Já faz alguns dias que vem circulando essa notícia, hoje reproduzida novamente pelo Estadão. Ninguém menos que Bill Gates escreveu um artigo elogiando o SUS brasileiro. Claro que esse elogio, assim, do nada, está sendo usado por aqueles que defendem a superioridade do sistema de assistência estatal à saúde, mesmo que esse elogio tenha vindo de um bilionário imperialista estadunidense.
Como sempre, nem tudo parece o que é. Fui ler o artigo no original. Antes de comentá-lo, é preciso dizer que um elogio de Bill Gates tem peso. Através de suas atividades filantrópicas, o fundador da Microsoft tem uma atuação muito diversificada em saúde em países de terceiro mundo. Gates tem, assim, uma visão muito ampla do que funciona e do que não funciona nesse campo. Portanto, o elogio ao SUS tem sim um peso.
Agora, vamos ao artigo em si. O que Gates elogia é o trabalho de prevenção exercido por centenas de milhares de agentes de saúde Brasil afora. Ele não entra no mérito do atendimento à doença em si. Muitos criticaram Gates, dizendo para que ele tentasse marcar uma consulta ou um exame pelo SUS. Mas ele não entra nesse mérito. O artigo fala somente sobre o trabalho de prevenção, que realmente vem dando resultados muito bons, se comparados aos de países de mesma renda per capita.
Aparentemente, o SUS funciona muito bem nas duas pontas do espectro do atendimento à saúde: prevenção (o que inclui as campanhas de vacinação) e atendimentos complexos. O problema está naquele grande, imenso meio de campo do atendimento à saúde básica, quando a pessoa está doente. Aí, é segurar na mão de Deus. Não, Gates não elogiou essa parte do sistema, mesmo porque não era o foco do seu artigo.
Como acontece frequentemente, a manchete se presta a todo tipo de manipulação, e com o “elogio” de Gates não foi diferente. O “bilionário estadunidense” não elogiou o SUS como um todo, mas somente o seu bom trabalho de prevenção. Como sempre, a verdade é desagradável para quem se deixa guiar somente por ideologia. No caso, o artigo de Gates desagrada a quem acha que o SUS não presta de maneira alguma, e também não serve como aval para aqueles que acham que a assistência estatal é a solução de todos os nossos problemas.
Não é por outro motivo que vemos um fluxo cada vez maior de cidadãos estadunidenses imigrando para os países da América Latina que possuem um sistema universal de saúde gratuito. Devemos recebê-los com os braços abertos, trata-se de uma questão humanitária.
O SUS é um gigantesco plano de saúde, em que seus beneficiários não pagam nada. Este plano é formado por hospitais próprios (públicos) e terceirizados (particulares). A notícia de que o A C Camargo vai deixar de atender pacientes do SUS é equivalente a dizer que o SUS vai descredenciar o hospital de sua rede. Fosse um plano privado, os beneficiários estariam se mobilizando para manter o credenciamento. Ou, em outras palavras, obrigar o plano de saúde a pagar o que o hospital está exigindo. Sendo o SUS público a ação é contra o Leviatã, o Estado brasileiro. Boa sorte aos beneficiários.
Saúde não tem preço, mas custa muito caro. Agora mesmo o Congresso acabou de aprovar um piso nacional para os salários de enfermeiros. Nada contra esses profissionais, certamente merecem ganhar mais do que ganham, mas este é mais um custo para o sistema, que deverá ser coberto pelas mensalidades dos planos de saúde e pelas verbas do SUS. Sim amigos, o dinheiro sempre sai de algum lugar.
O SUS nasceu como uma promessa de saúde de primeira para todos os brasileiros. No entanto, a primeira coisa que um brasileirinho faz quando começa a ganhar algum dinheiro é gastá-lo em um plano de saúde privado. 25% dos nacionais fazem isso, principalmente dentre aqueles que povoaram as redes com a hashtag #VivaoSUS durante a pandemia. O SUS é bom pra tomar vacina de graça e olhe lá.
O orçamento do Ministério da Saúde é de R$ 153 bilhões este ano, o que resulta em R$ 80 por mês por brasileiro que não tem plano de saúde. Qualquer plano de saúde privado mequetrefe custa, pelo menos, 5 vezes mais do que isso. Ou, de outro modo, para termos um plano de saúde estatal no mesmo nível do mais mambembe plano de saúde privado, precisaríamos investir R$ 600 bilhões a mais por ano, o que significaria aumentar os gastos públicos federais em 40%. Isso, considerando eficiência privada na gestão dos recursos estatais, o que está longe de ser garantido.
