Mais um tijolo que cai

Em 25/06/2021, publiquei um post curto, com apenas duas frases: “Bolsonaro passando a faixa presidencial para Lula. Alguém consegue imaginar a cena?”

Não, era uma cena inimaginável. E não vai ocorrer. O ainda presidente Bolsonaro voou para os Estados Unidos, longe da cerimônia de posse do presidente eleito.

Os democratas do país repudiam o último ato do presidente. A passagem da faixa é uma liturgia da democracia, em que o presidente que sai reconhece a legitimidade do presidente que entra. A decisão de Bolsonaro somente confirma o que todos já desconfiavam: Bolsonaro não é um verdadeiro democrata.

Ocorre que ritos democráticos somente são plenos de sentido quando temos uma democracia plena. E a nossa democracia pode ser tudo, menos plena.

Os democratas do país encontraram em Bolsonaro o espantalho perfeito, que representa a face anti-democrata da nossa democracia. Não admitem que Bolsonaro é apenas a encarnação conveniente do profundo déficit de democracia que o Brasil vive hoje.

No mesmo dia em que meia dúzia de aloprados queimava ônibus e carros em Brasília, a não muitos metros dali, ministros do TSE confraternizavam com o presidente eleito na casa de um advogado com interesses na mais alta corte do país. Os carros e ônibus em chamas eram apenas a alegoria da verdadeira demolição da democracia que se dava no sambão do advogado. Muitos litros de tinta foram gastos demonizando os aloprados, enquanto nada se publicou sobre o convescote dos respeitáveis representantes da democracia brasileira. Os aloprados fizeram o papel do espantalho conveniente.

Nas últimas eleições, concorreu um candidato que teve os seus direitos políticos restaurados com base em mensagens hackeadas ilegalmente. O candidato havia sido condenado unanimemente por quatro juízes, e a legalidade de suas sentenças havia sido confirmada pelo mais alto tribunal penal do país, o STJ. A isso chamaram de Estado Democrático de Direito.

O partido do vencedor das eleições protagonizou os dois maiores esquemas de corrupção do país nos últimos 20 anos, os dois com o objetivo de comprar apoio no Congresso. Os nossos democratas não acham que isso seja suficiente para banir este partido da nossa cena política. Pelo contrário, este partido é tratado como um ator legítimo de nossa democracia.

Bolsonaro não vai passar a faixa para o seu sucessor. Ele não entende como esses rituais são simbolicamente importantes para a manutenção de um saudável ambiente democrático. Dele não se esperaria outra coisa. Afinal, Bolsonaro não é um verdadeiro democrata.

O que nossos verdadeiros democratas se recusam a ver, como quem vira a cara diante de um ser repugnante, é que Bolsonaro é apenas a encarnação de nosso déficit democrático. Nossos democratas acreditam que, livrando-se dele, estarão se livrando desse déficit, como quem purga um pecado. Iludem-se. Bolsonaro vai-se embora, mas quase 50% do eleitorado fica. Um eleitorado cansado de um simulacro de democracia.

A faixa não transmitida é apenas mais um tijolo que cai na grande obra de depredação da nossa democracia.

O governo que terminou antes de começar

Estava tudo combinado: o STF aprovaria a constitucionalidade das emendas de relator e a Câmara votaria a PEC da transição. Tudo muito institucional, assim como os nomes que usei para denominar o orçamento secreto e a PEC da gastança.

Alguma coisa, no entanto, saiu errado. Lewandowski saiu do roteiro e votou contra o orçamento secreto. A identificação entre Lula e o ministro pode sugerir que foi de caso pensado. O cientista político Carlos Pereira viu nisso uma oportunidade para que Lula estabeleça sua base no Congresso em termos mais “institucionais”. É o que Lula deve estar pensando também.

Só tem um problema: o gigantesco déficit de credibilidade de Lula e do PT. Para montar uma coalização nos moldes canônicos, é preciso compartilhar poder de verdade. Alguém imagina o PT fazendo isso? Mensalão e Petrolão foram os modelos institucionais de coalização escolhidos pelo PT quando teve oportunidade de exercer o poder. Será diferente agora?

Onde o cientista político vê uma “mãozinha” para Lula, eu vejo como fogo no parquinho. Na área econômica, Lula, com suas declarações e nomeações, condenou o seu governo antes de começar. Não contente com isso, Lula decidiu acabar com o seu governo também na seara política, ao comprar uma briga que não tem condições de ganhar, pois o PT de Lula não é o PMDB de Temer.

