A Superliga e o STF

Essa história da Superliga me faz lembrar o Clube dos 13.

Em 1987, os 13 principais clubes do futebol brasileiro resolveram criar um campeonato próprio, a Copa União. A CBF, à época, organizou, como sempre, o seu próprio campeonato. Chamou a Copa União de “módulo verde” e o seu campeonato de “módulo amarelo”. Verde e amarelo, sacou?

Segundo as regras estabelecidas pela CBF, o campeão brasileiro deveria sair do enfrentamento entre os campeões dos dois módulos. O Flamengo, campeão da Copa União, recusou-se a entrar em campo para enfrentar o Sport, campeão do torneio da CBF. A CBF declarou o Sport como campeão brasileiro de 1987. A coisa foi parar (como tudo no Brasil) no STF, que em 2018 declarou definitivamente o Sport como o campeão brasileiro daquele ano.

Essa discussão toda pode parecer bizantina, mas teve efeito prático importante em outra polêmica fundamental: quem deveria levar definitivamente para casa a taça das bolinhas. Essa taça estava reservada para o primeiro pentacampeão brasileiro desde 1971. Caso o título de 1987 valesse, a taça deveria ter sido entregue ao Flamengo, que teria vencido seu quinto título brasileiro em 1992. No entanto, com o título de 1987 sub-júdice, o São Paulo ganhou o seu quinto título em 2007, reivindicando a taça. Apesar de o STF já ter pacificado a questão sobre quem foi o campeão brasileiro de 1987, esta disputa da taça das bolinhas ainda está sem decisão final. O STF acabará tendo que decidir sobre esta importante questão também.

Fico imaginando como a UEFA e os clubes europeu vão se virar sem ter um STF para decidir essas questões.

A CPI inconveniente

O parágrafo único do artigo primeiro da Lei 13.367 de 05/12/2016, que atualmente rege a constituição e funcionamento das CPIs, reza o seguinte:

“Parágrafo único. A criação de Comissão Parlamentar de Inquérito dependerá de requerimento de um terço da totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em conjunto ou separadamente.”

Mais claro e cristalino do que isso, impossível. Os senadores reuniram cinco votos a mais que o terço determinado em lei. A lei não prevê que o presidente do Senado tem poder discricionário para não instalar a CPI. Luís Roberto Barroso fez o óbvio: concedeu liminar obrigando a cumprir a lei. Rodrigo Pacheco não vai nem mesmo aguardar a apreciação da liminar pelo plenário, porque sabe que não tem chance. Segurar a formação da CPI é prevaricação.

Tudo isso é verdade. O que não tira a razão de Pacheco ao tentar segurar ao máximo a instalação dessa CPI: trata-se de mais um elemento de confusão em um ambiente político já conturbado.

O que exatamente essa CPI vai descobrir que já não estejamos fartos de saber? Claro que se trata de luta política, mais um front para enfraquecer ainda mais o governo. Um palco para execrar publicamente as figuras envolvidas no controle da pandemia. É um direito da minoria, daí o quórum de um terço para a instalação. Mas que tem o potencial de paralisar a atividade legislativa, daí a resistência de Pacheco.

No passado, uma CPI derrubou um presidente. Mas o sistema político aprendeu a domar as CPIs, de modo que, hoje, não passam de palanque para a minoria expor os governos. Pouco vai sair daí, a não ser mais barulho.

Duas histórias, um destino

Os dois recortes abaixo se referem a julgamentos no STF que teriam lugar ontem. No momento em que escrevo, não sei a quantas anda a agenda, se algum magistrado pediu vista, essas coisas. Mas não importa. O importante é entender de que barro somos feitos e porque nosso subdesenvolvimento é uma obra escrita a várias mãos.

Vejamos. O primeiro julgamento refere-se a contribuição previdenciária sobre o terço de férias. Como sabemos, os empregados com carteira assinada têm direito a receber um terço de seu salário por ocasião de suas férias. Há uma disputa sobre a natureza dessa remuneração: se faz parte do salário (hipótese em que a contribuição previdenciária patronal seria devida) ou indenizatória (hipótese em que aquela contribuição não seria devida).

Julgamento no STJ deu ganho de causa às empresas, razão pela qual muitas não estavam recolhendo a contribuição. Mas a coisa foi parar no STF e, até o momento, havia quatro votos a zero contra as empresas. A situação, como diria o Galvão, era dramááática.