Acho que ninguém é “contra o SUS” como ideia abstrata. Seria lindo ter assistência médica de boa qualidade para todos. A hashtag #VivaoSUS é a expressão desse desejo e, ao mesmo tempo, uma palavra de ordem contra todos os desalmados que não querem que pobre tenha saúde de qualidade. O único problema é que se trata, no mínimo, de um auto-engano. Ou, em alguns casos, de hipocrisia mesmo.
O presidente do Chile anunciou que, a partir de 1o de setembro próximo, nenhum chileno vai precisar pagar pela assistência médica pública.
O Chile adotará o modelo brasileiro, em que todos os cidadãos têm acesso gratuito ao sistema de saúde. Segundo a matéria, pessoas abaixo de 60 anos e que ganham acima de 420 dólares mensais precisam pagar por parte de seu atendimento. Com o acesso universal, não mais.
É interessante observar os números do Chile e compará-los com os do Brasil. Segundo a reportagem, 20% dos chilenos não usam o sistema público. Aqui no Brasil, essa proporção é de cerca de 25%. Ou seja, mesmo sendo de graça, há proporcionalmente mais brasileiros que preferem pagar por um plano de saúde do que depender do sistema público, o que pode indicar que o sistema de saúde chileno presta, em média, melhores serviços do que o sistema brasileiro. (Aqui não estou ajustando pelo Gini e pela renda per capita dos dois países, o que, provavelmente, traria resultados ainda mais desfavoráveis ao Brasil, dado que os 25% mais ricos no Brasil devem ter renda abaixo dos 20% mais ricos no Chile).
Vamos agora ao problema do financiamento desta iniciativa. Há um problema inicial: provavelmente, o custo do sistema aumentará. Hoje, os co-pagamentos certamente inibem o uso indiscriminado do sistema. Com a eliminação do co-pagamento, há um moral hazard envolvido, pois o custo para usar o sistema passa a ser zero. Há quem defenda que, em se tratando de saúde, o custo não deveria ser um impeditivo para usar o sistema. Ok, justo. Mas que o custo de manutenção do sistema vai aumentar, não há dúvida.
Para manter o nível atual de excelência do atendimento público com demanda maior, outra fonte de recursos deverá ser encontrada para repor o dinheiro que será deixado de ser arrecadado com os co-pagamentos. Só há duas fontes possíveis: impostos e dívida, que nada mais é do que impostos diferidos (as gerações futuras precisarão pagar, com mais impostos, a dívida feita hoje. A não ser que se financie a dívida com inflação). No caso do Chile, ambos os casos são bem tranquilos: a carga tributária é de cerca de 10 pontos percentuais do PIB menor que a brasileira, e a dívida pública é de apenas 30% do PIB, contra 80% no Brasil. Portanto, espaço tem. A questão é quem paga.
Como mencionamos acima, quem ganha abaixo de 420 dólares mensais já não paga para usar o sistema. Este patamar de renda é equivalente à renda média do brasileiro. Como a renda per capita chilena é 65% maior que a brasileira, a renda média do chileno deve ser de uns 700 dólares mensais. Portanto, esse patamar de 420 dólares é 40% abaixo da renda média. Seria algo como R$ 1.300 mensais no Brasil. Ou, grosso modo, um salário mínimo aqui. Portanto, os mais pobres no Chile já são beneficiados com a isenção.
Com a isenção geral, “famílias de classe média”, no dizer da matéria, serão beneficiadas, e economizarão cerca de 300 dólares por ano com saúde. O financiamento deste gasto adicional somente não concentraria renda se o aumento marginal de impostos ocorresse sobre a renda do andar de cima. O aumento da dívida pública afeta todos os chilenos igualmente. A matéria, infelizmente, não traz detalhes a respeito.
Posso estar enganado, mas desconfio que, daqui a uma geração, os chilenos ainda estarão comemorando o acesso universal à saúde (#vivaloSUS), mas estarão coçando a cabeça para entender porque o sistema de saúde e a distribuição de renda no país pioraram.
