Som da Liberdade – uma resenha e uma análise

Ontem assisti ao filme Som da Liberdade. Por algum motivo que a mim me escapa, esse filme está cercado de polêmica, sendo pomo de discórdia entre os dois lados do espectro político. Vou aqui analisar o que vi e tentar entender porque existe a polêmica.

O filme em si é realmente muito bom. Um thriller de tirar o fôlego, salpicado com momentos de emoção. Confesso que foi difícil segurar as lágrimas em uma cena. Na fila do toilette feminino depois do filme, ouvi uma mulher dizendo: “chorei em várias partes do filme”. As atuações são convincentes, com destaque para as duas crianças que protagonizam a história.

O filme é competente também em como revela o mundo interior de Tim Ballard, o policial interpretado por Jim Caviezel. Sua religiosidade sólida (falaremos mais sobre isso adiante) aparece somente em uma única frase dita em um diálogo, e depois repetida no final do filme: “God’s children are not for sale”, que foi erroneamente traduzida como “as crianças de Deus não estão à venda”, quando, na verdade, em inglês, essa frase se refere a “filhos de Deus”, o que a torna muito mais ampla. Esta frase levanta levemente o véu da alma de Tim, o porquê ele fez o que fez.

O filme, portanto, é bom, mas sua qualidade não explica sozinha porque está em primeiro lugar nas bilheterias do Brasil. No post sobre cotas para filmes nacionais, mencionei que o diretor do Cinemark afirmou que um filme, para bombar, precisa ser promovido. As verbas de marketing dos grandes blockbusters são gigantescas. Ocorre que Som da Liberdade foi produzido pela Angel Studios, um pequeno estúdio Mórmon de Utah que, com certeza, tem verba limitada de marketing. Vale a pena falar um pouco sobre essa Angel.

Nascida como VidAngel, a empresa se dedicava a comercializar um filtro de controle de conteúdo de streaming para pais. Foi processada pelos estúdios por uso não autorizado de direitos autorais, o que a fez mudar de ramo, produzindo seus próprios conteúdos para famílias conservadoras. O estúdio se financia através de crowdfunding, o que funciona muito bem em nichos em torno de temas que mexem com convicções profundas, como é o caso dos valores conservadores. As pessoas colaboram porque estão convencidas de que estão fazendo um bem para o mundo. No final do filme, o ator Jim Caviezel aparece pedindo doações para o estúdio, para que ingressos possam ser doados. Um código QR na tela redireciona para uma página de doações. Vi vários no cinema apontando suas câmeras. Essa é a promoção possível para quem não tem verba de marketing. E tem funcionado.

A Angel comprou os direitos de Som Da Liberdade por US$ 5 milhões (dinheiro de crowdfunding) da Disney, que havia engavetado o projeto quando comprou a 20th Century Fox, estúdio que havia produzido grande parte do filme. Dando uma olhada na bilheteria até o momento (mais de US$ 200 milhões and counting), parece que a Disney, no mínimo, tomou uma decisão comercial errada. Se é que a decisão foi tomada somente por motivos comerciais, mas aí já estaríamos no campo das teorias da conspiração.

E por falar em teorias da conspiração, tente googlar “Sound of Freedom” e “QAnon”. Em largas pinceladas, QAnon é um movimento underground surgido em 2017, que defende que o mundo estaria dominado por adoradores de Satanás, que operariam uma grande rede de pedofilia no mundo. Trump seria o presidente que iria desmantelar essa rede, por isso a perseguição que a grande mídia, atores de Hollywood e grandes bilionários como George Soros (sim, sempre ele) travaram contra o ex-presidente.

Bem, essa é a teoria. Como o filme foca no tráfico de crianças e tem uma pegada conservadora, foi o suficiente para que se visse uma “mensagem subliminar” em apoio à teoria do QAnon. A ligação do filme com o QAnon parece, em si, uma teoria da conspiração. Claro, cada um vê o que quer, e é por isso que as teorias da conspiração existem. O ser humano é um animal em busca de sentido, e teorias da conspiração são o hipersentido da realidade, histórias que fazem encaixar fatos que, de outra forma, pareceriam insuportavelmente aleatórios. O filme retrata uma realidade dura de uma maneira heróica e delicada, e precisa ter muita má vontade para ligá-lo a algo remotamente semelhante à teoria doidivanas do QAnon. Mesmo porque, o filme começou a ser produzido em 2015, portanto, dois anos antes do surgimento do QAnon. Um discurso de Jim Caviezel em uma convenção cristã em Las Vegas em 2021 é citada como evidência de sua ligação com o QAnon, porque ele usou a palavra “storm”, que seria a descrição, segundo o QAnon, do que Trump faria com a rede pedófila global. É ou não é teoria da conspiração na veia?

O fato é que o filme foca no drama das crianças, e só. Fala muito pouco, quase nada, sobre os responsáveis por isso. As críticas ao filme parecem antes estar ligadas à sua pegada conservadora. Em um dos diálogos, um dos personagens conta como evitou o suicídio após transar com uma menina por ter ouvido a voz de Deus. Aquilo o fez mudar de vida. O diálogo é bom, bem escrito, não é piegas, mas revela um perfil que não cai no gosto de todos. Ok, justo. Mas daí a fazer o salto triplo mortal carpado de que haveria uma ligação com o QAnon, é muita vontade de polemizar.

De qualquer forma, os produtores agradecem. As críticas que o filme vem recebendo só atiça a curiosidade pra ver o que a baiana tem. Foi por isso que fui ao cinema. Não me arrependi, o filme é bom mesmo, valeu o ingresso.

Sintonizando a realidade

O que um grupo de militares brasileiros e o prêmio Nobel de economia Paul Krugman têm em comum? Ambos acalentam a sua própria teoria da conspiração, em que “elites financeiras” manipulam os cordões do mundo para atingir seus próprios inconfessáveis objetivos.

Ontem, ficamos sabendo que os militares de um tal Instituo Villas Boas produziu um documento em que acusa as “elites financeiras globais” de trabalhar por um troço chamado “globalismo”, que seria algo muito ruim mesmo.

Hoje, Paul Krugman acusa a “elite financeira digital” de apoiar, oh pecado dos pecados, o Partido Republicano.

Já tive oportunidade de escrever sobre teorias da conspiração. No seu cerne, sempre existe um “grande manipulador”, que não quer e não lhe permite saber “a verdade”. Fechados em seu próprio mundo, os crentes da teoria rechaçam qualquer evidência em contrário à teoria como mais uma manifestação do grande manipulador. Um documentário bem didático sobre o assunto é Behind The Curve, sobre os terraplanistas, disponível na Netflix.

Por algum estranho motivo, os adeptos da teoria consideram-se mais inteligentes e perspicazes do que a média, pois conseguiram escapar da “manipulação”. Ou mais honestos, porque aderem à verdade por mais dura que seja, enquanto outros preferem a mentira certamente por motivos escusos.