Neste primeiro caso, o que temos? Em primeiro lugar, uma discussão bizantina sobre a natureza de uma parte do salário. Essas coisas que não fazem o mínimo sentido no mundo real (afinal, dinheiro é dinheiro), mas que se convertem em brechas a serem exploradas por teses jurídicas. Esse, no entanto, não é o principal ponto. O principal é o STF funcionar como casa revisora do STJ. Na prática, temos dois tribunais superiores, um superior ao outro, julgando as mesmas coisas. O STJ decide uma coisa e o STF decide outra. Pra quê, então, existe o STJ? Sustentamos uma máquina inútil que custa caro e atrasa o fim dos processos. E, o que é pior: dando a falsa impressão de que suas decisões valem algo.

O segundo caso refere-se ao julgamento de inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da lei de patentes. O artigo diz que a patente tem validade de 20 anos a partir do pedido, enquanto o parágrafo único diz que esse tempo será de, no mínimo, 10 anos a partir da efetiva concessão da patente. Ou seja, o parágrafo permite a extensão da validade da patente pelo tempo em que o INPI sentou em cima do processo. Do barulho em torno desse parágrafo depreendemos que não é anormal o INPI demorar mais de 10 anos para a concessão de uma patente! Se demorasse menos do que isso, o parágrafo seria inócuo, a patente valeria por 20 anos e ponto.

Não vou aqui discutir a justeza do pleito, mas sim, a sua natureza. Não se está discutindo o pedido em si da patente, mas o tempo de sua validade. O STF decidirá sobre a constitucionalidade do parágrafo único. Ora, tanto o parágrafo quanto o artigo versam sobre o mesmo fenômeno: o tempo de validade da patente. Por que seria inconstitucional conceder 10 anos de validade a partir da concessão e não seria inconstitucional conceder 20 anos a partir do pedido?

Na verdade, o que temos aqui é o STF sendo chamado a modificar arbitrariamente uma lei que, se incorreta, deveria ser modificada pelo Legislativo. Trata-se claramente de uma chicana jurídica inventada pelos lobbies das companhias farmacêuticas locais para “driblar” a legislação. Foi o legislador que determinou o prazo de validade da patente, é ao legislador que cabe modificá-lo. Até entenderia o STF cancelar o direito a patente como um todo, com base em sabe-se lá qual princípio constitucional. Não concordaria, mas entenderia a decisão. No caso em tela, no entanto, qualquer decisão do STF, a não ser dizer que não tem nada a ver com isso, seria incompreensível. Depois ficamos todos a reclamar que o STF legisla no lugar do legislativo, quando são os próprios grupos de interesse que provocam o STF nesse sentido.

O que une os dois casos analisados? Um sistema jurídico (aqui entendido de maneira ampla, envolvendo operadores e legisladores) gerador de incertezas que minam a atividade produtiva. Como disse no início, a nossa pobreza não é improvisada.

Todo dia é um 3 x 2

Hoje acordei sem vontade de ler o jornal. Ocorreu-me que é a exata mesma sensação que tenho quando meu time perde uma final de campeonato. No dia seguinte, quero passar longe da seção de esportes. Ler para quê? Para reviver os detalhes de uma experiência dolorosa? Para saber dos detalhes de uma comemoração que deveria ser a minha? Não, obrigado.

A comparação do julgamento de ontem com os 3 x 2 da derrota para a Itália na Cooa de 82 foi a primeira que me veio à mente para traduzir o que estava sentindo no momento. Hoje, depois de uma noite de sono, consigo elaborar um pouco mais.

O ser humano é um misto de razão e emoção. Por mais que tentemos separar essas duas dimensões, elas estão imbricadas de tal maneira que, mesmo quando achamos que nossos julgamentos e decisões foram absolutamente racionais, as emoções estão lá, escondidas, atuando.

Dei-me conta dessa verdade tão simples analisando minhas sensações ontem e hoje. Não é racional. Ou melhor, não é só racional. A paixão por um time não tem explicação racional. Do mesmo modo as paixões políticas, por mais que tentemos dar uma roupagem racional às nossas crenças. Se fosse algo absolutamente racional, e se as emoções não tivessem papel nenhum em nossas escolhas políticas, chegaríamos todos, racionalmente, a uma só conclusão: a melhor. Mas aí não seria o planeta Terra, mas Vulcano, o planeta de Mr. Spock.