Saúde é um troço complicado no mundo inteiro. Nunca ninguém está satisfeito. Em qualquer pesquisa de opinião, a saúde sempre aparece como Top 3 entre as preocupações dos cidadãos e, normalmente, recebe avaliação negativa.
Sempre se aponta o modelo do país A, B ou C como ideal. Normalmente quem faz isso não vive nos países A, B ou C para experimentar na pele o tal sistema de saúde modelar. Por exemplo, sempre ouvi falar muito bem do sistema inglês de saúde, em contraposição ao americano, por exemplo. Até que assisti ao filme ”Eu, Daniel Blake”. Se você assistiu, sabe do que estou falando.
E por que isso acontece? Porque os seres humanos, apesar de desejarem viver eternamente, infelizmente morrem. Há um descompasso insanável entre desejo e realidade, que gostaríamos que fosse resolvido pelo sistema de saúde. Claro, racionalmente sabemos que isso não é possível. Mas quem disse que somos racionais quando se trata de nossa saúde? Neste caso, queremos tratamento premium pagando quantias módicas.
Essa já longa introdução vem servir como pano de fundo para que possamos analisar a reportagem principal de hoje do Estadão: “Reajuste dos planos de saúde na faixa acima de 59 anos pode superar os 40%”.
Estas são as letras grandes, aquelas que a maioria lê sem entrar no detalhe da notícia. Não conta, por exemplo, que o preço dos planos de saúde foram reduzidos em 9% em 2021, resultando em um reajuste de 6% no acumulado dos dois anos. Além, claro, de que colocar na manchete o reajuste por mudança de faixa etária, que sempre acontece e não é novidade, embute uma segunda intenção. E é isso que vamos analisar.
A reportagem, em si, é jornalisticamente correta. Ouve os dois lados e tals. O fato de ter virado manchete, no entanto, indica que existe um problema. Claro que um reajuste de 40% é um problema. A questão é como se “resolve” esse problema. Subliminarmente, resolve-se demonizando-se a saúde privada.
A ilustrar este ponto, temos um artigo de uma professora da UFRJ, Lígia Bahia.
Coincidentemente, em entrevista ao Valor de hoje, o candidato a governador do RJ, Marcelo Freixo, cita Lígia Bahia como uma das pessoas que poderiam fazer parte da sua equipe de governo. Portanto, a professora tem pedigree conhecido. Foi convidada a escrever uma análise já se sabendo o que iria escrever.
E a professora da UFRJ não decepcionou quem a convidou a ocupar o espaço do jornal. Defendeu que o melhor modelo é um que seja “solidário”. E, para isso, adivinha, é necessário que tudo “fique sob a responsabilidade do poder público”. A solução, portanto, seria um grande SUS.
Não deixa de ser irônico que os professores da UFRJ possam contar com convênios particulares. “SUS é um modelo ideal, mas gosto de pagar convênio particular porque rasgar dinheiro é meu passatempo preferido”.
Claro, sempre se pode dizer que o SUS não presta bons serviços porque não é adequadamente financiado. Bem, o orçamento do ministério da saúde para 2022 é de R$ 160 bilhões. Dividindo-se pela população que não tem plano de saúde (mais ou menos 170 milhões) resulta em um gasto per capita de mais ou menos R$ 950. Isso considerando todo mundo, pessoas de todas as idades. Um plano da Prevent Senior, voltado apenas para as pessoas mais idosas, custa mais ou menos isso, e provê um serviço alguns degraus acima do SUS. As pessoas, quando podem, assinam planos que custam R$ 500 para fugir do SUS. Pergunta: quanto mais dinheiro seria necessário para tornar o SUS uma opção tão boa quanto planos que custam R$ 500?
Para aqueles que acham que as operadoras ganham rios de dinheiro às custas da saúde do povo, normalmente sugiro a mesma coisa que aconselho quando as pessoas dizem que os bancos “lucram muito”: seja sócio. Compre ações dessas operadoras, e seja sócio desses lucros maravilhosos. Já aviso, no entanto, que quem tentou fazer isso não tem se dado bem ultimamente. Por exemplo, veja abaixo a rentabilidade das ações da Hapvida, uma das maiores operadoras de planos de saúde do país, comparada com a rentabilidade do Ibovespa nos mesmos períodos:
Hapvida: 2022: -35%; 1 ano: -58%; 3 anos: -7%
Ibovespa: 2022: +6%; 1 ano: -12%; 3 anos: 15%
Podemos observar que, talvez, as operadoras não estejam lucrando tanto assim.