George Soros e Elon Musk, cada um para um grupo de crentes, são os representantes máximos dessa “elite financeira manipuladora”. Isso não é nem sequer original. Os Sete Sábios do Sião, livro da virada do século XIX para o XX, descreve como a “elite financeira judaica” manipula as cordas do mundo. E os bolcheviques e todos os seus sucessores à esquerda no século seguinte atribuem os males do mundo a uma “elite financeira”. Aliás, até hoje, para uma boa parcela da população brasileira, os “banqueiros” são os verdadeiros culpados pelas mazelas do país. Essas são verdades que dispensam demonstração de causa e efeito, como em toda boa teoria da conspiração.

Vejam, não estou negando que haja projetos para implementar determinadas agendas, e que estes projetos sejam patrocinados por quem tem dinheiro para isso. A questão é reduzir a humanidade a uma massa manipulável, como massinha de modelar, e colocar-se acima dessa mesma humanidade como aquele que “descobriu” um manipulador por trás de tudo o que acontece.

Na verdade, somos todos, de uma forma ou de outra, manipulados. As ideias são como ondas de rádio, que estão no ar sem que as percebamos. Nossa mente, assim como um aparelho de rádio, sintoniza algumas dessas ideias, enquanto outras lhe são estranhas. Essa sintonia se dá em função de nossa formação e experiências pessoais. O verdadeiro diálogo se dá entre pessoas que admitem que o outro não é um tapado manipulado, apenas sintoniza a realidade de maneira diferente.

O peso de nossas decisões

O editorial do Estadão de hoje traz uma reflexão importante, não somente no campo da política, mas também em outros âmbitos, como por exemplo, o mercado financeiro e a pauta ambiental.

O editorialista chama a atenção para um ponto fundamental: a política (e, consequentemente, os políticos) não está dissociada da sociedade. Os políticos agem de acordo com as pautas da sociedade, com as escolhas que fazemos em nosso dia a dia. Se você acha estranha essa afirmação, vou tentar explicar com três exemplos entre muitos possíveis.

Vou começar com a prisão em 2a instância, aparentemente uma pauta consensual na sociedade brasileira e que estaria parada na Câmara por interesses escusos dos parlamentares. A sensação de que essa pauta é consensual é só isso mesmo, uma sensação, provavelmente causada pela bolha em que nos movemos. O brasileiro médio é contra punição e a favor da misericórdia. Não só não temos a prisão em 2a instância como temos uma das legislações penais mais brandas do mundo, com direito à progressão de pena e saidinhas. É da natureza do brasileiro, não um problema específico do sistema político.

Um segundo exemplo são as malfadadas emendas parlamentares. Não vou aqui entrar na seara criminal. Desvios de dinheiro existem em qualquer atividade, não somente na política. Focando apenas na essência das emendas, vamos concluir que trata-se de uma troca: eleitores trocam seus votos por benfeitorias em seu quintal. O brasileiro gosta de um cashback, e pouco importa as ideias do político A, B ou C, desde que o seu problema específico seja resolvido. Se o brasileiro médio votasse de acordo com as grandes pautas nacionais, o apelo das emendas seria esvaziado. As emendas só existem porque os brasileiros querem que elas existam.

Por fim, o último exemplo é mais genérico, e se refere aos diversos lobbies que atuam em Brasília. As elites brasileiras atuam para que tudo permaneça como está, cada um cuidando de preservar suas posições e, se possível, ganhar mais algumas. Desde subsídios, passando por regimes especiais de tributação e baixas alíquotas de imposto, até a proteção às diversas corporações que dependem do Estado. Hoje, por exemplo, soube da existência de um “sindicato dos aposentados”. Também há o “sindicato dos professores”, além de vários sindicatos patronais. Mas nunca ouvi dizer de um “sindicato dos pais de alunos do ensino fundamental da escola pública”, ou um “sindicato dos doentes sem leitos e exames no SUS”. Não, esses interesses difusos não são defendidos por ninguém. Alguém diria que a classe política deveria se ocupar desses interesses, não se colocando como presa fácil desses vários lobbies. Verdade. Mas note como a classe política somente reage à organização da sociedade em lobbies, atendendo aos interesses de quem grita mais alto. Como dito no início, a política não está dissociada da sociedade.

Em outra dimensão, podemos dizer o mesmo do mercado financeiro. Os movimentos dos preços dos ativos é função, em última análise, das decisões dos indivíduos e das empresas. Quando você decide poupar ou gastar, comprar isso e não aquilo, quando decide por uma determinada marca e não por outra, quando toma a decisão de se casar ou comprar uma bicicleta, está, no final da linha, influenciando os preços de ativos, como ações de empresas, o nível da taxa de juros e do câmbio. O governo, como principal agente econômico de um país, por ser o fiador da moeda, tem uma enorme influência sobre os preços dos ativos. O mercado financeiro, assim como o mundo político, é muitas vezes confundido com seus operadores. Os operadores do mercado, assim como os operadores da política, têm um certo grau de liberdade no curto prazo, mas os grandes movimentos são definidos pela sociedade, que compra e vende (no caso do mercado), ou que vota e faz lobby e faz pressão na opinião pública, no caso das decisões políticas.

Uma terceira esfera em que estas coisas se confundem é a pauta ambiental. Governos e empresas são cobradas para levar adiante iniciativas de diminuição da pegada de carbono. Mas, no final do dia, o que vai definir se morreremos ou não afogados em um mar que vai subir de nível e engolir nossas cidades costeiras é, em última instância, os hábitos de consumo da sociedade. Se os investidores continuarem a não financiar empresas que geram lucros menores por, ou apesar de, adotarem uma agenda mais limpa, se os consumidores não toparem pagar mais caro pela energia ou por produtos produzidos de maneira “limpa”, se não abrirem mão de confortos que custam toneladas de carbono na atmosfera, continuaremos girando em círculos, dando a impressão de muito movimento, mas sem avançar um milímetro sequer na direção desejada. Os governos são presas dessa lógica. Um exemplo paradigmático foi a última decisão de vários países de liberarem seus estoques estratégicos de petróleo para tentar forçar os preços para baixo. Quer dizer, não aguentaram a pressão política da sociedade, que não quer pagar mais caro pela energia, quando é justamente o preço mais caro que vai fazer a pauta ambiental avançar. Nós, a sociedade, queremos o ar limpo, desde que não tenhamos que abrir mão do nosso direito sagrado à gasolina barata.

Temos a tendência de ver o mundo político, o mercado financeiro ou as empresas que poluem como uma espécie de clube fechado, em que decisões que vão ferrar o resto da humanidade são tomadas em salas escuras e esfumaçadas, em conluios que buscam maximizar os seus próprios interesses às custas dos interesses da sociedade. Esta imagem agrada a quem gosta de uma teoria da conspiração, em que as grandes decisões são tomadas por meia dúzia que manipula os cordões do mundo, cabendo-nos o papel de simples marionetes. Para quem tem essa visão de mundo, não há argumento que convença.