Posso estar enganado, claro, mas acho que esse governo Lula será avaliado, no futuro, como o governo que terminou antes de começar.

As divisões do STF

Conta a história que um diplomata francês e o ditador da União Soviética, Josef Stálin, estavam em uma reunião antes do início da guerra, onde discutiam um pacto de não agressão. Depois de ter desfiado todas as vantagens do pacto para a União Soviética, o diplomata achou por bem jogar mais uma carta na mesa: o Vaticano veria com bons olhos aquele acordo, e Stálin poderia contar com a boa vontade do Papa. No que Stálin respondeu com a frase que ficaria famosa, e que serve até hoje para descrever as relações de poder: “quantas divisões tem o Papa?”

No Brasil do século XXI, alguém poderia perguntar: “quantas divisões tem o STF?” Stálin vivia em um mundo e em um contexto político em que o número de soldados e armas era a medida do poder. O STF, por outro lado, só tem ao seu lado o arranjo institucional brasileiro. E este arranjo é mais forte do que a força das armas.

Bolsonaristas passam as horas e os dias acampados em frente aos quartéis, clamando por uma “intervenção militar”, eufemismo para golpe. Os militares têm à sua disposição muitas divisões. O que os impede de “resolver” a questão? Simples: as “divisões” que importam estão nas mãos do STF. Engana-se quem acha que o golpe de 64 foi realizada pelos militares. A sociedade civil, a opinião pública e a grande maioria dos agentes políticos queria se livrar de Jango. Os militares apenas operacionalizaram o processo. Foram as instituições brasileiras que expeliram Jango, não os militares.

Hoje, qualquer movimento militar seria recebido com absoluta resistência por parte das principais instituições do país e por parte relevante da opinião pública. O dia seguinte ao movimento seria recebido por uma resistência política fenomenal e pelo não reconhecimento do novo governo por parte de nossos principais parceiros. Viraríamos um pária internacional.

Alguém já disse que a guerra é a diplomacia por outros meios. Quando as instituições falham, a força bruta (o número de divisões) passa a fazer o papel da lei. No Brasil de hoje, as instituições estão firmes e fortes. Podemos não concordar com suas decisões ou seu modus operandi. Podemos, inclusive, achar que essas instituições estão levando o Brasil para o buraco. O que não podemos fazer é ignorar que elas existem. O STF, afinal, conta sim com muitas divisões.

O “lavajatismo” e o ordenamento jurídico do país

Mais uma operação desfeita pelo STF (no caso, decisão monocrática de Gilmar Mendes) em razão de “graves irregularidades na coleta de provas”.

Não vou entrar no mérito da decisão, pois não conheço detalhes do processo (e, mesmo que conhecesse, tenho contra mim o fato de ser leigo no assunto). Gostaria de chamar a atenção para o termo usado pelo advogado de um dos acusados: trata-se de ”um dos capítulos mais nefastos do lavajatismo”.

O termo “lavajatismo” denomina toda a operação contra autoridades públicas ou pessoas de influência na sociedade que, supostamente, extrapola a própria competência para produzir provas. Seria uma espécie de “justiceiro universal”, que atropela o ordenamento jurídico do país para fazer a sua justiça. Note que, em nenhum momento, existe a contestação das provas em si (contas no exterior, movimentações muito acima do razoável etc), mas sobre a “competência do juízo”.

O problema está justamente no “ordenamento jurídico” do país. Da forma como esse ordenamento está montado, é virtualmente impossível que alguém de posses ou em posição de poder seja condenado por corrupção. A operação Lava-Jato desafiou esse ordenamento, e hoje o termo “lavajatismo” é usado justamente para denominar esse desafio.

Quando uma operação consegue furar o bloqueio da blindagem montada para proteger criminosos de colarinho branco, sempre existe o STF para colocar as coisas em seus devidos lugares e proteger o “ordenamento jurídico” do país.

Em sua obra “Why Nations Fail”, o economista Daron Acemoglu atribui a pobreza das nações a instituições políticas extrativistas, que protegem as elites contra os interesses da maioria da população. Um “ordenamento jurídico” que torna virtualmente impossível a punição de crimes de corrupção por parte daqueles que sabem como explorar os labirintos desse mesmo “ordenamento jurídico” é um exemplo de instituição extrativista. Enquanto alguns forem mais iguais perante a lei do que outros, permaneceremos em nosso eterno ciclo de pobreza.

Desculpa de perdedor

O presidente deu o ar da graça ontem, finalmente, após quase 48 horas do anúncio do resultado da eleição. Não admitiu explicitamente a derrota, mas autorizou, segundo o seu ministro da Casa Civil, o início da transição de governo.