Mr. Spock é tripulante da USS Enterprise, na famosa série e filmes da franquia Star Treck. Os habitantes de Vulcano não têm emoções, só razão. Nesse mundo, o bem e o mal, o certo e o errado são definidos de maneira rigorosa, sem possibilidade de erro, a não ser a limitação própria da mente humana, quer dizer, vulcânica, que não consegue ver todos os aspectos de uma determinada questão. Em nosso planeta não é assim. As definições de bem e mal, certo e errado, estão sempre envoltas em uma capa espessa de emoções. Ou, para fazer um paralelo melhor com a psique humana, o nosso invólucro racional esconde um núcleo quente de emoções. Procuramos o tempo inteiro racionalizar as nossas escolhas, que já foram feitas a priori pelo nosso núcleo emocional.

Se para a escolha do time isso parece absolutamente claro (afinal, ninguém tem a pretensão de dizer que o seu time é o “certo”, a não ser o Santos, que está acima de qualquer discussão possível), para as escolhas políticas o papel das emoções é muitas vezes subestimado. As nossas escolhas nos parecem tão claras – racionalmente falando – que não nos damos conta que estamos, na verdade, torcendo para um time.

Bem, todo esse longo preâmbulo serve para colocar o problema: existe juiz absolutamente imparcial? A deusa grega Têmis aparece vendada em frente ao STF, simbolizando a imparcialidade que a justiça deve perseguir, resultando na balança equilibrada que a deusa carrega em uma de suas mãos. O problema, como víamos, é que a parcialidade não reside nos olhos, mas no coração: são as emoções que nos levam a fazer pender a balança para um dos lados, mesmo sem percebermos. Quem assistiu ao julgamento de ontem, me diz se os impropérios de Gilmar Mendes têm algo a ver com defesa racional da justiça. Gilmar foi a encarnação do juiz dominado por suas emoções, a própria definição de parcialidade.

Moro tem uma certa aura de Mr. Spock. Seus interrogatórios, principalmente o de Lula, me fizeram lembrar alguns episódios de Star Treck, em que o vulcano Mr. Spock paira soberano sobre a balbúrdia causada pelas emoções humanas. Mas Moro é humano, e certamente tem suas preferências políticas. Essas preferências, no entanto, deveriam permanecer ocultas, justamente para evitar a associação com uma decisão que deveria ser racional. Ao aceitar um cargo no ministério de Bolsonaro, Moro fez o movimento que expôs o seu núcleo emotivo de anti-petismo. Ainda que a sua suspeição provavelmente seria declarada com base nas gravações rackeadas, o movimento de 2018 ajudou a compor o quadro.

Mas agora vem o ponto principal: o fato de qualquer juiz, por ser humano, ter as suas paixões, torna inútil qualquer tentativa de se fazer justiça? Claro que a resposta é não. É preciso, para cada caso, procurar um juiz que não esteja emocional ou racionalmente ligado às duas partes em litígio. Mas, em se tratando de um grande líder político como Lula, seria possível encontrar um juiz não envolvido emocionalmente? Talvez um juiz estrangeiro, mas, mesmo assim, a se julgar por várias manifestações de personagens internacionais a favor de Lula, a escolha deveria ser cuidadosa.

A busca pela imparcialidade absoluta torna impossível o julgamento de grandes líderes políticos. Os juízes, em tese, julgam de acordo com as provas produzidas e reunidas nos autos do processo. Mas vimos nesse processo do Lula que não há provas absolutas: ao mesmo tempo que o triplex me parece uma prova irrefutável de sua ligação com a roubalheira da Petrobras, para outros tratou-se de um subterfúgio usado por um juiz parcial. Não é que cada parte tenha uma única ideia da verdade mas a esconda debaixo de suas paixões políticas. É que as paixões políticas levam cada uma das partes a crer que está sendo muito racional ao acolher ou rechaçar as mesmas provas.