Penso, sinceramente, que o mundo é muito mais complexo do que meia dúzia de pessoas sentadas em uma sala. Sem prejuízo de que os operadores do mundo político, do mercado financeiro ou das empresas poluidoras possam sim estar atrás de seus próprios interesses (e quem não está?), estes interesses estão longe de ser os únicos que comandam as suas ações. Afinal, os políticos dependem de quem os elegem, os operadores do mercado dependem das decisões dos seus clientes e as empresas poluidoras dependem dos consumidores. São estes, em última instância, que definem as ações dos políticos, operadores e empresas no longo prazo.

As teorias da conspiração são muito cômodas, porque nos eximem de qualquer culpa na situação em que o mundo se encontra. A culpa é sempre de uma “força superior sinistra”, a que não temos poder de contrapor. Prefiro pensar que a situação do mundo é fruto das bilhões de interações dos seres humanos, entrelaçados em uma cadeia de decisões livres que influenciam e são influenciados e limitados por outras decisões igualmente livres. As instâncias decisórias da sociedade humana, os seus poderes constituídos, ao mesmo tempo mandam e obedecem. Sim, o mundo é complexo, não cabe todo em uma teoria simplista, por mais sedutora que seja.

Four hours at the Capitol

Desde o início de outubro, o TSE abriu todos os procedimentos do processo eleitoral para quem estivesse interessado em verificar a lisura das urnas eletrônicas. Até o momento, só se ouve o ruído bucólico dos grilos.

Ao que parece, não há realmente interesse em auditar. O que interessa é criar uma narrativa conspiracionista. Para tanto, os fatos são dispensáveis. Basta que exista uma verdade a priori, diante da qual toda a realidade se curva, como diante de um campo magnético.

A ausência de interesse pela auditoria das urnas eletrônicas vem bem a calhar para introduzir o tema deste post: o documentário Four Hours At The Capitol, disponível na HBO, e que narra a invasão do Congresso americano em 6 de janeiro último.

O documentário não tem um narrador. Trata-se de uma mescla entre as imagens feitas pelos próprios invasores e a narração dos principais personagens que aparecem nessas imagens. São entrevistados vários dos invasores, além de parlamentares, funcionários do Capitólio e policiais. É simplesmente chocante.

Uma das coisas que mais chamam a atenção é a devoção religiosa a Trump, que transparece em várias entrevistas. O documentário faz um cuidadoso retrospecto minuto a minuto daquele dia, de modo que ficamos sabendo que, apenas 19 minutos após o início do discurso de Trump, um pequeno grupo de manifestantes já se dirige ao Capitólio, pois entende ser essa a ordem do ainda então presidente. Ao longo das horas seguintes, outros grupos se juntam ao primeiro, formando a multidão ensandecida que proporcionou o espetáculo que todos viram. Dizer que Trump não teve nada a ver com isso é distorcer a realidade dos fatos.

(Aliás, só um parêntese. Em várias cenas, os policiais classificam os invasores de terroristas. É interessante como, quando há quebra-quebra em manifestações de esquerda, há sempre, com razão, a crítica a quem chama esses vândalos de “manifestantes”. Pois bem, parece ser igualmente inadequado chamar de “manifestantes” esses vândalos que invadiram o Capitólio. Fecha parêntese).

Mas o que realmente chamou-me a atenção no documentário foi o non sense da coisa toda. Não havia realmente um plano. Os primeiros que entraram ficaram perdidos. E agora, o que fazemos? O “plano” passou a ser invadir o plenário e “obrigar” os senadores a não reconhecer o resultado das eleições. Como se isso fosse um plano. Digamos que tivessem sucesso: o que aconteceria depois? Uma resolução do Congresso tirada debaixo da força física teria alguma força de lei? Esses mesmos senadores continuariam docilmente em seus lugares depois dessa pantomima? Um non sense completo.

O único curso de ação que faria algum sentido foi levantado por um senador, que aventou a hipótese de Trump, ainda presidente, aproveitar a ausência de todos os parlamentares (que estavam sendo evacuados) para decretar lei marcial e assumir poderes ditatoriais. Não sei quão factível seria isso, mas serve para chamar a atenção para um ponto importantíssimo: em qualquer regime político, seja ele revolucionário ou não, é preciso que uma elite política assuma o poder. A turba em si não resolve nada, torna-se um quebra-quebra sem sentido. O que esses invasores queriam era uma ditadura de Donald Trump.

Alguns dirão que não, que o desejo da turba era ter eleições limpas. E, por eleições limpas, entenda-se eleições em que Trump fosse eleito. Aqui voltamos à questão da urna eletrônica. No início do ano, escrevi um artigo refutando uma longa série de acusações de fraudes nas eleições americanas. Todas as acusações não tinham fundamento. Mas isso pouco importava para a tese central da teoria da conspiração: as eleições foram roubadas de Donald Trump de forma sistemática. Este sentimento de injustiça é um poderoso estopim para a revolta da população. E Trump (assim como Bolsonaro) sabe disso.

Um dos gritos de guerra dos manifestantes, enquanto se encaminhavam para o Capitólio, era que aquela era a Casa do Povo, a “nossa casa”. Eles simplesmente estariam retomando a casa deles, como se eles representassem todo o povo americano. A democracia é justamente o regime que permite que todo o povo esteja representado na Casa do Povo, e não apenas os representantes de si mesmos. Se esta representação está distorcida, se os representantes não são dignos, esse é outro problema. O que não existe é uma multidão invadir o Congresso e declarar que, agora, a Casa do Povo pertence ao povo. Não. Normalmente, quando isso acontece, a Casa do Povo acaba sendo dominada por um ditador, que se comunica diretamente com o povo sem a necessidade de intermediários.

A democracia é o pior regime, com exceção de todos outros, dizia Churchill. Que nossas instituições democráticas precisam ser aperfeiçoadas, parece não haver dúvidas. Que o caminho não é invadir o Congresso ou o STF na base da força, também. Mesmo porque, o resultado pós baderna costuma ser pífio, vide as manifestações de 2013. A história mostra que as revoluções que derrubaram regimes resultaram em regimes mais opressivos ainda. O povo sempre será massa de manobra das elites políticas. Na democracia, pelo menos, temos a oportunidade de fazer um rodízio de nossas elites políticas. Não é pouca coisa.

Teoria da Conspiração e Eleições

Em um dos meus últimos artigos, esclareci qual o critério que utilizo para distinguir a verdade dos fatos: se “cheira” a teoria da conspiração, normalmente descarto. Alguns dos meus leitores mostraram desconforto, e com razão: afinal, como descartar a priori algo que nem sequer foi investigado? Não seria uma postura muito cômoda, preguiçosa até, ao simplesmente confiar em uma “regra geral”, sem se dar ao trabalho de verificar a sua veracidade?

Pensei no assunto com cuidado.

Vamos dividir esta discussão em duas partes: na primeira, definiremos o que é uma “Teoria da Conspiração”. Depois, com base nesta definição, concluiremos que, por construção, é absolutamente inútil investigar ou pesquisar o objeto de uma teoria da conspiração.

O que é Teoria da Conspiração?

Quando meus filhos eram pequenos, assistiam a vários desenhos no Cartoon Network. Um deles era Pink e o Cérebro, que envolvia dois personagens completamente antagônicos: Pink, um rato desmiolado que só aprontava confusão, e Cérebro, um rato superinteligente, cujo único objetivo na vida era nada menos do que “dominar o mundo”. Pink se preocupava com as coisas mundanas, enquanto Cérebro estava sempre preparando um plano genial para dominar o mundo.

