínio contra minorias étnicas.

O partido comunista, portanto, continua sendo o porta-voz desse ideal de uma sociedade nova. Teria abandonado os métodos stalinistas, canalizando a sua luta dentro da lei. Os milhões de mortos em suas costas foram como que um acidente de percurso, algo que não deveria ter ocorrido, mas que não é suficiente para nublar o futuro radioso que nos espera.

Na verdade, o partido comunista ser ou não legal é irrelevante, diante do zeitgeist que permite a uma Marilena Chauí gritar, para quem quiser ouvir, que “odeia a classe média”, a burguesia. O fato de ela mesma, e Eugênio Bucci, serem classe média, não os impede de colocar-se ao lado do “bem” contra o “mal”. E o mal é tudo aquilo que se opõe a um “outro mundo possível”.

Desse modo, não é de se estranhar que o partido comunista seja legal. Eles estão do lado do bem, do belo e do justo, mesmo que, para isso, tenham empilhado cadáveres ao longo da história. Se alguém defendesse que o nazismo tinha uma boa intenção, e teve que lidar com “inimigos do povo” (os judeus eram assim considerados), certamente seria tachado de genocida. O comunismo, no entanto, conta com essa licença poética, fomentada e compartilhada por uma intelectualidade que não consegue lidar com as “injustiças” criadas pelo “capitalismo burguês”.

Uma última observação, na forma de conselho: evite o whataboutism. Essa é uma argumentação que relativiza o outro lado, por mais que se coloque disclaimers avisando que também não se concorda com o outro lado. Se for necessário, escreva dois textos, um para condenar um lado, o outro para condenar o outro lado. Colocar as duas condenações juntas separadas por um “mas” inevitavelmente diminuirá a importância ou, até mesmo, inocentará o que vem antes da conjunção adversativa. Foi o que Monark sentiu na pele.

Sussurros – A Vida Privada na Rússia de Stálin

O livro Sussuros – A vida privada na Rússia de Stálin (Editora Record, 824 páginas) é um alentado apanhado de como pessoas comuns viviam na União Soviética dominada por Josep Stálin. Tendo como base centenas de documentos, entre cartas e diários, além de entrevistas com os sobreviventes da época, o autor, Orlando Figes, professor de história da Universidade de Londres, traça um quadro inédito de uma história já conhecida. A Revolução Bolchevique, o Terror Stalinista, o Gulag e a participação da URSS na 2ª Guerra são descritos não do ponto de vista do grande enquadramento que estes eventos tiveram na história das nações, mas como cidadãos comuns os viam.

Muitas vezes tendemos a simplificar a história dentro de esquemas mentais que nos ajudam a entender problemas complexos. O stalinismo é um desses casos: um ditador sanguinário que dominava, através do terror, todo um povo. Este é o resumo. Mas há nuances importantes, que, se ignoradas, podem abrir caminho para a repetição da experiência, com outros nomes e em outro contexto. Pois se é óbvio que um ditador totalitário seria rechaçado por qualquer pessoa de bom senso, também é verdade que Stalin dominou a URSS com o beneplácito da maior parte do povo. Como? Por quê? O foco na vida privada das pessoas comuns traz a vantagem de observar como o homem comum absorvia e, até certo ponto, aderia a essa realidade. É este, na minha visão, o ponto mais interessante do livro.

Figes faz um levantamento cronológico dos anos da Revolução Soviética, desde 1917 até os dias atuais. Mas a sua narrativa não é linear: os aspectos importantes se repetem ao longo da obra em diferentes contextos. Neste resumo, procurarei destacar os temas mais relacionados com a dominação ideológica da revolução e, posteriormente, do partido, sobre os cidadãos soviéticos. Para ilustrar, copio trechos do livro que ilustram as ideias. Todos os trechos copiados estarão em itálico.

