Diretores do Google e Telegram serão investigados. Pelo que entendi da notícia, serão as pessoas físicas, não jurídicas. Se isso não é intimidação, preciso procurar o significado dessa palavra no dicionário.
A investigação (curioso para saber o que irão investigar) foi pedida pelo exemplo de democrata, Arthur Lira. A acusação é de abuso do poder econômico para disseminar desinformação sobre o PL das fake news. Bem, não ocorreu a nosso democrata chamar de “abuso de poder econômico” a campanha maciça da imprensa, principalmente a Globo, por meio de seus jornalistas e reportagens, a favor do PL, incluindo o uso e abuso de uma correlação emotiva, mas fake, entre um suposto aumento da violência nas escolas e as redes sociais. Neste caso, o uso do poder econômico para influenciar o debate estava do lado da “verdade”. De modo que o problema não é exatamente o uso do poder econômico, mas o seu abuso para cometer um crime. No caso, uma opinião contrária ao PL das fake news.
Abuso de poder econômico para ganhar mercado ou eleições é crime tipificado. Abuso de poder econômico para propagar ideias precisará encontrar seu lugar no Código Penal. E, se for criada essa jurisprudência ao arrepio da lei, que se prepare a imprensa quando for acusada da mesmíssima coisa por um governo menos amigo.
Todas as reportagens sobre este assunto insistem no ponto de que as Big Techs foram as responsáveis pelo adiamento da votação do PL. Como se os deputados fossem uns bocós e, por conta de um link na página inicial do Google, tivessem mudado de ideia. O problema é que o governo Lula tem uma base de geleia, ainda mais quando se trata de um assunto ideológico como esse. A verdade verdadeira é que uma parte relevante do parlamento desconfia das intenções do PT quando patrocina com tanto ardor um projeto de lei dessa natureza. Mesmo que contasse com um texto perfeito, acima de quaisquer suspeitas (o que não é verdade, já analisei isso aqui), o PL veio para a votação com um vício insanável, o apoio incondicional do PT. Ações como os de Alexandre de Moraes, Flávio Dino e, agora, Arthur Lira, somente fazem aumentar as desconfianças dos parlamentares.
A empresa nunca fez muita questão de parecer correta. Ao contrário de Meta ou Google, com sedes na disneylândia do politicamente correto, o Telegram pertence a um empreendedor russo. Já viu, né? Se nem a lei é propriamente um guia, quanto mais detalhes de convivência civilizada. O Telegram, como dizemos, está C&A para o que pensam ou dizem as autoridades brasileiras.
No entanto, mesmo com esse background, seu texto de hoje pareceu algo fora de contexto. Apesar de o PL das Fake News já ter sido retirado de pauta, e ter se decidido fatiá-lo para votar somente a parte de remuneração da mídia, vem o Telegram e entra com os dois pés no peito, lembrando muito um volante estabanado que faz uma falta violenta completamente descenecessária no meio de campo, em um lance sem perigo, e recebe o cartão vermelho.
Mas, com todo esse burburinho sobre jogadores que protagonizam lances estranhos, é de se desconfiar quando um jogador provoca a própria expulsão, assim, do nada. E foi mais ou menos isso que o Telegram fez.
Nem a maçaneta da porta de entrada da sede do Telegram achava que uma mensagem daquela iria passar incólume. No entanto, tratava-se de um risco calculado: o STF teria que ser muito macho para suspender o serviço no Brasil (usado por milhares de pessoas), ou mesmo estabelecer uma multa bilionária (milionária ok, valeria pela causa). A reação do STF foi aquela esperada, e acho que saiu melhor que a encomenda: a censura do conteúdo postado pelo Telegram, e a imposição de um texto escrito pelo próprio ministro, em uma demonstração on the job daquilo que o ministro diz não existir.
A pergunta que deve ser feita é a seguinte: depois dessa demonstração de força do STF, os deputados estão mais ou menos propensos a votarem a favor do PL das Fake News? A depender da resposta, saberemos quem se aproximou mais do seu objetivo, o Telegram ou Alexandre de Moraes.