Sempre quando ouço algo que me parece Teoria da Conspiração, lembro do Cérebro: deve haver um rato superinteligente tentando dominar o mundo por traz disso.

Teoria da Conspiração é qualquer explicação para um evento ou tese (que vou aqui chamar de Grande Tese) que envolva forças superiores e obscuras, as quais invariavelmente buscam manipular a realidade, na maior parte das vezes com motivações políticas.

Por que Teorias da Conspiração são inverossímeis? Por um motivo simples: para serem verdade, pressupõem a existência de um Cérebro que consegue puxar todas as cordas da realidade, de modo a criar uma realidade paralela que engana grande parte da humanidade, MENOS os iniciados que conseguem perceber a tramoia.

O documentário Behind the Curve, disponível no Netflix, explica exatamente este mecanismo.

Este documentário aponta com precisão as características de uma Teoria da Conspiração:

– Evidências apenas para os iniciados: as “evidências” encontradas a favor da Grande Tese são óbvias apenas para aqueles que compartilham da mesma fé. Por exemplo, uma das “evidências” de que a terra seria plana é que não há voos sobre os oceanos do hemisfério sul, que estariam muito próximos da “borda” do planeta. Mas obviamente há, o que não abala a fé dos terraplanistas.

– O “bom-senso” é a prova fundamental da Grande Tese. Se conseguimos andar em linha reta durante milhares de quilômetros, ou se consigo ver a linha do horizonte, ou se não “sinto” o movimento de rotação do planeta, é óbvio que a terra é plana. A Grande Tese é sempre sustentada pelo pensamento “não pode ser diferente disso”.

– A convicção vem antes da prova. O documentário mostra vários experimentos que frustram a Grande Tese. Mas isso acontece porque não “testaram direito”. Se o experimento não consegue provar, é porque não foi suficientemente bom. Ou, no máximo, há um paradoxo em busca de uma explicação.

– A falta de refutação formal e detalhada por parte dos cientistas é apontada como uma evidência em favor da Grande Tese. Não se lhes ocorre que, pelo disparatado da coisa, ninguém realmente vai perder seu precioso tempo refutando ponto por ponto. Por outro lado, evidências como fotos tiradas do espaço são descartadas como sendo parte da grande conspiração liderada pelo Cérebro.

– Reunião em comunidades. Os que comungam da mesma crença reúnem-se em comunidades que se autoalimentam com suas paranoias, e não se deixam levar por evidências contrárias à sua fé. Sim, porque a coisa se transforma em fé religiosa. Uns apoiando-se nos outros para sustentarem a sua fé.

– Forças ocultas e poderosas: Por fim, há sempre uma concertação de forças ocultas e poderosas que impõem a mentira com objetivos obscuros e sinistros. No caso do terraplanismo, a Nasa mente, mas não fica claro porque mentiria sobre isso. O fato é que mente, e por algum motivo muito grave deve ser.

Uma parte interessante do documentário é a descrição da Síndrome do Impostor e do Efeito Dunning-Kruger. A Síndrome do Impostor acomete acadêmicos que aprofundam em um determinado tópico e, em certo momento, conseguem ver o quanto ainda não sabem sobre aquele assunto. Assim, sentem-se como impostores, que afetam um conhecimento que supostamente não têm. Por outro lado, o Efeito Dunning-Kruger é exatamente o oposto: quanto menos uma pessoa sabe sobre um determinado tema, mais ela acha que já sabe tudo. Faz pesquisas na internet, vê vídeos no YouTube, lê artigos na Wikipedia e… voi lá! tornou-se um expert sobre aquele assunto. É interessante observar como esse padrão se repete: os teoristas da conspiração não têm dúvidas de nenhuma maneira sobre aquilo em que acreditam.

É inútil debater com conspiracionistas

Em determinado momento do documentário, um escritor de ficção científica define bem o problema: enquanto cientistas partem dos fatos para chegar em uma teoria, os teoristas da conspiração partem da teoria e buscam fatos que a comprove. E se os fatos não a comprovam, que se danem os fatos. O documentário mostra pelo menos três experimentos realizados pelos terraplanistas que não funcionam, mas isso não abala a sua fé na teoria.

Portanto, não há como debater contra a Grande Tese. Não estamos sobre o mesmo terreno, o campo de debate não é o mesmo. O teorista da conspiração está em um outro mundo, com suas próprias regras. Neste mundo, há pessoas poderosas querendo esconder a verdade. Eles, no entanto, por algum motivo, são os únicos que conhecem essa verdade. Mesmo contra todas as evidências.

Óbvio que eles falarão que somos nós que não estamos vendo as evidências, claras como a luz do dia. Uma “evidência” apresentada no documentário, por exemplo, é o fato de o planeta estar girando a uma velocidade estonteante, mas nós não sentimos absolutamente nada. Como isso é possível? O bom senso diz que estamos parados, claro. Esse é o tipo de “evidência” dos terraplanistas. Pouco se lhes dá que experimentos científicos básicos mostram que dois corpos viajando na mesma velocidade estarão parados um em relação ao outro. Qualquer evidência científica é descartada como parte de um sistema montado para enganar.

Este é o cerne do critério que utilizo: se cheira a Teoria da Conspiração, descarto. Cheirar a Teoria da Conspiração significa ter alguns dos requisitos listados acima. E descarto a priori porque não teríamos base para discussão. Estamos em universos diferentes, utilizando ferramentas de análise diferentes. Portanto, o máximo que posso fazer é desejar toda a felicidade do mundo para os conspiracionistas. Sejam felizes com sua Grande Tese, não serei eu a tentar convencê-los do contrário.

A coisa pode ficar séria

Propositalmente, considerei um caso extremo de Teoria da Conspiração, o terraplanismo. Quero acreditar que a maior parte das pessoas que lerão este artigo não deem maior importância a esse tema. Eu mesmo não dava, até descobrir que há comunidades que se reúnem em torno do tema. Mas essas pessoas são inofensivas, sua fé não vai mudar o destino da humanidade.

Ocorre que há Teorias da Conspiração que são realmente perigosas e podem fazer mal. Vou dar três exemplos para ilustrar.

O primeiro é o que se refere ao poder dos judeus. Não de um ou outro judeu, mas da comunidade judaica. O antissemitismo marca o povo judeu desde sempre, mas é com a edição do livro Os Protocolos dos Sábios de Sião, no final do século XIX, que a Teoria da Conspiração ganha contornos bem definidos: o plano judaico de dominação do mundo. Esta obra é citada por Hitler no seu livro Mein Kampf, e serviu de base para concretizar o antissemitismo assassino na Europa das décadas de 30 e 40 do século passado. E note que, como qualquer Teoria da Conspiração, não há como refutá-la. Trata-se de uma convicção, gerada por um preconceito primordial.