O mesmo ocorre com as mensagens hackeadas. A depender do time em que se esteja, a simpatia ou antipatia que causa a figura de Moro ou Lula, as mensagens dizem tudo ou não significam absolutamente nada. Onde está a verdade?Acordei hoje de manhã sem vontade de ler os jornais. E isso me despertou para a possibilidade de estar agindo mais como um torcedor de time de futebol, o time do Moro, do que como um ser humano que se orgulha de basear suas decisões na racionalidade.

O Brasil continua. A Lava-Jato existiu, e isso mudou o Brasil a seu jeito. Desistir do Brasil é permitir que o time adversário ganhe de WO. Perdemos a final do campeonato, mas há várias temporadas adiante. Olha eu torcendo de novo…

Fact checking do discurso do Lula

“O STF reconheceu minha inocência”

Falso. O STF mudou o foro, não entrou no mérito da decisão.“

A resposta do governo Bolsonaro à pandemia tem sido um desastre”.

Verdadeiro.

“O Brasil era a 6a economia do mundo no meu governo”.

Em termos. Foi verdade durante um curto período de tempo. Esqueceu de dizer que foi sua cria que nos jogou na lama da qual estamos tentando nos recuperar até hoje.

As palavras têm poder

Ontem escrevi sobre os jogos de poder envolvidos na prisão do deputado Daniel Silveira. Hoje, depois de pensar e organizar um pouco o tema na minha cabeça, vou escrever sobre o assunto em si: a questão da liberdade de expressão.

Começarei por um tema absolutamente estranho ao assunto que trataremos: o aborto. É interessante como, neste tema, os papéis se invertem: os conservadores, sempre tão ciosos em relação ao tema “liberdades individuais”, defendem um regramento do Estado para cercear a liberdade da mulher. E os progressistas, sempre prontos a estabelecer regras de comportamento, defendem com unhas e dentes a opção livre da mulher.

Vamos analisar a coisa do ponto de vista do conservadorismo, que é o que nos interessa neste momento. Por que, afinal, no caso do aborto, se quer proibir a mulher de fazer uma opção livre? Simples: porque, neste caso, há um terceiro envolvido, o feto. O debate sobre o aborto passa pela desagradável discussão sobre a natureza humana do feto. Os progressistas normalmente não querem saber sobre essa discussão. A liberdade da mulher vem antes.

Ernesto Araújo chegou a afirmar que preferiria ser pária entre as nações por defender a liberdade. No entanto, no caso do aborto, tenho certeza que o nosso chanceler defende uma “limitação” na liberdade da mulher. Porque, afinal, a minha liberdade termina onde começa a do outro. E, neste caso, há um outro envolvido.

Não existe liberdade absoluta. Não existe liberdade de expressão absoluta. Assim como no caso do aborto, é preciso analisar se o exercício daquela liberdade constitui um crime. Temos liberdade para fazer o bem, não para fazer o mal. Portanto, não há como escapar da análise da fala do deputado, por mais que essa análise seja espinhosa.

Os deputados, vez por outra, a depender do seu nível de educação, chamam uns aos outros de canalhas, bandidos, corruptos. Coisas que podem gerar, inclusive, processos por injúria. Por que, então, neste caso específico, o deputado foi preso, enquanto, nos outros casos, há todo um processo antes? Não vou entrar aqui na tecnicalidade do flagrante, se o delito é contínuo ou não, enfim, se há elementos para a prisão em flagrante. Não é minha praia. Vou me concentrar na fala em si.

Para essa análise, é interessante observar os trechos destacados por Alexandre de Moraes em sua ordem de prisão (integra nos comentários). Não foram destacadas injúrias como o tamanho do bilau do Fachin ou as preferências sexuais do Barroso. Há dois tipos de falas destacadas: 1) ameaças, veladas ou não, à integridade física dos magistrados e 2) ameaças, veladas ou não, à integridade do STF e do próprio Congresso.

A coisa foi, portanto, além da injúria pessoal. As falas do deputado, se transformadas em realidade, significariam o fim das atuais instituições democráticas e sua substituição por uma “ditadura do bem”. Alguém já disse que o melhor regime de governo é uma ditadura que concorde comigo. O segundo melhor, ou o menos pior, é essa democracia que temos, com todos os seus evidentes defeitos. E o terceiro pior é uma ditadura com a qual não concordamos.