O Novo Homem

Comecemos pelo grande conceito por trás da revolução bolchevique: a construção do Novo Homem, aquele purificado dos vícios trazidos pelo capitalismo. Como escreveu Máximo Gorki na primavera de 1917, “a nova estrutura da vida política exige de nós uma nova estrutura da alma”

Vê-se que a ambição não era pequena. Tratava-se de mudar a alma humana. Para isso, foram muitos os instrumentos utilizados. O compartilhamento de apartamentos comunais, por exemplo, para além do seu objetivo econômico, serviria também para moldar o “novo homem”: “forçando as pessoas a compartilhar apartamentos comunais, os bolcheviques acreditavam que poderiam transformá-las em comunistas em seus pensamentos e comportamentos básicos”.

O próprio Gulag, além de servir como punição para “traidores do regime”, era visto como um campo de “remodelação” (prekovka, em russo) de seres humanos: “está ocorrendo uma reformulação maravilhosa (prekovka) de pessoas aqui: todos os prisioneiros retornam ao continente como trabalhadores qualificados, alfabetizados e conscientes”.

Nesta tarefa de remodelar o Homem, o comunismo substituía a fé religiosa. Um depoimento, nesse sentido, chamou-me a atenção: “o que mais temíamos”, lembra-se Kopelev, “era perder a cabeça, ter dúvidas ou pensamentos heréticos e perder nossa fé sem limites.”

Claro que uma remodelagem do ser humano deveria começar nas escolas, com as crianças e jovens. Para isso, havia duas organizações para os mais jovens. As crianças entravam nos Pioneiros, enquanto os adolescentes e jovens ingressavam na Komsomol. O juramento dos pioneiros deixava bem claro o objetivo: “Eu, um Jovem Pioneiro da União Soviética, diante de meus camaradas, juro solenemente ser verdadeiro aos princípios de Lenin, defender com firmeza a causa de nosso Partido Comunista e a causa do Comunismo”

No Komsomol, organização para adolescentes e jovens, a doutrinação era mais pesada, com os jovens tendo que, eventualmente, renunciar a seus pais “traidores”. O seguinte trecho ilustra o ponto: “Ela ingressou na Komsomol, apesar de ter sido avisada de que seria forçada a renunciar aos pais antes de ser aceita, passando a participar de suas atividades, que consistiam basicamente em fazer delações estridentes contra “inimigos do povo” e em cantar músicas de gratidão a Stalin e ao partido em grandes reuniões e marchas”.

Claro que o “novo homem”, sendo puro, deveria ser separado dos impuros. Esta divisão do mundo está presente em muitas passagens do livro.

“Nós, comunistas, somos especiais”, disse Stalin em 1924. “Somos feitos de matéria-prima melhor…”

Nesta linha, um depoimento resume o ponto: “Vivíamos por acreditarmos na felicidade futura de nossa sociedade, não pela satisfação de nossas próprias necessidades. Havia uma pureza moral em nosso estilo de vida”

Essa busca pelo “homem perfeito” forçosamente desembocaria na purificação forçada da sociedade. Dois eram os inimigos a serem eliminados: do ponto de vista econômico, os “kulaks” (fazendeiros) e, do ponto de vista político, os “inimigos do povo”.

Uma passagem chamou-me a atenção por me lembrar de um episódio de Black Mirror, em que soldados usavam capacetes que os faziam enxergar pessoas comuns como monstros a serem eliminados. Essas pessoas eram chamadas de “baratas”, e os soldados as eliminavam com prazer. O trecho é o seguinte: “Fomos treinados para ver os kulaks não como seres humanos, mas sim como vermes, piolhos, que precisavam ser destruídos”.

Em “A Lista de Schindler”, um oficial nazista conversa com uma prisioneira por quem sente atração sexual. Em determinado momento, diz algo assim: “eu sei que você não é uma pessoa, você é uma coisa”. O primeiro passo de um sistema totalitário é desumanizar o inimigo. Nós somos o povo puro, a raça pura, o resto simplesmente não é humano.

É óbvio que um resto de humanidade restava e se revoltava por dentro. No entanto, a ideia de estar fazendo a história era mais forte, como podemos observar no depoimento abaixo, de um funcionário do partido responsável por confiscar grãos e propriedades dos kulaks:

“Era excruciante ver e ouvir tudo aquilo. E era ainda pior estar participando… E eu me persuadia, explicava a mim mesmo. Eu não deveria ceder à piedade debilitante. Estávamos realizando uma necessidade histórica. Estávamos desempenhando nosso dever revolucionário. Estávamos obtendo grãos para a pátria socialista, para o Plano Quinquenal”.