Não tenho procuração das operadoras para defendê-las. São empresas que buscam lucro, que é a melhor forma (na verdade, a única forma) de continuarem oferecendo os seus serviços ao longo do tempo. E seus serviços são absolutamente necessários. Caso não fossem, não haveria compradores de planos de saúde. A demanda (inclusive dos professores da UFRJ) justifica a oferta. E a demanda só existe porque o SUS é uma solução capenga, que está longe de entregar aquilo que o #vivaosus promete.
Os serviços prestados pelos convênios particulares estão longe, muito longe, da perfeição. E como vimos logo no início, quando se trata de saúde, a perfeição estará sempre distante. Mas aqui se trata de entender quais as opções disponíveis, dado um determinado orçamento. Quem não está satisfeito, sempre pode contar com o SUS.
O Estadão traz a história de um urbanista que viveu com dois corações durante um período. Trata-se de uma nova técnica de transplante, desenvolvida no Incor, que evita o uso de coração mecânico, procedimento caríssimo não coberto pelos planos de saúde.
A história é boa, mostra o avanço da medicina local. Mas, claro, não deixaram passar a oportunidade de fazer proselitismo pró SUS. Tanto o paciente, que “viu a finitude da vida e a importância do SUS”, quanto o repórter, que fez questão de repercutir a “visão”.
Nada é por acaso. Por trás dessa declaração inocente, está uma crítica velada a esses “neoliberais insensíveis que querem privatizar a saúde do brasileiro”. Afinal, “saúde não é mercadoria”, como bem nos lembrou, outro dia, uma ministra do STF.O curioso nessa história é que estamos falando de um urbanista, profissional de classe média, que certamente tem o seu plano de saúde privado. Foi parar no Incor provavelmente porque seu plano não cobria o procedimento necessário, e o Estado, financiado por todos nós, pagou pela sua cura. Se eu estivesse no lugar dele, também estaria tecendo loas ao SUS. Afinal, salvou a sua vida.
Tem só um pequeno problema: o SUS não foi feito para salvar a vida dos 1% mais ricos da população. O SUS foi feito para prestar atendimento de saúde para os 99% da população que não têm acesso aos hospitais particulares. Que o sistema privado é melhor que o público, não há dúvida. Se assim não fosse, não existiria a indústria de planos de saúde ou esses consultórios de baixo custo que pululam pelo país. A primeira coisa que um indivíduo faz quando começa a ganhar algum dinheiro é contratar um plano de saúde e colocar o filho na escola particular. Saúde e educação públicas são o fetiche da intelectualidade, mas cada um se defende quando se trata de resolver a própria vida.
Ficou famoso o slogan “viva o SUS” logo após tomar a vacina. Claro, uma campanha nacional de vacinação não seria possível sem a coordenação do Estado. O que não significa que os postos de aplicação precisassem ser, necessariamente, públicos. Haveria formas de parceria com a iniciativa privada. Mas, mesmo considerando a utilidade do SUS para a campanha de vacinação, vamos combinar que montar todo um sistema de saúde só para campanhas de vacinação não parece justificar-se economicamente.
O ponto é que nem a troca de um coração nem uma campanha nacional de vacinação escondem a precariedade do nosso sistema universal de saúde. Basta perguntar para as pessoas que esperam meses na fila por uma consulta ou que adentram nos hospitais públicos por esse país afora (o Incor não está no padrão SUS).
Defender o SUS tem como objetivo se contrapor a uma visão mercantilista da saúde. A saúde é um bem universal, que deve ser atendido por um sistema universal. Desde, claro, que eu tenha acesso a hospitais particulares. Sabe como é, o SUS é ótimo, desde que seja para os outros.
Interessante levantamento sobre parcerias público-privadas é repercutido hoje no Estadão. Trata-se de uma espécie de censo do avanço desse tipo de parceria no país.
Lembrei da grande repercussão negativa que causou o pedido, por parte do governo federal, de um estudo a respeito de possíveis parcerias no âmbito do SUS. Lembro da histeria que tomou conta da bancada da Globo News, que gastou horas debatendo a “privatização” do SUS. “Debatendo” é modo de dizer, porque em um debate há ideias diversas sendo discutidas. No caso, havia uma unanimidade: o SUS jamais deveria ser “privatizado”. Claro que todos os jornalistas ali presentes nunca devem ter colocado os pés em um hospital público.