Em sua curtíssima manifestação, Bolsonaro levantou apenas um ponto: a injustiça do resultado eleitoral e o direito de manifestação de seus apoiadores, ainda que tenha condenado seus métodos.

Já escrevi ontem sobre os “métodos” de manifestação usados pelos bolsonaristas, e não precisa o presidente vir dizer que eles têm “direito” a se manifestar. O direito de manifestação é garantido pela Constituição. Vou me ater, portanto, ao ponto da “injustiça”.

O presidente não especificou porque considerou “injusto” o resultado eleitoral. Podemos apenas, portanto, elocubrar sobre as suas razões. Consigo pensar em três: 1) O STF ter permitido que Lula concorresse ao levantar as suas condenações, 2) O TSE ter agido de maneira parcial durante a campanha, apoiando implicitamente o seu adversário e 3) Ter havido fraude na apuração dos votos.

Começando pelo terceiro ponto, é de se notar que a palavra “fraude” sumiu do discurso de Bolsonaro e das redes bolsonaristas. O ministério da defesa (órgão do Poder Executivo) foi destacado para fazer uma “auditoria paralela”, e até agora não se manifestou. Ou seja, para aqueles que, como eu, achava que a carta da fraude seria usada, foi uma surpresa positiva. Ao menos essa questão mais, digamos, técnica, foi descartada. Sobraram as duas hipóteses iniciais, que são políticas.

Antes de comentá-las, vou trazer aqui de volta o gráfico que, para mim, mostra tudo e não esconde nada: a popularidade líquida dos governos (ótimo/bom menos ruim/péssimo).

Nos pontos em vermelho, temos a popularidade líquida de cada governo no mês da eleição. Observem que, em todos os casos em que houve a reeleição do incumbente (1998, 2006 e 2014) ou a eleição do sucessor do mesmo partido (1994 e 2010), a popularidade líquida estava positiva. Se Bolsonaro fosse eleito, seria a primeira vez que um incumbente seria reeleito com popularidade líquida negativa. Ele quase chegou lá, porque sua popularidade melhorou com a campanha eleitoral e com as “bondades eleitorais”, mas não foi o suficiente para ultrapassar essa barreira.

Qualquer outra explicação para a derrota eleitoral do presidente precisaria justificar porque a maioria dos eleitores deveria reconduzir ao cargo um presidente impopular. Eu mesmo, que acabei votando em Bolsonaro, acho seu governo, no máximo, com muito boa vontade, regular. Na área econômica, conquistas como a Reforma da Previdência, a independência do BC e o marco do saneamento são ofuscadas pela depredação do teto de gastos e pela sabotagem da Reforma Tributária ampla que estava sendo discutida no Congresso. Sem contar a sabotagem da privatização do Ceagesp, coisa atravessada na garganta dos paulistanos. E olha que estou deixando de fora questões não econômicas, como a vacinação contra a Covid, em que Bolsonaro fez de tudo para desacreditar a campanha, inclusive fazendo questão de não se vacinar.

Acima estão percepções que construí ao longo dos últimos 4 anos. Cada um terá as suas próprias, e o resultado final estará no gráfico acima. Bolsonaro colheu o que plantou, e isso não tem nada a ver com o STF ou com o TSE.

O STF devolveu os direitos políticos a Lula, e isso pode ou não ter sido justo. O ponto é saber o quanto isso influenciou nas eleições. Pode ser, inclusive, que um outro candidato que não Lula tivesse um resultado ainda melhor. Quem sabe? Em 2018, no auge do antipetismo, com Lula na prisão e Bolsonaro ainda uma promessa, Haddad obteve 45% dos votos válidos. O fato é que, por mais que tenha sido injusta a ação do STF (e “injustiça”, neste caso, é um termo relativo, porque, para muitos, a prisão de Lula é que tinha sido injusta), é realmente difícil relacionar este evento com o resultado das eleições.

Com relação ao segundo ponto, penso que um teórico “apoio” do TSE ao candidato Lula teria efeito muito limitado sobre a votação. O caso das inserções transferidas para Lula como direito de resposta, por exemplo, ignora todo o resto, inclusive a campanha nas redes sociais, que foram o motor da vitória de Bolsonaro em 2018. O problema de Bolsonaro não foi não ter o tempo de TV, foi não ter o que mostrar no tempo de TV, a não ser denegrir o seu adversário. Portanto, mesmo que o TSE tenha implicitamente apoiado Lula, avalio que este “apoio” teria um efeito muito limitado sobre o resultado final da campanha.