O Telegram chutou o pau da barraca, e resolveu enviar para toda a sua base de usuários um texto descascando o PL das Fake News. Eu printei a mensagem antes que o aplicativo fosse obrigado a retirar a mensagem de sua página ou, pior, fosse tirado do ar. Vamos analisá-la.
O Telegram começa de maneira pouco diplomática, afirmando que a democracia estaria sob ataque no Brasil. Trata-se de uma opinião forte, que não se espera de uma comunicação corporativa, mas, ainda assim, uma opinião. A empresa não determina quem estaria atacando a democracia, mas entende-se que sejam os patrocinadores do PL.
Em seguida, a empresa afirma que o PL, da forma como está, poderia forçar, inclusive, o encerramento das suas atividades no Brasil. Alguns poderiam alegar que se trata de uma chantagem barata, mas a empresa pode, por suposto, ameaçar fechar suas portas a qualquer momento. Esta ameaça pode ou não ser crível, mas não parece ser um crime.
A seguir, afirma que o PL “concede poderes de censura ao governo”. Parece uma afirmação exagerada ou imprecisa, na medida em que este “poder” do governo é apenas indireto, ao exigir que as plataformas removam conteúdos inadequados. O problema do PL (e veremos isso no próximo parágrafo) é delegar às plataformas o poder de definir o que pode ou não pode ser publicado, elevando as plataformas ao status de juízes de conteúdo, sob pena, e esta é a crítica do Telegram aqui (e, de resto, de todas as outras plataformas), de serem consideradas coniventes. Ou seja, não é exato dizer que o governo será um censor, mas na medida em que as plataformas forem penalizadas por não removerem conteúdos que juízes ou agências do governo considerem inadequados, o governo passa a ter um poder discricionário sobre as plataformas que, na prática, as obriga a serem a longa manus do governo quando se trata de conteúdo na internet.
No parágrafo seguinte, o Telegram é exato ao afirmar que o PL “transfere poderes judiciais aos aplicativos”, ponto que eu já havia levantado no post em que analiso o PL. O resultado, como adiantei, é que as plataformas aplicarão critérios apertados, levando a uma hipercensura de conteúdos. Uma ameaça de morte é relativamente fácil de classificar como crime. O problema, claro, ocorre quando opiniões políticas ou de costumes podem ser classificados como “discurso de ódio” ou “ataques à democracia”. As plataformas não querem esse tipo de responsabilidade, pois não têm os instrumentos nem a legitimidade para tanto. Aliás, o próprio tratamento dado pelo STF a este texto do Telegram mostra o quão pantanoso é esse terreno.
Em seguida, a empresa afirma que o PL “cria um sistema de vigilância permanente”. Bem, isso é verdade, não opinião, está lá no art. 11: “os provedores devem atuar diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços, envidando esforços para aprimorar o combate à disseminação de conteúdos ilegais gerados por terceiros, que possam configurar:”, e seguem-se os crimes que as plataformas precisam vigiar, incluindo “crimes contra o Estado Democrático de Direito”, com base em decreto de 1940, editado por ninguém menos do que o ditador Getúlio Vargas!
O problema é que o Telegram ousou afirmar que este é um sistema “semelhante ao de países com regimes antidemocráticos”. Bem, isso é a opinião do Telegram. Pode estar certa, pode estar errada, mas não me parece que esta afirmação em si atente contra o Estado Democrático de Direito.
Por fim, o Telegram diz que o PL seria desnecessário, pois o país já “possui leis para lidar com as atividades criminosas que esse projeto de lei pretende abranger”. Daí, em seu estilo incendiário, o Telegram afirma que o PL “visa burlar essa estrutura legal, permitindo que uma única entidade administrativa regule o discurso se supervisão judicial independente e prévia”. Bem, o Telegram está desatualizado, pois essa parte (o da entidade supervisora) foi retirada do PL. Mas, mesmo assim, parece forte demais afirmar que o PL tem como objetivo “burlar” a atual estrutura legal, o que poderia ser interpretado como uma acusação de desonestidade por parte dos congressistas que estão por trás do PL.