A perseguição aos “inimigos do povo”, por outro lado, teve uma característica diferente: enquanto os “kulaks” eram uma espécie de “inimigo externo”, os inimigos do povo eram o “inimigo interno”. Literalmente qualquer cidadão poderia ser considerado um “inimigo do povo”. Isso levou a números realmente espantosos, no que se convencionou de chamar de Terror, que merece um capítulo à parte.

O Terror

116.885 membros do Partido foram executados ou presos entre 1937 e 1938.

O sistema Gulag se expandiu num vasto império industrial, com 67 complexos de campos, 10 mil campos individuais e 1.700 colônias, empregando uma força de trabalho escravo de 2,4 milhões de pessoas em 1949 (comparada a 1,7 milhão antes da guerra)

A partir de abril de 1935, quando foi aprovada uma lei reduzindo a idade de responsabilidade criminal para 12 anos, o número de crianças no sistema do Gulag começou a aumentar constantemente, com mais de 100 mil crianças entre 12 e 16 anos condenadas pelas cortes e pelos tribunais por ofensas criminosas nos cinco anos seguintes.

Estes três trechos do livro resumem a grandiosidade do Terror da União Soviética de Stálin. Mas este não é, nem de longe, o principal aspecto desse período. O aspecto mais chocante, e que inspirou o título do livro, é o estado de espírito da sociedade soviética. Qualquer um poderia ser um “inimigo do povo”, e a forma de provar a fidelidade ao partido era denunciar um “inimigo do povo”, mesmo que este fosse um parente ou amigo próximo. Qualquer palavra mal colocada poderia ser interpretada como uma falta de fidelidade. Assim, as pessoas evitavam conversar em voz alta e falavam aos sussurros.

São vários os depoimentos nesse sentido ao longo do livro. Mas uma das mais chocantes foi a história de Pavlik, um garoto dos Pioneiros que denunciou o próprio pai. Criou-se uma espécie de culto em torno do menino, um exemplo a ser seguido. Figes descreve o episódio da seguinte forma:

“O culto estava em todos os lugares. Histórias, filmes, poemas, peças, biografias e canções retratavam Pavlik como o Pioneiro perfeito, um leal vigilante do partido dentro de casa. Sua coragem abnegada, a qual demonstrara ao sacrificar o próprio pai, foi promovida como um exemplo para todas as crianças nas escolas soviéticas. O culto teve um impacto enorme nas normas e sensibilidades de toda uma geração de crianças, que aprendeu com Pavlik que lealdade ao Estado era uma virtude maior do que amor familiar e outros laços pessoais. Por meio do culto, foi semeada em milhões de mentes a ideia de que acusar os próprios amigos ou parentes não era vergonhosa, mas sim uma questão de espírito público. Esperava-se realmente que o cidadão soviético agisse assim.”

Claro que este clima não poderia deixar de influenciar muito negativamente as relações sociais. Segundo Figes, “as pessoas deixaram completamente de confiar umas nas outras”, pois “… estavam ficando tão habituadas a ocultar o sentido do que diziam que corriam o risco de perderem totalmente a capacidade de dizer a verdade”. Portanto, “com o final da comunicação genuína, a desconfiança espalhou-se pela sociedade”.

Isso teve implicações, obviamente, também no campo familiar. Segundo Figes, “a grande ruptura gerou uma nova sociedade na qual as pessoas eram definidas pela relação que mantinham com o Estado”. Nessa linha, já em 1927, Anatoly Lunacharsky, um dos teóricos do partido, escreveu: “A dita esfera da vida privada não pode nos escapar, porque é precisamente nela que o objetivo final da Revolução deve ser alcançado.” Isso vai em linha com a construção do “novo homem soviético”.

A captura da esfera privada não seria completa se o mais recôndito do ser humano também não fosse capturado: a sua própria consciência.