Como todo time que perde campeonato, são muitas as teorias levantadas para justificar o mau resultado, inclusive o pênalti não dado pelo juiz. O fato nu e cru, no entanto, está no gráfico acima: Bolsonaro não tinha popularidade suficiente para se eleger. O resto é desculpa de perdedor.

Empurrando a história

Barroso suspendeu liminarmente, em uma decisão monocrática, uma lei aprovada pelas duas casas do Congresso e sancionada pelo presidente da República. E, aparentemente, sua justificativa não se baseia em qualquer dispositivo constitucional, mas na possibilidade de “fechamento de vagas de enfermeiros”.

Obviamente não sou fã dessa lei. Creio que é o mercado que melhor decide sobre quanto um enfermeiro, ou qualquer profissional, deve ganhar. No caso, trata-se de um mercado competitivo, fragmentado, em que nenhum player empresarial domina a ponto de ter poder de barganha sobre os salários. Qualquer intervenção externa tende a afetar esse equilíbrio, levando, no caso, a demissões e/ou aumento de custos para os usuários.

Mas não é este o ponto aqui. Barroso atua, novamente, com base em suas “boas intenções”, ao invés de se ater ao texto da Lei Maior. Com base nesse entendimento, o salário mínimo deveria também ser revogado. O salário mínimo é um dos principais, senão o principal, motivo para o alto desemprego estrutural brasileiro e o grande grau de informalidade do mercado de trabalho. Assim como qualquer piso salarial artificial, o salário mínimo impede a contratação de uma mão de obra que não tem qualificação suficiente para produzir o tanto que custa. Não há lei que mude essa realidade, infelizmente.

Os políticos brasileiros são demagogos e não entendem as leis da economia. Por isso, produzem leis que, ao fim e ao cabo, prejudicam a população brasileira no longo prazo. Mas um STF voluntarioso não é a solução para este problema. Porque se hoje o ministro Barroso está “empurrando a história” para o lado com o qual eu concordo, amanhã poderá ser o contrário, como no caso do aborto, por exemplo. O ponto é que o Judiciário não pode substituir o Legislativo, seja a que título for.

PS.: podemos estar somente presenciando um jogo de cena, em que Legislativo e Executivo jogam para a torcida e o Judiciário assume o ônus de ser o “bad cop” da história, uma vez que não precisa de votos. Seria menos mal, mas não deixaria de ser um traço de brasilidade de nossas instituições.

O papel do STF no Estado Democrático de Direito

Vem a público a discussão de uma PEC com o objetivo de instituir o Legislativo como casa revisora do Judiciário.

A justificativa é de que o Supremo tem extrapolado o seu quadrado, invadindo a área de competência do poder legislativo ao, digamos, “expandir” os limites da Constituição, interpretando dispositivos constitucionais de modo a aprovar atos que não estão previstos na Carta Maior. O caso da criminalização da homofobia foi o exemplo citado na matéria.

Luis Roberto Barroso é o mais vocal ministro a defender esse papel expandido do Supremo. Em artigo na Folha de São Paulo de fevereiro de 2018, Barroso defende que a mais alta corte do país deve acolher “inequívocas reivindicações da sociedade, não acolhidas [pelo legislativo] em razão de um déficit de representatividade”. Nesse sentido, seria papel do Supremo “empurrar a história”, em momentos em que “a razão humanista deve impor-se sobre o senso comum majoritário”. Pensar o contrário seria submeter-se à “tirania da maioria” e ao “paternalismo moralista”.

Bem, não vou gastar pixels escrevendo como é perigosa para o Estado de Direito uma “tirania da minoria” de 11 iluminados que se auto-concedem o direito de exercer um “paternalismo moralista” sobre a nação. Parece óbvio. Meu ponto é outro: por que agora?

Esses embates entre Supremo e Legislativo no campo dos costumes têm ocorrido de tempos em tempos, mas já faz algum tempo que o último ocorreu. Portanto, não se trata de uma reação imediata a um evento recente. O que nos leva novamente à questão: por que agora?

O único embate à flor da pele neste momento está ocorrendo entre o presidente e o STF. O Legislativo está envolvido porque um dos seus, o deputado Daniel Silveira, teve a sua cassação determinada pelo Supremo, uma clara invasão de competência. Não está na reportagem, mas esta seria, talvez, uma gota d’água que justificaria o timing da apresentação dessa PEC.