A reportagem cita o exemplo de um hospital de Salvador, sob responsabilidade do governo do PT, e que firmou parceria de administração com a iniciativa privada. Um escândalo, que não teve a devida repercussão na Globo News e na imprensa em geral. Afinal, “privatizaram” um hospital público. Onde estão os defensores do SUS?
Cada vez me convenço mais de que o ideal para o Brasil seria um governo de esquerda, que acalma a consciência da inteligentzia tupiniquim, com ideias de direita, que são as que funcionam. Se existisse tal bicho, claro.
Em uma noite de setembro de 2017 recebi um telefonema devastador: meu pai, que já estava extremamente debilitado por um Parkinson agressivo, tinha sofrido um AVC. Fui até o hospital da Prevent Senior onde ele havia sido internado.
Depois de me mostrar as radiografias e tentar me explicar, da melhor maneira possível, o que havia acontecido, o médico deu seu veredito: o cérebro do meu pai estava irremediavelmente perdido, ele viveria como um vegetal dali em diante e, provavelmente, não por muito tempo. Junto com ele estava uma médica paliativista. Era a primeira vez que eu ouvia falar dessa especialidade. Com muita delicadeza, ela me explicou que, dali em diante, havia pouco o que o hospital pudesse fazer. O melhor procedimento seria mantê-lo em casa, para que vivesse seus últimos dias cercado dos cuidados da família.
Claro que desconfiei daquilo. A primeira coisa que você pensa é que o hospital paga esses profissionais para poupar custos. Não tive dúvida: depois da alta, procurei um médico de minha estrita confiança, ao preço de R$ 1.100 a consulta. Coloco o preço da consulta como uma demonstração da experiência do médico.
Este médico, após examinar meu pai, reuniu a família para dar o veredito: meu pai ficaria melhor longe dos hospitais. O mais adequado para ele, naquele momento, seria receber cuidados paliativos. Em um hospital fariam de tudo para mantê-lo vivo, prolongando artificialmente uma vida que a natureza já dava insistentes sinais de que estava chegando ao fim. Exatamente o mesmo arrazoado da médica da Prevent. Meu pai veio a falecer 5 meses depois.
Fiz questão de contar essa história porque esse tema dos cuidados paliativos foi uma das acusações que os médicos anônimos fizeram ao plano de saúde. A minha experiência é só a minha experiência, mas mostra que esse assunto é realmente muito delicado e pode ser facilmente confundido com controle de custos.
O fato é que as pessoas querem um plano de saúde que garanta a vida eterna a preços módicos. A vida não tem preço, mas mantê-la custa caro. Eu poderia ter batido o pé e internado meu pai para mantê-lo vivo, na esperança de que, um dia, ele acordaria de seu estado vegetativo. Quanto tempo mais ele viveria, sofrendo entubado em uma cama de hospital?
A Prevent Senior é uma empresa. Como tal, deve gerar lucro para sobreviver e continuar a oferecer os seus serviços. Eu fico aliviado toda vez que ouço dizer que a Prevent tem muito lucro. Isso significa que os planos que oferece, de custo razoável, são suficientes para fechar a conta. O fato de buscarem redução de custos não é pecado, é virtude. Claro, sempre no melhor interesse razoável de seus clientes.
Minha sogra tinha um seguro-saúde da Sul América, que custava mais de R$ 3 mil por mês. Isso há mais de 5 anos. Meus pais eram clientes da Prevent há muitos anos, sempre muito satisfeitos com o atendimento. Fomos pesquisar, exatamente como preconiza a reportagem do jornal: a Prevent tinha menos reclamações por segurado do que a Sul América, tanto na ANS quanto no Reclame Aqui.
O segredo é simples: como a Prevent é verticalizada, não há discussão sobre coberturas: cliente da Prevent entrou em um hospital da Prevent, tudo ali vai ser coberto. Grande parte das reclamações contra planos de saúde se dá pelas coberturas, o que vai ser pago pelo seguro, o que vai ser pago pelo segurado. Na Prevent não tem isso, tudo ali é pago pela Prevent. Nesse sentido, funciona como o SUS.
Agora, a Prevent está no olho do furacão. A reportagem afirma que “todos” esperam que a Prevent seja punida pelos seus malfeitos, mas que o plano continue a prestar os seus serviços, pois não há alternativa mais eficiente. Quase uma contradição em termos.