A Grande Tese, neste caso, é que haveria um plano de dominação do mundo por parte dos judeus. Claro que, em sendo verdade, este plano deveria ser parado de qualquer forma. E qualquer forma significou a morte de 6 milhões de judeus na Europa. Exemplo de uma Teoria da Conspiração muito mais perigosa do que o terraplanismo.

Um segundo exemplo de Teoria da Conspiração perigosa é o movimento anti-vacina.

Iniciei minha carreira em um grande banco internacional. Minha filha mais velha era um bebê na época e, como todo pai consciente, cumpria a tabela de vacinação. Um gerente mais velho, quando soube que eu levava minha filha para tomar vacinas, disse-me algo na linha “então você coloca qualquer substância dentro do corpo de sua filha?” Era um anti-vaxx. Isso era 1990, o que mostra que esse movimento não é de hoje. Depois soube que também era adepto de coisas esotéricas. Essas coisas nunca vêm sozinhas. No documentário sobre terraplanismo, alguns dos entrevistados são também anti-vaxx. Como se trata de uma negação do conhecimento científico, é só natural que tudo o que cheire a ciência seja rejeitado.

A Grande Tese, segundo este gerente, é que os grandes laboratórios ganhavam muito dinheiro convencendo os governos e as pessoas de que essas doenças contra as quais as vacinas protegem são muito perigosas, quando, na verdade, o grande perigo eram as próprias vacinas. Essas sim é que deixavam as pessoas doentes, o que fechava o círculo, pois os mesmos laboratórios vendiam os remédios. Não importavam evidências de erradicação de doenças que antes existiam, a Grande Tese se fechava em si mesma em uma lógica irrefutável. Aprendi ali que discutir com terraplanistas de qualquer gênero não leva a parte alguma.

Pelo menos, no caso deste gerente, as vacinas causavam apenas doenças. Hoje, as vacinas transmitem genes que funcionam como chips que nos marcam para o controle de uma Nova Ordem Mundial. Enfim, a coisa se sofisticou com o tempo.

Note que aqui, novamente, a Teoria da Conspiração é muito perigosa. A cobertura de vacinação vem caindo com o tempo, e doenças como o sarampo, que já há algum tempo vinham sendo controladas, voltaram com força. Trata-se de um problema de saúde pública sério.

O terceiro exemplo de Teoria da Conspiração nada inocente refere-se a acusações de fraudes em eleições. Este tipo de Teoria é perigoso porque ataca diretamente um dos principais alicerces do regime democrático: a lisura das eleições. Coloque em dúvida o resultado eleitoral, e todo o edifício democrático vem abaixo. Esta é justamente a Grande Tese: a democracia está dominada pelo establishment, que não deixa a voz do povo falar através das urnas. Qual a saída em um quadro desses? Pergunta apenas retórica, como demonstrou a invasão do Capitólio.

Há dois tipos de fraudes eleitorais. O primeiro ocorre em regimes autoritários, onde as eleições são apenas um arremedo de cumprimento do ritual democrático, feitas apenas para cumprir tabela em uma democracia de fachada. É o que vemos na Venezuela, por exemplo.

O segundo tipo de fraude é o que ocorre em democracias bem estabelecidas. São pequenos delitos, que não são, via de regra, suficientes para mudar uma eleição majoritária. O think tank Heritage Foundation mantém uma página onde lista todas as fraudes detectadas em todas as eleições norte-americanas. Nas eleições de 2020, por exemplo, o site lista 16 fraudes. Já nas eleições de 2016, o número de fraudes listadas sobe para 62! Ou seja, no ano da eleição de Trump, o número de fraudes é quase quatro vezes maior do que no ano da eleição de Biden.

Alguma dessas fraudes, ou mesmo o conjunto delas, foi suficiente para mudar os resultados agregados? Provavelmente não. Mesmo porque, seus efeitos foram sanados. A questão, obviamente, não está nesses casos, mas naqueles não detectados, ou detectados, mas não devidamente investigados. Quantos desses casos existem? Seriam em número suficiente para mudar o resultado eleitoral?

Aqui entra a Teoria da Conspiração.

Fraude eleitoral: uma Teoria da Conspiração antidemocrática

Donald Trump repetiu até o fim que as eleições foram fraudadas e que ele tinha sido o vencedor por uma larga margem. Teria havido uma gigantesca manipulação, com o simples objetivo de eleger o seu adversário, Joe Biden. E mais: além da manipulação em si, todo o sistema eleitoral, com seus comitês e juízes, estariam irremediavelmente corrompidos, de modo que não levaram adiante as devidas investigações que atestariam a manipulação.

Isto me faz lembrar uma passagem do documentário sobre o terraplanismo. Em determinado momento, um dos principais propugnadores da Teoria, Mark Sargent, afirma que os cientistas não conseguem refutar a Grande Tese. Na verdade, segundo ele, eles nem tentam fazê-lo, pois sabem que não teriam a mínima chance. Por isso, nem entram no ringue (ele usa essa expressão). Corta para um astrofísico (alguns cientistas são entrevistados ao longo do documentário), que afirma que não dá para ficar perdendo tempo com toda teoria maluca que aparece. Os cientistas têm mais o que fazer. É mais ou menos isso o que acontece com relação a denúncias de “fraudes gigantescas”.

É claro que toda denúncia séria deve ser checada. Não à toa, o site da Heritage Foundation lista as denúncias que resultaram em penalidade. Isso é uma coisa. Outra coisa são essas denúncias feitas por supostos experts ou denunciantes nem sempre identificados, apontando esquemas óbvios de fraude. Tão óbvios, que realmente fica difícil de entender por que os diversos profissionais do sistema eleitoral não lhes deram ouvidos. Só tem uma explicação, na cabeça dos teoristas: assim como acontece com os cientistas, os profissionais do sistema eleitoral nem se atrevem a entrar no ringue, pois sabem que seriam fragorosamente derrotados. Mantém uma farsa, com interesses escusos e obscuros. Assim, milhares de mesários, membros de comitês eleitorais e juízes estariam mancomunados com o establishment para esconder a Verdade.

Bem, eu não deveria fazer isso, mas vou fazer, em atenção àqueles que realmente têm dúvidas sinceras sobre a lisura do último pleito nos EUA. Pessoas que não têm uma Grande Tese a priori, mas ouviram tanto falar em fraudes e ouviram tantas histórias, que realmente ficaram na dúvida. Para essas pessoas, não basta dizer “os cientistas afirmam que a terra é redonda”. Ou, no caso, que as autoridades competentes asseguraram que as eleições foram limpas e seguras. Gostariam de ver uma refutação objetiva de cada uma das denúncias. Então, vamos lá.

Para tanto, vou usar como fonte o site FactCheck.org. Claro, quem tem a Grande Tese da fraude como premissa pétrea, este site, assim como todos os sites de checagem de fatos, faz parte da Grande Mancomunação. Mas o que vai a seguir não é para os terraplanistas da democracia. Para estes, nada do que se diga os moverá. Assista o documentário e você entenderá o que quero dizer. O que vai a seguir, como disse acima, é dirigido para quem tem dúvidas sinceras. Se você não as tem, seja porque acredita na Grande Tese, seja porque não acredita, pode pular para a próxima seção, pois se trata de um trecho muito longo deste artigo.