É óbvio que essa PEC não tem como prosperar. Seria instituir a anarquia como forma de governo, dado que o Supremo certamente consideraria a nova norma inconstitucional, o que provocaria um impasse institucional insolúvel, restando a dúvida de quem tem a última palavra a respeito das leis do país.

Independentemente da sua aprovação ou não, essa PEC é apenas uma reação ao ativismo judicial do Supremo, que se arvora como a “consciência moral da nação”. Trata-se de um aviso, e agora caberia aos 11 ministros uma reflexão a respeito de seu papel no Estado Democrático de Direito.

A falácia do poder moderador

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Este é o artigo da Constituição que introduz a organização das Forças Armadas. Alguns têm se apegado ao trecho “à garantia dos poderes constitucionais” para defender que as Forças Armadas poderiam intervir em um desequilíbrio entre os poderes, servindo como uma espécie de “poder moderador” da República, arbitrando conflitos insanáveis entre os Poderes da República.

Não sou jurista e, portanto, não vou me aventurar a interpretar o texto acima. No entanto, quatro coisas me saltam aos olhos.

Em primeiro lugar, parece-me pouquíssimo provável que os deputados constituintes, recém-saídos de uma ditadura militar de mais de 20 anos, tenham querido atribuir justamente aos militares uma espécie de “poder moderador”, com ascendência sobre os três Poderes, abrindo mão de suas prerrogativas justamente para uma instituição que os políticos da época queriam ver pelas costas. A incongruência é gritante.

Em segundo lugar, na remotíssima hipótese de que tenha sido esse mesmo o espírito que guiou os constituintes, faltou então baixar do abstrato para o concreto. Como se daria essa moderação? Onde está a regulamentação da atuação das Forças Armadas neste caso? Quem efetivamente assume o poder? Por quanto tempo?

Vamos ao caso concreto do indulto presidencial, que parece ser o último ponto de atrito entre o presidente e o STF, ainda que não o único. Como se daria a intervenção? O chefe das Forças Armadas (nem sei o nome) entraria no STF um belo dia e diria algo como “de acordo com o artigo 142, estou aqui para arbitrar a questão do indulto”? Onde está a lei que regulamenta essa intervenção, com todos os seus passos e regras? Até onde sei, não existe tal lei. Parece mais com uma “invasão ao Capitólio” do que algo organizado de acordo com um processo civilizado.

Um terceiro ponto é o seguinte: na hipótese de que os constituintes, de fato, estivessem preocupados em estabelecer um “poder moderador”, parece-me mais lógico que estipulassem regras para a escolha de uma espécie de “comitê de notáveis” que pudesse arbitrar o equilíbrio entre os Poderes. Por que cargas d’água os militares teriam mais bom senso ou conhecimento jurídico ou boa fé do que os atores políticos envolvidos? A sua atuação seria somente pelo fato de portarem armas e, portanto, terem o poder da força? Ou seriam uma espécie de “seres humanos diferenciados”, anjos portadores da mensagem divina? Como em qualquer instituição humana, as Forças Armadas contam com elementos valorosos e outros nem tanto. Achar que, pelo simples fato de se auto-intitularem “patriotas”, os militares teriam o condão de trazer a paz e a concórdia entre os homens parece-me um pouco ingênuo.

Por fim, talvez o aspecto mais importante dessa discussão toda. Parece-me que nós, latino-americanos, sofremos de um incurável sebastianismo, sempre à espera de um “messias” que vai nos salvar de todos os nossos males e nos levar a uma terra onde corre leite e mel. Nesse aspecto, estou com o deputado Marcel van Hattem, que, em um post por mim aqui compartilhado, afirma que essas desinteligências entre os Poderes se resolvem no campo da POLÍTICA (ele coloca a palavra em maiúsculas).

Todo problema complexo tem uma solução simples e errada. A intervenção militar para “arbitrar” entre os poderes é essa solução, no caso. Trata-se de uma espécie de renúncia à vida adulta, em que abrimos mão de resolver nossos próprios problemas do jeito que dá, para chamar o “papai” que vai resolver o problema por nós. Já passamos desse tempo. Vamos olhar para frente e enfrentar os nossos problemas nós mesmos. Não será abrindo mão do poder político para um grupo estranho a esse mesmo poder que chegaremos em algum lugar.

Um verdadeiro democrata

Não deixa de ser paradoxal este post de Marcel Van Hattem. O deputado usa de sua liberdade de expressão e de sua imunidade parlamentar para tecer pesadas críticas ao STF, afirmando que os magistrados supremos não respeitaram a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar de um colega. Bem, se fosse essa a conduta, Van Hattem poderia esperar a mesma reação do STF com relação a si mesmo.