O grande pecado da Prevent teria sido o de forçar a prescrição do chamado “kit tratamento precoce”. Ora, se a operadora tem como objetivo o lucro, seria no mínimo uma contradição receitar remédios ineficazes contra uma doença. Se o fez, é porque estava convicta de que funcionavam. Aliás, há um grande ausente na reportagem: o Conselho Federal de Medicina. Como órgão regulador da atividade médica, seria ele a determinar o limite entre medicina e curandeirismo. Por que não foi ouvido pela reportagem?
A matéria clama por mais supervisão. A lógica é que a operadora privada vai sacanear seus clientes se não houver supervisão do Estado. Como se uma empresa que sacaneia seus clientes de maneira contumaz não estivesse fadada ao fracasso. No limite, vamos todos para o SUS, onde é o Estado que atende diretamente o cidadão. Nesse caso, não há que se falar em interesses privados na relação hospital-médico-paciente. Sem a iniciativa privada estragando tudo, o SUS deveria ser um modelo de atendimento da população. A julgar pela procura por planos privados, não é o que acontece. Por algum estranho motivo, as pessoas preferem pagar para serem sacaneadas pela iniciativa privada.
Da forma como eu vejo, o que temos hoje é uma empresa que foi apanhada (provavelmente em função do ego de seus fundadores, que achavam que encontrariam a cura da Covid) em um enredo político. Tem os seus podres, como toda empresa os tem. Seus clientes, no entanto, estão, em geral, satisfeitos. Daqui a alguns meses, a vida voltará ao normal: a Prevent continuará funcionando normalmente para os remediados que podem pagar os seus planos, enquanto os políticos da CPI continuarão se internando no Sírio, que ninguém é de ferro.
Meus amigos César Mattos e Cleveland Prates desenvolveram um artigo muito bem estruturado, defendendo a compra e distribuição de vacinas pela iniciativa privada. Resumo a seguir o que, na minha opinião, é o principal argumento colocado.
Digamos que você tenha dois e somente dois estados da natureza:
Estado 1) o governo consegue importar 100 unidades de vacina. As 100 vacinas são distribuídas de acordo com uma fila determinada pelo governo.
Estado 2) governo mais iniciativa privada conseguem importar 110 vacinas. 105 dessas vacinas são distribuídas pelo governo usando o critério de fila e 5 são distribuídas para quem pode pagar mais.
Não existe um terceiro estado da natureza em que o governo consiga importar 110 unidades. As 10 unidades adicionais somente foram possíveis porque a iniciativa privada pagou mais e conseguiu uma oferta adicional.
Pergunta: qual o estado da natureza que otimiza a imunização no país? Obviamente, o estado 2.
Minha única restrição a este raciocínio é que nada garante que a iniciativa privada brasileira teria mais sucesso do que iniciativas privadas de outros países. Em um ambiente de super restrição de oferta, poderíamos entrar em um jogo de “rouba monte”, prejudicando a oferta para os governos. No final, o governo brasileiro poderia ter somente 90 vacinas, e não as 100 do estado 1. Talvez por isso os laboratórios, hoje, estejam negociando apenas com os governos. Mais para frente, quando a oferta global de vacinas estiver mais normalizada, certamente a iniciativa privada será bem-vinda para ajudar a aumentar a oferta de vacinas no país.
Ouvindo agora a repercussão na Globo News sobre a proposta de estudos sobra a possibilidade de terceirização das Unidades Básicas de Saúde.
Todos horrorizados. Todos, jornalistas e especialistas. Aguardava ansioso algum argumento mais técnico, mas só ouvi que “a saúde é dever do Estado, e o Estado não pode tirar o corpo fora”. Uma espécie de dogma que não se pode discutir, sob pena de excomunhão da sociedade brasileira. Este é o mindset.
Claro que a discussão terminou com loas ao SUS. Ah, se não fosse o SUS, a pandemia teria efeitos muito mais graves no Brasil, ah porque o SUS isso, porque o SUS aquilo. Por óbvio, ninguém naquela bancada, nem jornalistas, nem especialistas, depende do SUS para cuidar da sua própria saúde ou da saúde da sua família.
PS.: não tenho opinião formada sobre a terceirização das UBS. Mas acho que a discussão deveria se dar no nível técnico, não dogmático. Só acho.