No fim, o Telegram sugere que o que vai acima “apenas toca a superfície” do problema. Trata-se de recurso retórico, é óbvio que o problema está todo descrito aí acima. Além disso, menciona Google e Meta, trazendo para a arena outras empresas que também publicaram suas análises sobre o PL, inclusive com o link para essas análises. Obviamente, Google e Meta trataram de dizer que não têm nada a ver com o discurso incendiário, mas os links não mentem.
O STF (ministro Alexandre de Moraes) ordenou que o Telegram tirasse a mensagem de sua página, e substituísse por um texto em que afirma que a mensagem anterior do Telegram caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO” (assim mesmo, em caixa alta) contra nada menos que “o Congresso Nacional, o Poder Judiciário, o Estado de Direito e à Democracia Brasileira”, pois teria cometido fraude ao distorcer a discussão e os debates sobra o PL, “na tentativa de induzir e instigar os usuários a coagir os parlamentares”.
Que o Telegram, fiel ao seu estilo, não foi nem um pouco delicado ao tratar o assunto, não resta dúvida. Seu texto é forte, acusando, de várias formas, os defensores do PL de atacarem a democracia. Agora, daí vai uma distância imensa ao cometimento de algum crime tipificado, que merecesse a intervenção do judiciário. O Google publicou um texto muito mais bem-educado, e mereceu o mesmo fatwa dos representantes do Estado brasileiro. De onde se conclui que o problema não foi a forma, mas o conteúdo.
Chego a duvidar que este texto entre aspas tenha sido mesmo escrito por um ministro da Suprema Corte. O tom do texto consegue rebaixar-se ao mesmo nível do texto do Telegram, em uma falta de serenidade que fica bem para panfletos, não para decisões judiciais. Isso na forma. No conteúdo, fico realmente preocupado quando um texto de críticas a um PL, por mais que seja de uma parte interessada, por mais que tenha frases fortes, é considerado um “ataque à Democracia Brasileira”. Se esse texto do Telegram não pode, o que pode? Quem define o que pode ou não pode? Qualquer texto contra o PL das Fake News seria, por definição, anti-democrático? Preciso começar a me preocupar com o que eu escrevo aqui?
Mas o que mais me faz desconfiar de que essa retratação do Telegram não foi escrito por Alexandre de Moraes é a crase antes do verbo em “à coagir”. Nunca um ministro do STF cometeria um erro gramatical desse naipe.
Agora estou tranquilo. Posso ler todos os conteúdos que recebo no Facebook, WhatsApp, Instagram, YouTube, Google, TikTok, Twitter e Kwai sem medo de estar sendo manipulado pelas forças do mal. É impagável essa sensação de paz ao saber que tudo o que vou ler é verdadeiro e bom, de acordo com critérios que eu mesmo não seria capaz de elaborar com a minha mente limitada. Que bom que existe o TSE para nos proteger desses disseminadores do mal.
Ah, e sim, não vou sequer instalar esse tal de Telegram, onde o esgoto corre a céu aberto e os guardiões da pureza e da verdade não alcançam. Nem sequer respondem aos e-mails do presidente do TSE! Será que eles sabem com quem não estão falando? Não, não vou baixar. Vai que eu me contamine e passe a acreditar naquilo que eu não deveria acreditar. Cruz, credo!
Fui dar uma olhada a respeito da prática de bloquear aplicativos e sites ao redor do mundo. Há alguns casos.
A China é, de longe, o país que mais bloqueia o acesso a aplicativos específicos. O motivo não poderia ser outro: segurança nacional, ameaçada por ideias subversivas.
O mesmo ocorre em Cuba, que bloqueou o acesso às redes sociais durante os últimos protestos.
O governo da Índia vem bloqueando o acesso a aplicativos chineses, como forma de se proteger de “roubo de dados”.