Daniel Silveira, na prática, usa sua liberdade de expressão para defender um regime político que, uma vez instalado, a primeira coisa que faz é acabar com a liberdade de expressão. Trata-se de uma contradição em termos. O regime democrático, em qualquer país, restringirá esse tipo de discurso sem medo de ser feliz. Injúria e difamação não atentam contra o regime. Discursos pelo fechamento do STF e do Congresso, sim. Por isso, entenderam os magistrados que o deputado, no mínimo, merecia uma prisão preventiva (figura prevista em nosso código penal, diga-se de passagem) mesmo antes do julgamento.

Termino com uma pequena digressão. Há quem diga que palavras, por pior que sejam, não têm o poder de criar realidades. Talk is cheap, dizem os americanos. Não é verdade. Os grandes líderes, aqueles que moveram seus povos em uma determinada direção, o fizeram através de suas palavras. Não é à toa que são famosos os discursos de Lincoln, Churchill e Hitler. Uma revolução começa no mundo das ideias, e se torna realidade através das palavras.

“Se pomos um freio na boca do cavalo para que nos obedeça, conseguimos controlar o seu corpo todo. Reparai também nos navios: por maiores que sejam, e impelidos por ventos impetuosos, são, entretanto, conduzidos por um pequeníssimo leme, na direção que o timoneiro deseja. Assim também a língua, embora seja um membro pequeno, se gloria de grandes coisas. Comparai o tamanho da chama com o da floresta que ela incendeia! Ora, também a língua é um fogo! É o universo da malícia! Está entre os nossos membros contaminando o corpo todo e pondo em chamas a roda da vida, sendo ela mesma inflamada pelo inferno!” (Tiago 3, 2-6)

O STF e a Realpolitik

Em entrevista na TV Bandeirantes em 1999, o então deputado federal Jair Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso, o fuzilamento de “uns 30 mil”, incluindo o então presidente FHC, e a sonegação de impostos. Na época, estudou-se um processo de quebra de decoro no âmbito do Congresso, que acabou não ocorrendo. E ficou tudo por isso mesmo. Não houve, por suposto, qualquer ação do STF a respeito, muito menos uma ordem de prisão.

O que mudou de 1999 para 2021? Por que o STF ordenou hoje a prisão de um deputado que ameaçou ministros do STF e elogiou o fechamento do Congresso? E convém observar que uma decisão inicialmente monocrática foi acompanhada por unanimidade por todos os ministros. Não consigo lembrar a última vez em que houve unanimidade no plenário do STF.

Não somente isso. A reação do Congresso foi morna, pra dizer o mínimo. Difícil achar que a decisão do STF tenha sido tomada sem um mínimo de articulação com o alto clero do Parlamento.

E o silêncio ensurdecedor do presidente? Definitivamente, não é mais o deputado de 1999.Kissinger, em sua monumental obra Diplomacia, faz um resenha histórica das duas grandes correntes filosóficas que permeiam as decisões diplomáticas ao longo do tempo. De maneira muito simplificada, a primeira corrente é a das esferas de poder, que prevaleceu na Europa ao longo do tempo. Nessa linha, os diversos países se alinham com base nas vantagens mútuas que podem obter. É a realpolitik. A segunda corrente é a da cooperação virtuosa, em que os países deveriam cooperar com base em uma ideia de bem comum. Woodrow Wilson, presidente dos EUA durante a 1a Guerra Mundial foi o grande patrocinador dessa corrente, que inspirou a criação da Liga das Nações.

O governo Bolsonaro iniciou wilsoniano (desculpe-me Woodrow, sei que é uma comparação pobre) mas rapidamente migrou para a realpolitik. A prisão do deputado bolsonarista-raiz deve ser entendida neste contexto. Há um claro desconforto dos poderes em Brasília com a face bolsonarista-raiz do governo Bolsonaro. E não é de hoje. Vários episódios se acumularam, dando inclusive origem ao inquérito das fake news. Weintraub foi embora por conta disso.

Se em 1999 Bolsonaro era um exército de um homem só, hoje é formado por um conjunto fornido de deputados e alto staff do Executivo, alinhado a uma ala do Exército e uma rede de apoiadores não desprezível. Quando o deputado desbocado ameaça os ministros do STF e lembra o fechamento do Congresso em 1968, está dando voz a essa ala. Não foi somente Moraes que mandou prender o deputado. Foi o conjunto de todos os poderes em Brasília, incluindo o Executivo. Acabou. A realpolitik venceu. Não há virtude, há espaços de poder dentro de certas regras de convivência, a que chamamos de democracia. O bolsonarismo desafiou essas regras e está sendo enquadrado. Hoje, nem Jair Bolsonaro é bolsonarista mais.