Como ponto em comum de todos os casos a seguir, temos a sua publicação em redes sociais. As redes sociais são o canal pelo qual essas “denúncias” se proliferam. Normalmente em tom alarmista, a “denúncia” é feita por um “expert” ou por uma “testemunha ocular”, mas normalmente é impossível fazer o rastreamento de sua origem. Vamos aos casos.

31/10: Votos pré-preenchidos no Queens, NY. Uma “enxurrada” de votos pré-preenchidos com o voto em Biden teriam sido distribuídos no Queens, NYC, segundo um jornalista freelancer chamado Jake Novak, retuitado pelo filho de Trump. Na verdade, o jornalista mostrou apenas um voto pré-preenchido como evidência. A explicação é simples: este voto pertencia a uma pessoa que se mudou de NY para a Califórnia, e pediu um formulário. O formulário chegou em branco, mas na hora de colocar no correio, o eleitor (que preencheu com voto para Biden) não envelopou corretamente, e o voto acabou voltando para a sua antiga residência em NY.

03/11: Apagaram os votos em Utah: um vídeo no Instagram, em que uma senhora narra uma cena estranha, viralizou: seu marido foi votar, mas a máquina mostrou uma mensagem de que ele já havia votado. A mesa teria sido capaz de “apagar” o seu voto e, então, ele votou normalmente. O que aconteceu foi que, na geração do cartão para o voto, o mesário esqueceu-se de fazer um passo, o que, de fato não habilitou o cartão. É óbvio que, se esse fosse um problema recorrente, outros relatos desse tipo teriam aparecido.

03/11: “Joguei fora 100 votos pró-Trump!”: um cidadão da Pennsylvania, Sebastian Machado, dizendo-se mesário no condado de Erie, fez um vídeo no Instagram afirmando que, naquele dia, havia jogado mais de 100 votos pró-Trump fora. A junta eleitoral do condado de Erie negou que o cidadão trabalhasse como mesário em qualquer seção eleitoral, ou mesmo fosse um cidadão registrado do condado.

04/11: Biden ganha 140 mil votos em segundos no Michigan: o número de votos pró-Biden de repente deu um salto de 140 mil no condado de Shiawassee, no Michigan, ultrapassando, inclusive, o número de eleitores registrados no condado. O próprio Trump tuitou sobre o assunto. Ocorre que houve um erro na transcrição dos resultados nesse condado, resolvido assim que descoberto. Os dados do próprio dia passam por checagens antes de se tornarem oficiais. O resultado incorreto foi o primeiro divulgado, e corrigido assim que checado.

04/11: Votos pró-Trump não contados por terem sido preenchidos com lápis no Arizona: um vídeo que viralizou mostrava um homem em frente a uma sessão eleitoral no condado de Maricopa, Arizona, dizendo que as pessoas estavam sendo orientadas a marcar o seu voto com “lápis bem apontados”, o que invalidaria os seus votos. E aquele condado seria pró-Trump. Obviamente, o comitê eleitoral afirmou que todos os votos seriam contados, independentemente do tipo de caneta ou lápis utilizado.

04/11: Mais votos do que eleitores em Wisconsin. Vários posts mostravam números errados. Era a coisa mais fácil do mundo verificar que houve 3.297.137 votos no Estado, enquanto há 3.684.726 eleitores.

05/11: Muitos formulários para votar pelo correio eram ilegítimos. Segundo a narrativa criada pelo QAnon, as cédulas de votação por correio seriam produzidas pelo Homeland Security com um isótopo que os identificaria. Os democratas teriam impresso milhares de cédulas falsas, que seriam identificadas através da falta dessa marca, desmascarando a farsa democrata. Tudo falso, do início ao fim. Parece aqueles tuítes super-bem-informados, que nos avisavam que a derrota na verdade era uma vitória, e que tudo seria esclarecido em breve…

06/11: Eleitor em Detroit entra com processo contra as eleições. Em uma suposta reportagem da Fox, um eleitor em Detroit teria entrado com um processo contra a junta eleitoral da cidade, acusando-a de ter 4.788 registros duplicados, 32.519 mais eleitores registrados do que eleitores válidos, 2.503 eleitores mortos e um eleitor nascido em 1823. Só tem um problema: a reportagem era do final de 2019, e o eleitor retirou as acusações de maneira espontânea no início de 2020, depois de a cidade demonstrar que não havia irregularidades.

06/11: Em discurso, Trump aponta uma série de irregularidades na Pennsylvania, Michigan, Georgia, North Carolina e Wisconsin. Nesse famoso discurso são várias as irregularidades apontadas. Vamos separar por Estados:

  • Pennsylvania: Trump alegou que houve uma imensidade de cédulas recebidas pelo correio depois do dia 03. A lei do Estado permitia considerar votos que chegassem até o dia 06, desde que houvesse um carimbo do correio com data máxima de 03/11. Trump alegou que a maioria não tinha carimbo, o que é simplesmente falso. Além disso, esses votos foram contados separadamente e, mesmo sem eles, Trump perde no Estado.
  • Michigan: Trump alegou que várias cédulas apareceram “do nada” de madrugada em Detroit, aparentemente baseando-se em um vídeo espalhado por um site chamado Texas Scorecard. O vídeo foi devidamente desmascarado. Além disso, a campanha de Trump alegou que seus delegados não puderam acompanhar a votação, o que é simplesmente uma inverdade (o juiz indeferiu a reclamação).
  • Georgia: Trump alegou que votos que chegaram depois do dia 03/11 foram contados, o que simplesmente não é verdade.
  • North Carolina: aqui, Trump reclamou que as cédulas enviadas pelo correio eram, na maioria, a favor de Biden. Isso parece natural, dado que os democratas fizeram campanha pelo voto via correio, ao passo que Trump demonizou essa forma de votação ao longo de toda a campanha. De qualquer forma, Trump ganhou este Estado.
  • Wisconsin: Trump alega que ganhou o Estado, mas sua vantagem foi “roubada” depois de estar em larga vantagem. Neste caso, não mostra nenhuma “evidência”. O fato é que os votos pelo correio viraram o jogo.

06/11: Fraude na contagem de votos na Pennsylvania: um vídeo mostrando contadores de votos supostamente preenchendo votos no condado de Delaware viralizou como prova de fraude. O vídeo faz parte do próprio streaming da seção eleitoral (não foi filmado de maneira escondida), e não mostra que a apenas 2 metros dali havia fiscais de ambos os partidos observando. Os contadores estavam transcrevendo votos que não estavam sendo lidos pelo scanner para cédulas novas, de modo que pudessem ser escaneadas. O curioso nessas coisas é porque esse tipo de fraude prejudicaria somente o candidato republicano.

06/11: Correios carimbando cédulas com data de 03/11 em Michigan. Segundo denúncia do site conservador Project Veritas, ouvindo um denunciante anônimo de dentro dos correios, a instituição estaria carimbando cédulas com data de 03/11, de modo a validá-las. O vídeo foi retuitado por Donald Trump Jr. Obviamente, não se encontraram evidências. Além disso, Michigan é um dos Estados que não validam cédulas que chegam após o dia 03/11, mesmo que tenham o carimbo de 03/11, de modo que nem adiantaria carimbar com data anterior.