Mas Marcel Van Hattem sabe bem a diferença entre o que vai escrito neste post e o que disse o deputado Daniel Silveira. Aqui, temos uma crítica democrática e republicana. Lá, uma ameaça de agressão física e incitação à violência.

Cansei de tecer críticas ao STF nesta página. Não preciso de imunidade parlamentar para isso. Vivo em uma sociedade democrática, em que o exercício da livre opinião não é criminalizado. O STF, no entanto, entendeu que a manifestação de Daniel Silveira extrapolou o direito à crítica, tão bem exercido por Marcel Van Hattem. Entenderam os juízes (10 de 11) que as falas de Daniel Silveira foram mais que “desprezíveis”. Foram criminosas. E acho que aqui está o busilis da questão.

Nenhum direito é absoluto. Ninguém tem o direito, por exemplo, de cometer crime. Portanto, a questão envolvida aqui não é o “direito à liberdade de expressão”, tão bem exercido por Marcel Van Hattem, mas se a fala de Daniel Silveira constitui ou não crime. Se constitui crime, o deputado não tem o direito de exercer a sua liberdade de expressão. É exatamente a mesma discussão quando se debate sobre o “direito” ao aborto. A questão principal é se o feto é ou não um ser humano. As questões de “liberdade sobre o próprio corpo” ou “problema de saúde pública” são secundárias quando está em jogo o principal, o direito à vida de um ser humano. Do mesmo modo, o “direito à liberdade de expressão” se torna secundário quando se trata de usar esse direito para cometer um crime. Portanto, é isso que deve ser debatido, e não uma pretensa “agressão à livre manifestação”, assim como o direito ao aborto não se resume a um pretenso “direito da mulher ao próprio corpo”.

E aqui chegamos ao julgamento de anteontem. Eu, particularmente, acho que a fala do deputado Daniel Silveira extrapolou o simplesmente “desprezível”, incorrendo em crime. Tenho amigos que, ouvindo a mesma fala, acharam que foi só bravata. No entanto, o que eu ou você achamos é irrelevante. Na democracia, quem julga é o juíz constitucionalmente constituído. É como em um jogo de futebol: podemos ficar debatendo horas sobre um determinado lance, mas a decisão do juíz é soberana. Por ocasião do impeachment, os petistas chamaram de “golpe” todo o processo, desrespeitando a decisão dos juízes constitucionalmente constituídos para julgar a ex-presidente. No caso, os parlamentares.

Aliás, há questionamento, inclusive, sobre se o STF poderia estar julgando um caso em que o próprio STF foi o agredido. No caso, como há foro privilegiado, não há outra Corte possível. E, se não for o STF a julgar, os deputados ficariam completamente inimputáveis. Imagine a seguinte situação: um deputado entra no STF e atira em um ministro. Segundo essa tese, o STF ficaria de mãos atadas pelo simples fato de ter sido o agredido. E, ademais, quem apresentou a denúncia foi a PGR, a Câmara (como bem lembrou Van Hattem) permitiu que o deputado continuasse preso e 10 de 11 ministros, inclusive André Mendonça, avaliaram que houve crime na fala de Daniel Silveira. Portanto, estamos longe de uma decisão arbitrária.

O deputado Marcel Van Hattem, combativo como é, inicia seu post dizendo que o STF usou a democracia para golpear a democracia. Bem, o entendimento do STF foi o justo inverso: o deputado Daniel Silveira teria usado a democracia para golpear a democracia. Independentemente de quem esteja com a razão, Van Hattem se mostra um verdadeiro democrata, ao reconhecer que é na arena política que se resolvem essas questões. Muito diferente da fala de Daniel Silveira.


Aqui, o post de Marcel Van Hattem

NÃO SE DEFENDE A DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO ATACANDO A PRÓPRIA DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO

Não se trata apenas da condenação inconstitucional de um parlamentar: é uma decisão do STF que afronta a própria democracia e as instituições sob o pretexto de defendê-las. Temos agora um preso político no país em plena democracia: não há maior contradição e injustiça possível.

As falas gravadas em vídeo por Daniel Silveira no ano passado foram reprováveis. A perseguição desproporcional e ilegal que ele tem sofrido, porém, tem obliterado até mesmo o conteúdo de sua manifestação, transformando o suposto algoz em vítima.

Ser julgado por seus acusadores é autoritarismo que não cabe no Estado de Direito. É bom lembrar que tudo começou com o torto inquérito fake contra a apuração sobre Toffoli da Revista Crusoé, num claro atentado da mais alta Corte do Judiciário contra a liberdade de imprensa.