O Partido e Stálin acima de tudo

O aspecto mais impressionante de 1984 não era o Estado onipresente ou a manipulação da verdade. O mais chocante foi a transformação da consciência do protagonista. Não bastava que o sistema eliminasse o inimigo. Não bastava a obediência ao Partido. Isso era necessário, mas era pouco. O sistema buscava a adesão total. Assim, o protagonista, antes de ser fuzilado, reconhece que “amava o Grande Irmão”. Estava completa a captura da consciência.

O livro Sussurros está cheio dessas passagens, em que as vítimas do Terror, por mais inocentes que fossem (e a grande maioria o era), acreditavam, de alguma forma, que o Partido tinha razão. Vou citar alguns trechos que traduzem a ideia:

“Defender-se era acrescentar mais um crime à lista: discordância com a vontade do Partido. Isso explica por que tantos bolcheviques se rendiam aos seus destinos nos expurgos, mesmo quando eram inocentes dos crimes pelos quais eram acusados”.

“Era até possível convencer essas pessoas que, para o bem da Revolução, precisavam confessar que eram espiões. E muitos foram convencidos e morreram creditando na necessidade revolucionária de fazê-lo”.

Os membros da elite bolchevique eram particularmente passivos diante da possibilidade de serem presos. A maioria fora tão doutrinada pela ideologia do Partido que a ideia de resistir era facilmente superada pela necessidade mais profunda de provar sua inocência diante do Partido”.

“… a maioria dos comunistas convictos precisava preservar a qualquer custo sua fé na União Soviética. Renunciar a ela estava além de suas capacidades”.

As prisões de Stalin estavam repletas de bolcheviques que continuavam acreditando que o Partido era a fonte de toda a justiça. Alguns confessaram ter cometido os crimes pelos quais eram acusados simplesmente para preservar essa fé”.

E, como um eco do final de 1984, Figes conta as últimas palavras de um membro do Partido antes de ser fuzilado: “Vida longa ao Partido! Vida longa a Stalin!

Não à toa, a morte de Stálin causou comoção em toda a Rússia. “Multidões enormes foram prestar suas homenagens. O centro da capital foi tomado por pessoas de luto, que haviam viajado até Moscou de todos os cantos da União Soviética; centenas delas morreram esmagadas”.

Até hoje, a era stalinista é vista com nostalgia.

Um paradoxo semelhante permeia a nostalgia popular por Stalin, que, mais de meio século após a morte do ditador, continua a ser sentida por milhões de pessoas, inclusive muitas de suas vítimas. […] em janeiro de 2004, 42% das pessoas queriam ver o retorno de um “líder como Stalin” (60% dos entrevistados com mais de 60 anos eram a favor de um “novo Stalin”)”.

Figes recolhe um depoimento que resume esse sentimento: “Sim, meu pai sofreu, como tantos outros também, mas Stalin ainda foi melhor que qualquer um dos líderes que temos hoje. Ele era um homem honesto, mesmo que as pessoas em volta dele não fossem”.

Concluindo

O livro cobre vários outros tópicos interessantíssimos, como os impactos econômicos da coletivização, o papel da guerra no moral do povo soviético, o papel da arte engajada e muitos outros. Um resumo completo mereceria outro livro.

Concluo no mesmo ponto em que iniciei este resumo: a ditadura de Stálin só foi possível porque grande parte do povo aderiu ao projeto da Revolução Bolchevique. Tudo era função de um grande projeto de um mundo novo, melhor e mais justo. Como Stálin costumava dizer, não se faz omelete sem quebrar os ovos.

Alguns dirão que Stálin desvirtuou o verdadeiro sentido da revolução bolchevique. Eu direi que Stálin foi a consequência necessária de um sistema que pretendia criar o mundo perfeito. O simples fato de que o meu mundo perfeito não é igual ao seu mundo perfeito faz com que seja impossível a criação de tal mundo. Portanto, qualquer projeto nesse sentido resultará necessariamente em um sistema totalitário. Stálin não foi um acidente de percurso.

A Yalta tupiniquim

É a segunda vez que vejo referência ao fato de Chruchill ter se aliado a Stálin para vencer Hitler como um exemplo a ser seguido para vencer Bolsonaro. E de pessoas que respeito. Mas, com toda a vênia, parece-me que a comparação traz um problema sério.