09/11: Mortos votando na Pennsylvania. Esta foi uma alegação muito comum dos apoiadores de Trump. O senador republicano Lindsey Graham afirmou em uma entrevista que a campanha de Trump havia identificado pelo menos 100 eleitores mortos registrados, e pelo menos 15 desses haviam realmente votado. Depois de muito espremer, a campanha apresentou uma evidência concreta, uma senhora que morreu em 22/10, a sua aplicação para votação pelo correio chegou no dia 23/10, e a cédula chegou com o seu voto no dia 02/11. Entrevistada, a filha da eleitora não conseguiu explicar por que a cédula foi enviada depois da morte da mãe. De qualquer forma, o voto da mãe foi para Trump (aliás, sempre me pergunto por que a fraude teria apenas um lado). De qualquer forma, votos de pessoas mortas são relativamente raros, e normalmente devido a erros administrativos. São incapazes de mudar resultados como o da Pennsylvania, que teve diferença de 45 mil votos.

10/11: Mortos votando na Pennsylvania – 2. Uma organização chamada Public Interest Legal Foundation entrou, em outubro, com uma ação na justiça da Pennsylvania, alegando que havia 21 mil defuntos na lista de eleitores registrados, pedindo o cancelamento desses registros. O juiz federal que julgou o caso indeferiu o pedido por falta de provas. Os apoiadores de Trump usaram esse caso para voltar a afirmar que mortos votaram na Pennsylvania.

12/11: Votos exclusivos em Biden na Georgia. Um post retuitado pelos apoiadores de Trump, incluindo seu filho Donald Trump Jr. dizia o seguinte: “Na Georgia, cédulas onde o eleitor votou APENAS no presidente: Trump: 818, Biden: 95.801”. Ou seja, muito suspeito, segundo a campanha de Trump. Estes números não estão corretos. Houve 4.992.420 votos na eleição presidencial e 4.945.792 votos na eleição para o Senado. Uma diferença de 46.628 votos. Portanto, é impossível que 95.000 votos tenham sido dados somente para Biden, sem votação para o Senado. A única coisa que esse número de 95.000 votos a mais poderia significar é que Biden recebeu esse montante a mais em relação ao candidato democrata ao Senado. Ou seja, houve eleitores que escolheram Biden e o candidato republicano ao Senado. Além do mais, é impossível ter acesso a esse nível de detalhamento da votação com os números divulgados.

12/11: Correios carimbando cédulas com data de 03/11 na Pennsylvania. Um funcionário dos correios do condado de Erie, Pennsylvania, chamado Richard Hopkins, denunciou a conversa de dois supervisores que, segundo eles, estariam falando sobre carimbar cédulas com data de 03/11, mesmo tendo chegado aos correios posteriormente. Trump chegou a chamar esse funcionário de “grande patriota”. Um levantamento do jornal local concluiu que das 129 cédulas carimbadas com a data de 03/11, apenas duas haviam sido carimbadas pela agência local dos correios. Todas as outras haviam sido carimbadas em lugares tão distantes quanto California e Washington. Além disso, em investigação posterior, o funcionário se contradisse, e admitiu que poderia ter inventado boa parte do diálogo.

13/11: Em um tuíte, Trump alega que o sistema eleitoral deletou milhões de votos a seu favor e mudou milhares de votos dele para o seu rival. Essa alegação de Trump teve origem em uma reportagem do canal conservador OANN, que alegava que 435 mil votos de Trump haviam sido mudados para Biden e 2,7 milhões de votos para Trump haviam simplesmente desaparecido nas máquinas que usavam o Sistema Dominion de votação. Esta seria a conclusão de um relatório do Edison Research, uma firma de pesquisa de consumo que coordenou a contagem de votos para os grandes canais nacionais de TV. O canal OANN aparentemente colheu essas informações do site Gateway Pundit, que cita um post de um anônimo, que por sua vez afirmou que fez essa análise com base em dados do Edison Research. O Edison Research afirmou que nunca produziu um relatório desse tipo. São vários os depoimentos contra esse tipo de afirmação, mas o que mais me convenceu foi o do chefe de operações do OSET Institute, uma entidade que se dedica à tecnologia de votação: “a única forma de chegar a essas conclusões seria uma completa auditoria forense das máquinas em nível nacional. Não há como se concluir nada em tão pouco tempo. É simplesmente impossível.”

13/11: Cédulas “corrigidas” na Pennsylvania. O caso é o seguinte: houve uma diretiva geral do comitê eleitoral de que cédulas enviadas pelo correio e que fossem achadas com erros formais ao serem abertas, poderiam ter os seus respectivos eleitores alertados, de modo a que pudessem corrigir o seu voto. Essa diretiva não foi seguida uniformemente entre todos os condados da Pennsylvania. Ou seja, em alguns condados os eleitores foram avisados e puderam votar novamente, enquanto em outros não foram avisados, e seus votos foram anulados. Os republicanos alegam que os condados que não seguiram a diretiva eram predominantemente republicanos, ao passo que os que seguiram eram predominantemente democratas. Portanto, a “correção” teria beneficiado os democratas. Ora, há exemplos de condados republicanos que seguiram a diretiva, enquanto alguns condados democratas não seguiram. De qualquer modo, permitir a “correção” de cédulas deve ter beneficiado Biden, pois os democratas usaram mais cédulas por correio do que os republicanos. Estes alegam que a “correção” é contra a lei, e entraram com um processo, que estava sendo julgado quando foi escrito este racional. De qualquer forma, o número de cédulas que foram “corrigidas” foi muito pequeno para mudar o resultado do Estado.

13/11: O supercomputador que mudou votos. Em 31/10, um blog chamado American Report afirmou, com base no relato de um denunciante chamado Dennis Montgomery, que a campanha de Biden iria usar um supercomputador chamado The Hammer, rodando um software chamado Scorecard, para virar votos a seu favor. Uma passagem na CNN na noite da apuração, em que 19.958 votos passaram de Trump para Biden na Pennsylvania, deu gás para essa teoria. Na verdade, ocorreu um erro humano na totalização pela Edison Research, que corrigiu o dado cerca de uma hora depois. Não foi um erro da junta eleitoral. No final, o condado onde ocorreu o erro apresentou vitória de Trump.

17/11: Um diretor da campanha de Biden é preso por fraude. Dallas Jones, do staff da campanha de Biden, teria sido preso, acusado de chefiar um esquema de fraude eleitoral no Texas, usando nomes de sem-teto, idosos e mortos para criar votos falsos para Biden. Ocorre que Dallas Jones não foi preso. A foto da prisão, usada nos posts, é de outra pessoa.