O corporativismo do STF foi se sobrepondo às garantias constitucionais e a defesa das liberdades no país à medida que foi centrando fogo em inimigos rejeitados pelo establishment. Quando foi contra a imprensa livre ainda houve alguma reação. Agora, grande apatia.

Pior: a própria Câmara dos Deputados errou ao manter Daniel preso, com meu voto e manifestação contrária, abrindo o precedente perigosíssimo da cassação e prisão inconstituiconal de parlamentares por manifestação verbal. O foro é a Comissão de Ética da Câmara, jamais o STF.

Na prática o que temos é um STF condenando a prisão por 8 anos um parlamentar por uma manifestação repugnante enquanto atos e ações repugnantes e até mesmo hediondos como estupros, homicídios e assassinatos seguem em larga escala impunes no Brasil.

Infelizmente a Suprema Corte não fez Justiça. Fez política. Agiu de forma vingativa, não com a serenidade e imparcialidade requerida de magistrados. Quis dar resposta à fala de um parlamentar mas a desproporção e ilegalidade ferem a própria democracia e o Estado de Direito.

Muitos perguntam: o que fazer? Pois bem: assim como defendo que não se pode justificar defesa da democracia sendo autoritário nem a defesa da Constituição com atos ilegais, também digo claramente que a resposta está na ação POLÍTICA contundente mas equilibrada de cada um.

Você pode não gostar dos deputados e senadores com mandato, mas não pode ignorar o fato de que chegaram em Brasília com o voto do povo. Se Câmara e Senado permanecem apáticos com raras exceções é porque seus membros refletem a qualidade dos votos dados a eles na eleição passada.

Você pode optar por não resistir e não reagir. Pode optar por desgostar de política e não se envolver para melhorar a qualidade dos seus representantes. Pode. O que você não pode é depois achar que tem o direito de só reclamar.

Dar opinião tem ficado cada vez mais perigoso no país, especialmente a depender sobre quem você está falando. É claro que de forma nenhuma subscrevo a fala de Silveira – a repudio. Mas repito: não é sobre ele. Lembrem-se da Crusoé: é sobre a quem a crítica é dirigida.

Não importa o quão elegante e politicamente correto seu argumento seja: o recado da votação de do STF de ontem é um “cala-boca” a quem ousar contrariar os neoiluministas do STF, que se arrogam o direito de estarem acima de quaisquer suspeitas.

Não estou na política, porém, para me calar ou submeter-me a ameaças de me calarem. Continuarei sempre na trincheira da defesa das liberdades contra a tirania de quem quer que seja, de onde quer que venha. Minha maior missão é atrair à política mais pessoas com esta determinação.

A despeito do que tem feito de forma autoritária o STF, é apenas com mais democracia, mais liberdade e mais defesa do Estado de Direito e correta aplicação das leis que se defende verdadeiramente a democracia, garantem-se as liberdades, e solidifica-se o Estado de Direito.

Os limites da imunidade parlamentar

“Daniel Silveira usou o seu mandato como escudo protetivo. Ele usou o Parlamento como esconderijo”. Estas foram as palavras que Alexandre de Morais usou para afastar a hipótese da imunidade parlamentar na defesa do deputado.

De fato, a imunidade parlamentar não cobre a possibilidade de que o titular de mandato parlamentar cometa crime. Parece-me que esta premissa pode ser razoavelmente aceita por todos. Se um parlamentar, por exemplo, assassina um colega em plenário, trata-se de um crime. Portanto, o titular do mandato não está imune ao longo braço da lei neste caso.

O caso do deputado Daniel Silveira, portanto, deve ser analisado do ponto de vista do suposto crime cometido. Se crime houve, sua imunidade parlamentar não pode ser usada para protegê-lo de seus atos.

Uma segunda questão que se coloca é a seguinte: pode-se cometer crime através do uso da palavra? Com certeza. Há crimes tipificados no Código Penal que envolvem somente o uso da palavra: calúnia, difamação e ameaça de violência física. O próprio ato de falar, neste caso, constitui crime.

É neste ponto que as pontas do caso Daniel Silveira se unem: a atividade parlamentar se desenvolve principalmente pelo uso da palavra. Pode um parlamentar ser condenado pelo uso do que caracteriza o seu mandato, ou seja, o uso da palavra? Estariam aqueles crimes mencionados acima suspensos pela imunidade parlamentar? Pode um parlamentar caluniar, difamar ou ameaçar com violência física pelo simples fato de ser parlamentar?