PS.: note que não entrei no mérito da liberdade de expressão ou da imunidade parlamentar. Eu particularmente penso que ambas não são salvo-conduto para cometer crimes, mas aí teríamos que analisar se o que o deputado falou é ou não crime. Aliás, os 11 ministros do Supremo decidiram que é crime. De qualquer modo, para entender o que ocorreu, esse é um dado irrelevante.

Também quero meu hacker!

Por que somente Lula? Com toda a razão, todo mundo quer ter acesso às mensagens roubadas. Eu também quero. Vai que meu nome também esteja citado lá.

O STF criou uma nova modalidade de chicana jurídica: a defesa baseada em mensagens raqueadas.

Você, advogado de defesa, está enfrentando dificuldades para contrapor as provas da acusação? Acabaram-se os seus problemas! Contrate um bom hacker, grampeie o juiz e os procuradores, deixe vazar conversas informais como se prova fossem e veja a mágica acontecer!

Kafka e o Estado Democrático de Direito

Defensores do Estado Democrático de Direito das mais diversas cores saudaram a decisão da 2a turma do STF de compartilhar os dados apreendidos na operação Spoofing com a defesa de Luís Inácio Lula da Silva.

O racional é o seguinte: todas as partes do processo precisam ter acesso aos mesmos dados. Se a PF, o MP e o juiz tiveram acesso aos vazamentos das conversas entre Moro e os procuradores, por que a defesa não haveria de ter? “Paridade de armas” é um dos pilares da justiça em um Estado Democrático de Direito, segundo seus defensores.

A confusão é grande aqui. Vamos focar apenas na questão formal, ou seja, na ação dos hackers em si. O conteúdo das mensagens e seu significado perde relevância diante da forma como foram obtidas, ainda que, em minha humilde opinião, não invalidem uma vírgula do processo contra Lula.

Imaginemos uma situação em que hackers invadam e sequestrem as comunicações entre Lula e o seu advogado de defesa, para deles obter vantagem. Em uma operação da PF, esses hackers são presos. O MP, então, entra no STF com o objetivo de ter acesso às conversas obtidas pelos hackers. O STF daria acesso em nome da “paridade de armas”?

Alguém poderia dizer que, neste caso, a relação entre réu e advogado é sagrada, e nada pode violá-la, enquanto a relação entre o juiz e os procuradores não é sagrada. No entanto, apesar de não sê-lo, a inviolabilidade da comunicação é princípio basilar em qualquer democracia digna do nome. No momento em que escutas não autorizadas servem como elementos em um processo, o sistema de justiça passa a ser terra de ninguém. Ou seja, inviolabilidade da comunicação também é sagrada, e só pode ser quebrada por ordem judicial em uma democracia.

O argumento de que todas as partes precisam ter acesso a todos os dados do processo é risível. As conversas entre o juiz e os promotores já eram de acesso destes ANTES dos hackers. Por definição. Afinal, são eles os autores das conversas. Imaginemos que os hackers não tivessem tido sucesso em sua empreitada. Qual seria a chance de êxito de uma injunção da defesa de Lula junto ao STF para ter acesso ao conteúdo dos celulares de Moro e procuradores? Nenhuma, por óbvio. E ninguém estaria aqui falando de “paridade de armas”. Quer dizer, foi a própria ação dos hackers que legitimou uma “prova” a ser usada no processo. É coisa de malucos. Ou mal-intencionados.

Do jeito que a defesa de Lula, os ministros do STF e todos os outros defensores do Estado Democrático de Direito colocam a coisa, parece que Lula é Josef K., personagem de Franz Kafka processado e condenado por crime não conhecido pelo próprio réu. Ora, Lula foi condenado por crimes bem conhecidos em processos abertos e com base em provas mais do que robustas, referendadas em duas instâncias adicionais à primeira. Alegar cerceamento de defesa ou parcialidade do juiz é somente mais uma chicana das inúmeras que nosso sistema de justiça é pródigo em oferecer a quem pode pagar bons advogados. A isso chamam Estado Democrático de Direito.