Pra começo de conversa, não custa lembrar que Stálin e Hitler celebraram um pacto de não agressão, o que deixou Hitler com as mãos livres para fazer sua campanha na Europa. Pior: Stálin pegou carona na invasão da Polônia e tomou sua parte no butim.

Stálin só procurou Churchill depois de ser traído por Hitler. Se não fosse a megalomania de Hitler, além de seu erro de cálculo, pois esperava que a Inglaterra não se intrometesse em sua invasão à URSS, Stalin teria repartido a Europa com Hitler, não com Churchill.

Churchill aceitou aliar-se a Stálin porque a guerra era contra Hitler. Mas sabia que se tratava de um aliado pouquíssimo confiável. O pós-guerra mostrou quanto: Stálin impôs seu regime totalitário a metade da Europa. A história de que a aliança Churchill-Stalin libertou a Europa de um regime totalitário é meia-verdade: vale para a metade ocidental.

Então, o problema dessa imagem é este: os democratas estão se aliando com totalitários para vencer um totalitário. Só que, neste caso, não sobrará uma metade democrata. O Brasil é um só, ao vencedor as batatas. E, enquanto a batata do Brasil vai assando, os nossos democratas acham que o nosso Stalin tupiniquim é uma opção melhor do que o nosso Hitler tupiniquim.

Entendedores entenderão

Estou terminando de ler A Fome Vermelha, de Anne Applebaum, que descreve em detalhes o Holodomor, a Grande Fome na Ucrânia no início da década de 30 do século passado, em que estima-se que tenham morrido 4 milhões de pessoas.

O Holodomor foi o resultado da política de coletivização das fazendas nas repúblicas soviéticas, antecedida pela desapropriação das fazendas dos “kulaks”, a burguesia do campo. Com o tempo, kulak virou sinônimo de qualquer um que se opusesse às políticas de Stálin. Ou melhor, Stálin colocava a culpa de tudo o que dava de errado nos kulaks, que encarnavam o “inimigo do povo”.

Aliás, na minha opinião, essa é a parte mais chocante de toda essa história: por mais que a realidade insistisse em contradizê-lo, Stálin interpretava tudo como uma grande luta política, onde sabotadores contrarrevolucionários tinham por objetivo minar o “governo do povo”. Essa ótica levava-o a negar a realidade ou atribuí-la aos “inimigos do povo”. Nesse sentido, relatos de camponeses morrendo de fome só poderiam ter sido “forjados” com objetivos políticos obscuros. Essa interpretação da realidade fazia com que Stálin apertasse ainda mais o torniquete contra os “kulaks”, que, a certa altura, eram todos os que insistiam em mostrar a realidade.

A mente autoritária enxerga o mundo de uma maneira peculiar, onde todos os que não rendem submissão absoluta representam um perigo para a autoridade. Todos se tornam inimigos, em um visão paranoica da realidade. A realidade, inclusive, se torna refém de uma eterna luta política, em que, o que importa, é a defesa da autoridade.

Entendedores entenderão.

Sistema de lealdades

No espetacular livro “Stálin, a corte do czar vermelho”, de Simon Montefiore, o autor descreve à perfeição as intricadas relações de poder em torno do ditador soviético, e como Stálin mantinha em suas mãos os cordões desse poder.

Lealdade era a palavra chave, e sombras de suspeição recaiam sobre pessoas que até ontem eram consideradas pilares do sistema. Na verdade, esse era o modus operandi: não deixar que ninguém se sentisse seguro de sua posição em momento algum, para que todos se desdobrassem em demonstrar sua lealdade ao ditador. Na União Soviética de Stálin, a falta de lealdade se resolvia com uma bala na nuca.

Ao lembrar de Mourão, Bebianno, Santos Cruz e, agora, Heleno, não pude deixar de lembrar desse livro.

PS: não estou aqui, de maneira alguma, querendo dizer que Bolsonaro é semelhante ao ditador soviético. O paralelo refere-se apenas ao sistema de lealdades que se sobrepõe a um sistema institucional de governo.