O mesmo fez Donald Trump no apagar das luzes de seu governo, ao emitir uma ordem executiva para bloquear oito aplicativos chineses de pagamento. O motivo: tráfego de dados sensíveis e que, supostamente, ficariam disponíveis para o governo chinês. Biden revogou essa ordem em junho último, mas seu governo continua discutindo o que fazer com essa fragilidade.
Notem a diferença entre os casos de China e Cuba e os casos de India e EUA. Enquanto nestes últimos há uma preocupação com a exposição de dados para um governo hostil, nos primeiros o que há é pura e simplesmente censura de conteúdo contra seus próprios cidadãos.
Com relação especificamente ao Telegram, a notícia é de que o aplicativo já foi bloqueado em 11 países.
Na matéria, obviamente, não há uma lista desses 11 países. O número está lá somente para passar a impressão de que não estamos sozinhos, a oposição ao Telegram está se tornando generalizada. Mas não é à toa que a lista de países não foi divulgada pela reportagem.
Dando um Google, descobrimos que essa lista de países preocupados em proteger suas democracias incluem Rússia, Irã, Ucrânia, China, Cuba, Bahrein, Belarus, Paquistão e Indonésia. A justiça brasileira, ao ameaçar bloquear o Telegram, se alinha a esses gigantes da democracia. Parabéns aos envolvidos.
Certamente você já tentou segurar água com as mãos em formato de concha. É questão de (pouco) tempo para a água desaparecer entre os dedos.
Essa tentativa do TSE de controlar os aplicativos de mensagem se assemelha a esse fenômeno. As mensagens chegarão ao seu destino, o que quer que o TSE faça ou deixe de fazer. Sempre foi assim ao longo da história.
Apenas para ficar nos casos mais famosos, Hitler não precisou de um aplicativo de mensagens para ganhar corações e mentes da maioria do povo alemão, assim como Stálin não precisou do WhatsApp ou do Telegram para manter toda uma sociedade sob o regime do medo durante vários anos. Claro que se essas ferramentas estivessem disponíveis eles as usariam. Mas a história mostra que não são essenciais. O que importam são as ideias, e essas se espalham como a água, por mais que se tente segurá-las.
Para não dizer que usei apenas exemplos extremos, grandes movimentos cívicos brasileiros, que tinham como objetivo a derrubada de regimes, como a marcha da família com Deus pela liberdade ou os comícios das Diretas Já, não precisaram de aplicativos de mensagens para atraírem apoio.
Claro que os aplicativos de mensagens potencializam o “problema” do compartilhamento de ideias, pois permitem um alcance maior e mais rápido. É um pouco como comparar carroças com carros, ambos servem para chegar do ponto A até o ponto B, mas o carro chega mais rápido. Mas isso não muda a natureza da coisa, como a história demonstra. Mesmo porque, as mesmas ferramentas estão disponíveis para todos. Então, o que vale, o que continua valendo, sempre, são as ideias.
E este é o ponto fundamental: grande parte das pessoas forma sua opinião e apenas DEPOIS busca informações (verdadeiras ou falsas) que confirmem o seu ponto de vista. Posso dizer que sou veterano de redes sociais. Nunca vi, em todos esses anos, uma única pessoa mudar de opinião em discussões no Facebook ou em grupos no WhatsApp. Pelo contrário, parece que as opiniões iniciais se cristalizam ainda mais depois dessas discussões. Assim, as pessoas filtram as informações que querem receber, não são a página em branco idealizada pelos ministros do TSE. Por isso, controlar os aplicativos de mensagem, além de ser uma tarefa de Sísifo, é inútil.
Por fim, não deixa de ser curioso o presidente do TSE, que é também ministro do STF, levantar o problema da falta de representante do Telegram no país apenas em relação às eleições.
O Telegram pode ser (e certamente é) usado por contraventores para planejar os seus crimes. Esse tipo de uso, no entanto, não chama a atenção do STF, que nunca levantou o problema da falta de representante do aplicativo no Brasil. O que não pode é servir de canal para feique nius durante as eleições. Pensando bem, para um STF que julga com base em mensagens hackeadas ilegalmente do próprio Telegram, está tudo muito coerente.