20/11: Urnas eleitorais recheadas de votos falsos na Philadelphia. Segundo o Buffalo Chronicle, um site operado por um consultor político pró-Trump, uma multidão liderada por Joseph “Skinny Joey” Merlino recheou várias urnas com 300 mil votos pró-Biden, em troca de uma recompensa de US$ 3 milhões. Merlino, de acordo com seu advogado, afirmou que a história é uma loucura. Mesmo Rudy Giuliani achou a história meio forçada, em uma entrevista para a Fox News. O porta-voz da comissão eleitoral da cidade disse ser ridículo achar que alguém conseguiria entrar na sede do centro de apurações com várias urnas falsas.

25/11: Máquinas Smartmatic viraram votos nas eleições. A advogada pessoal de Trump, Sidney Powell, alegou que as máquinas Smartmatic teria virado votos em favor de Biden, usando a mesma tecnologia desenvolvida para beneficiar Hugo Chávez, na Venezuela. De fato, os fundadores são venezuelanos e seu primeiro contrato foi para as eleições venezuelanas. No entanto, a Smartmatic forneceu máquinas para apenas um condado nas eleições de 2020, Los Angeles, onde Biden ganhou por 71-27, mais ou menos a mesma proporção da vitória de Hillary Clinton em 2016 no mesmo condado (72-23). Para dar sustentação à tese, Powell afirmou que as máquinas Dominion (que estão presentes em 30% das seções eleitorais nos EUA) rodam um software da Smartmatic, pois a Dominion comprou em 2010 uma outra firma chamada SVS que sucedeu a uma outra firma chamada Sequoia, que havia sido adquirida pela Smartmatic em 2005 e vendida em 2007 (ufa, haja ligação de pontos!).

03/12: O mais importante discurso de Trump. Esse discurso é importante porque elenca todas as alegações de fraudes. FactCheck.org derruba uma a uma. Nenhuma novidade em relação ao que foi visto acima, mas serve como um bom resumo da coisa toda.

Bem, é isso. Gastei todo esse tempo transcrevendo todas as acusações em atenção àqueles para os quais não basta um “argumento de autoridade”, ou mesmo um raciocínio lógico, do tipo “teoria da conspiração exige a coordenação impossível de milhares de pessoas para funcionar”. Estão aí as não-evidências de fraude.

Agora, vamos falar das eleições brasileiras.

Fraude eleitoral no Brasil: a nossa Teoria da Conspiração

“Minha campanha, eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude. E nós temos não apenas palavra, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar, porque nós precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos. Caso contrário, passível de manipulação e de fraudes.”

O presidente Jair Bolsonaro proferiu essas palavras no dia 09/03/2020 em um evento evangélico em Miami. Até o momento em que escrevo, Bolsonaro não mostrou as “provas que tenho em minhas mãos”. Ficou o dito pelo não dito. A não ser pelo fato de que a Grande Tese continua em pé: houve fraudes nas eleições de 2018 e haverá fraudes nas eleições de 2022.

O centro da polêmica está nas urnas eletrônicas que não imprimem o voto. Vimos na seção anterior que a campanha do ex-presidente Donald Trump acusou as urnas eletrônicas de “virarem votos” para o seu adversário. O curioso é que essas máquinas imprimem o voto. De forma que a impressão dos votos não foi suficiente para invalidar a Grande Tese. O mesmo ocorrerá aqui. A Grande Tese da fraude seguirá viva e inteira mesmo se as urnas imprimirem os votos.

Cá como lá, abundam vídeos e posts nas redes sociais apontando supostas fraudes nas urnas eletrônicas. Não vou aqui gastar tempo descrevendo cada uma como fiz acima. Vou apenas listá-las abaixo, com as devidas refutações do site Comprova, um checador de fatos de responsabilidade dos principais veículos de imprensa do país. Aqui, novamente: a Grande Tese da fraude envolve também a imprensa e esses institutos de verificação de boatos. Portanto, para quem acredita na Grande Tese no matter what, pode pular esta parte. Estas explicações são para aqueles que têm dúvidas sinceras.

01/10/2020: É falso que apenas três países, inclusive o Brasil, utilizem urnas eletrônicas.

22/10/2020: Documento não prova fraude nas eleições de 2018 e nem comprova vitória de Bolsonaro no 1º turno.

13/11/2020: Sistema de voto eletrônico pode ser auditado, ao contrário do que afirma post.

13/11/2020: Smartmatic, que forneceu urnas para a Venezuela, nunca vendeu aparelhos para o Brasil.

15/11/2020: Ataque de hackers no sistema do TSE não viola segurança da eleição.

17/11/2020: Votação estável ao longo da apuração não indica fraude em São Paulo.

18/11/2020: É falso que votos recebidos por candidata a vereadora no Tocantins tenham reduzido ao longo da apuração.

18/11/2020: Apuração da eleição brasileira é aberta a qualquer pessoa, ao contrário do que afirma post.

19/11/2020: Sistema usado em vídeo para simular fraude não é o mesmo de urnas eletrônicas.

20/11/2020: É possível, sim, auditar e realizar recontagem dos votos, ao contrário do que afirma vídeo.

20/11/2020: É falso que o TSE atualizou apuração baseado em informações de site de notícias.

23/11/2020: Software usado em urnas eletrônicas brasileiras não é o mesmo que dos EUA.

29/11/2020: É falso que hacker tenha atacado sistema de votos do TSE.

29/11/2020: É falso que cabos eleitorais de Sarto tenham transportado urna adulterada.

04/12/2020: É enganoso vídeo que denuncia suposta fraude nas urnas em João Pessoa.

A respeito da segurança das urnas eletrônicas, sugiro fortemente assistir aos dois vídeos a seguir (aviso de que se trata de dois vídeos gravados em um evento técnico, de modo que há muita linguagem técnica).

O primeiro é uma palestra de 40 minutos com o especialista em segurança de dados Diego Aranha, talvez o mais vocal crítico da segurança das urnas eletrônicas no Brasil e advogado do voto impresso pelas urnas eletrônicas como único meio seguro de auditoria do voto.

O segundo vídeo, um pouco mais longo (uma hora) é um debate, no mesmo evento, entre Diego Aranha e um técnico do TSE, em que este rebate ponto por ponto dos argumentos de Aranha. No final, ficam claras duas coisas: 1) É possível sim auditar a totalização dos votos (o PSDB fez isso em 2014) e 2) A única vulnerabilidade do sistema é um ataque interno, ou seja, alguém do próprio TSE introduzir um software malicioso que manipule os resultados. Hackers externos não têm acesso ao sistema. Fica então a questão: vale gastar R$ 2,5 bilhões para introduzir um sistema que, por ser mecânico, pode resultar em problemas em várias seções eleitorais para, no final, não servir para desmontar a Grande Tese da fraude, como vimos nas eleições americanas?

Minha opinião: nenhum sistema do mundo é 100% seguro. As cédulas em papel eram obviamente inseguras, e a impressão do voto não tornará o sistema 100% seguro também. A auditoria permitida pelo voto impresso é uma miragem, pois sempre um agente interno pode também manipular estes votos. Ou seja, você conferiu o seu voto no papel, mas esse papel pode ser trocado por outro no caminho da apuração. Não existe nada 100% seguro. E, como não existe nada 100% seguro, nunca será possível refutar a Grande Tese.

Teorias da Conspiração never die.