Ontem escrevi sobre os jogos de poder envolvidos na prisão do deputado Daniel Silveira. Hoje, depois de pensar e organizar um pouco o tema na minha cabeça, vou escrever sobre o assunto em si: a questão da liberdade de expressão.
Começarei por um tema absolutamente estranho ao assunto que trataremos: o aborto. É interessante como, neste tema, os papéis se invertem: os conservadores, sempre tão ciosos em relação ao tema “liberdades individuais”, defendem um regramento do Estado para cercear a liberdade da mulher. E os progressistas, sempre prontos a estabelecer regras de comportamento, defendem com unhas e dentes a opção livre da mulher.
Vamos analisar a coisa do ponto de vista do conservadorismo, que é o que nos interessa neste momento. Por que, afinal, no caso do aborto, se quer proibir a mulher de fazer uma opção livre? Simples: porque, neste caso, há um terceiro envolvido, o feto. O debate sobre o aborto passa pela desagradável discussão sobre a natureza humana do feto. Os progressistas normalmente não querem saber sobre essa discussão. A liberdade da mulher vem antes.
Ernesto Araújo chegou a afirmar que preferiria ser pária entre as nações por defender a liberdade. No entanto, no caso do aborto, tenho certeza que o nosso chanceler defende uma “limitação” na liberdade da mulher. Porque, afinal, a minha liberdade termina onde começa a do outro. E, neste caso, há um outro envolvido.
Não existe liberdade absoluta. Não existe liberdade de expressão absoluta. Assim como no caso do aborto, é preciso analisar se o exercício daquela liberdade constitui um crime. Temos liberdade para fazer o bem, não para fazer o mal. Portanto, não há como escapar da análise da fala do deputado, por mais que essa análise seja espinhosa.
Os deputados, vez por outra, a depender do seu nível de educação, chamam uns aos outros de canalhas, bandidos, corruptos. Coisas que podem gerar, inclusive, processos por injúria. Por que, então, neste caso específico, o deputado foi preso, enquanto, nos outros casos, há todo um processo antes? Não vou entrar aqui na tecnicalidade do flagrante, se o delito é contínuo ou não, enfim, se há elementos para a prisão em flagrante. Não é minha praia. Vou me concentrar na fala em si.
Para essa análise, é interessante observar os trechos destacados por Alexandre de Moraes em sua ordem de prisão (integra nos comentários). Não foram destacadas injúrias como o tamanho do bilau do Fachin ou as preferências sexuais do Barroso. Há dois tipos de falas destacadas: 1) ameaças, veladas ou não, à integridade física dos magistrados e 2) ameaças, veladas ou não, à integridade do STF e do próprio Congresso.
A coisa foi, portanto, além da injúria pessoal. As falas do deputado, se transformadas em realidade, significariam o fim das atuais instituições democráticas e sua substituição por uma “ditadura do bem”. Alguém já disse que o melhor regime de governo é uma ditadura que concorde comigo. O segundo melhor, ou o menos pior, é essa democracia que temos, com todos os seus evidentes defeitos. E o terceiro pior é uma ditadura com a qual não concordamos.
Daniel Silveira, na prática, usa sua liberdade de expressão para defender um regime político que, uma vez instalado, a primeira coisa que faz é acabar com a liberdade de expressão. Trata-se de uma contradição em termos. O regime democrático, em qualquer país, restringirá esse tipo de discurso sem medo de ser feliz. Injúria e difamação não atentam contra o regime. Discursos pelo fechamento do STF e do Congresso, sim. Por isso, entenderam os magistrados que o deputado, no mínimo, merecia uma prisão preventiva (figura prevista em nosso código penal, diga-se de passagem) mesmo antes do julgamento.
Termino com uma pequena digressão. Há quem diga que palavras, por pior que sejam, não têm o poder de criar realidades. Talk is cheap, dizem os americanos. Não é verdade. Os grandes líderes, aqueles que moveram seus povos em uma determinada direção, o fizeram através de suas palavras. Não é à toa que são famosos os discursos de Lincoln, Churchill e Hitler. Uma revolução começa no mundo das ideias, e se torna realidade através das palavras.
“Se pomos um freio na boca do cavalo para que nos obedeça, conseguimos controlar o seu corpo todo. Reparai também nos navios: por maiores que sejam, e impelidos por ventos impetuosos, são, entretanto, conduzidos por um pequeníssimo leme, na direção que o timoneiro deseja. Assim também a língua, embora seja um membro pequeno, se gloria de grandes coisas. Comparai o tamanho da chama com o da floresta que ela incendeia! Ora, também a língua é um fogo! É o universo da malícia! Está entre os nossos membros contaminando o corpo todo e pondo em chamas a roda da vida, sendo ela mesma inflamada pelo inferno!” (Tiago 3, 2-6)