O caput do artigo 53 da Constituição é claro como a luz do dia: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Os parágrafos deste artigo apenas estabelecem as condições nas quais os parlamentares podem ser julgados e condenados: fórum privilegiado, regras para a prisão em flagrante, licença da respectiva Casa Legislativa para o processo etc. Em nenhum dos parágrafos se diz que o uso da palavra pode ser fonte de processo criminal, hipótese afastada pelo caput.

O ministro Alexandre de Morais, na Petição 9456 DF, de abril/2021, deixava clara a sua interpretação deste artigo: “A jurisprudência da CORTE é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta, não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Ou seja, já haveria jurisprudência no STF de condenações em virtude de manifestações no âmbito parlamentar. Realmente, não lembro de outro deputado que tenha sido condenado pelo fato de ter falado que cometeria um crime ou incitado a outros a cometerem crimes. Parece-me que foi estabelecida uma nova jurisprudência.

Óbvio, estou longe de ser especialista em interpretação de leis. Sou apenas uma pessoa letrada, que entende razoavelmente bem o que lê. E a Constituição é um conjunto de palavras inteligíveis, assim como o discurso do deputado Daniel Silveira. Se a frase “o povo entre dentro do STF, agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele e sacuda a cabeça de ovo dele e o jogue dentro de uma lixeira” significa claramente uma instigação à violência física contra membro de outro Poder (temos aqui ao menos dois crimes), a frase “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” significa claramente que quaisquer palavras, mesmo que configurem crime, como é o caso, não deveriam servir de base para a condenação civil ou penal do parlamentar.

O constituinte, quando elaborou este artigo, tinha em mente justamente a proteção das garantias democráticas fundamentais, entre as quais, a liberdade de discurso e de voto por parte do parlamentar. Não custa lembrar que o Congresso Nacional foi fechado em dezembro de 1968 justamente porque a Câmara dos Deputados recusou-se a permitir o processo do deputado Marcio Moreira Alves, que havia chamado o exército de “valhacouto de torturadores” e instigado os brasileiros a boicotarem os desfiles de 7 de setembro e às mulheres que se recusassem a se relacionar com militares. Diríamos que, guardadas as devidas proporções, Marcio Moreira Alves era o Daniel Silveira da época, instigando a subversão através de palavras. Claro, os dois casos não são simétricos e nem comparáveis, um estava defendendo valores democráticos, o outro defende o uso da força para impor suas ideias. A semelhança está apena na arma utilizada: a palavra.

Daniel Silveira usou palavras chulas, fez ameaças e instigou a violência contra os membros de outro Poder da República. São crimes, sem sombra de dúvida. O diabo é que o artigo 53 da Constituição não abre exceção à imunidade parlamentar. Se houvesse um parágrafo dizendo algo do tipo “a imunidade estabelecida no caput será suspensa caso as opiniões, palavras e votos atentem contra os artigos x, y e z desta Constituição”, então teríamos base legal para a sua condenação. Mas o constituinte não quis prever tal situação, justamente porque qualquer limitação à palavra do parlamentar cheira a arbítrio.

Por outro lado, e talvez seja este o ponto, legítimo por sinal, a que se apegam os que concordam com a decisão quase unânime do Supremo, o deputado Daniel Silveira usou da palavra que o regime democrático lhe garante para atacar um dos Poderes que constituem a base material do regime. Não estou aqui afirmando que o STF que temos seja um exemplo de valorização dos ideais democráticos, mas a ideia de uma Corte Suprema imune à influência dos outros poderes é central nos regimes democráticos. Há formas, dentro das regras democráticas, de garantir a isenção do STF. Por exemplo, através da cassação de juízes. Ao defender que o “povo” invada o STF e expulse os ministros na base da força, o deputado está dando razão aos que pensam estar defendendo a democracia ao prendê-lo. A ideia de atuar fora da lei para fazer prevalecer a lei não parece ser muito coerente. Apesar de o artigo 53 lhe garantir o direito de falar o que bem entender, parece ser contraditório usar este direito justamente contra o regime que lhe garante este direito.

Então, por um lado, a letra da lei garante o direito de manifestação do parlamentar. Por outro lado, este direito é garantido justamente pelo tipo de regime atacado pelo parlamentar. E qualquer regime atuará no sentido de defender os seus pilares, como foi o caso. Por isso, entendo quem ache um absurdo a decisão do STF, e entendo também quem concorde. Cada um olha a realidade de um determinado ponto de vista. E poucos admitem que sua opinião, muitas vezes, é influenciada e antecedida pelas suas opções políticas.