O Brasil, a essa altura do campeonato, em que já se faz planos de sair da quarentena, já deveria ter acumulado pelo menos 1% de sua população testada. Para quem deveria ter feito pelo menos 2 milhões de testes, saber se foram 150 ou 180 mil não tem a mínima importância estatística. Continuamos no escuro de qualquer forma.
A saída mais segura da quarentena seria a chamada “herd immunity” ou imunidade de rebanho. Quando um certo percentual da população já pegou a doença e, pelo menos teoricamente, adquiriu imunidade, o surto termina, porque falta gente para ser contaminada. Este percentual da população é objeto de debates, mas já ouvi coisas entre 50% e 70%.Como saber se um país ou região atingiu a imunidade de rebanho? Não há outro modo a não ser testar a população. Por isso, é incontroverso que é preciso fazer testagem extensiva para que se tenha segurança na saída da quarentena.
O gráfico abaixo mostra a relação entre o grau de imunidade da população (eixo y) e a extensão da testagem, em número de testes/milhão de habitantes (eixo x). O grau de imunidade é calculado dividindo-se o número de casos registrados pelo número de testes aplicados. Obviamente, quanto mais testes, mais confiável será esse número.
Vamos avaliar dois extremos: no país A, somente se testa aqueles que chegam com sintomas claros de Covid-19 no hospital. A tendência é de que 100% dos testes resultem positivo. Isso significa que 100% da população tem o vírus? Provavelmente não, a testagem é muito limitada e enviesada. Já no país B, os testes são aplicados aleatoriamente a um número grande de pessoas. O resultado, neste caso, é uma aproximação mais fidedigna do grau de contaminação da população como um todo.
A má notícia aqui é que o índice de 50% não foi atingido em nenhum país, mesmo naqueles que testam pouco. No Brasil, por exemplo, o índice é de 15%, mesmo testando somente 0,13% da população. Ou seja, provavelmente, o grau de contaminação da população, hoje, é muito baixo.
Na Islândia, campeã mundial de testagem, o índice de contaminação é de meros 4%. Países que combinam alta testagem (acima de 1% da população) com contaminação relativamente alta (acima de 20%) são raros, e normalmente são aqueles onde o surto causou muitas hospitalizações/mortes, como é o caso da Espanha, Bélgica, EUA e Holanda).De qualquer forma, parece claro que a imunidade de rebanho não foi atingida em lugar nenhum do mundo. O que fazer? Manter tudo fechado até encontrar uma vacina? Impraticável. O que será feito é uma abertura cuidadosa, sabendo-se que novos surtos irão surgir, a que se seguirão novos fechamentos. Conviveremos ainda muitos meses com essa epidemia, é bom se acostumar.
O Ministro da Saúde anunciou ontem que vai ampliar o número de testes para a Covid-19 de 24 para 46 milhões. Excelente notícia! Afinal, sem testes em massa, será impossível sair com segurança da quarentena, como reconhece o ministro.
Mas, vamos ver a coisa um pouco mais de perto.
Até o momento, quase dois meses depois do início da epidemia no país, o Brasil processou 1.373 testes/milhão de habitantes, o que resulta em aproximadamente 290 mil testes no total (esse número é do worldometer, por incrível que pareça não encontrei um dado oficial a respeito). Se conseguirmos processar 46 milhões de testes, isso vai nos levar a incríveis 220 mil testes/milhão de habitantes!
Só para vocês terem uma ideia, a Islândia, campeã mundial de testagem, atingiu a marca de 128 mil testes/milhão de habitantes. Os EUA, com todos os recursos de que dispõem, processaram, até o momento, 12,5 mil testes/milhão de habitantes, 10 vezes menos que a Islândia. Então, 220 mil testes/milhão é um número respeitável, para não dizer muito bom para ser verdade.
Comprar os testes é a parte fácil. Difícil, como temos visto pelas filas de testes acumulados nos laboratórios, é processar os testes. No vídeo, o ministro diz que já fez um convênio com o Laboratório Dasa para processamento de 30 mil testes/dia. Para processar 46 milhões de testes nesse ritmo, serão necessários 4 anos e 2 meses, trabalhando sábados, domingos e feriados.
Obviamente, a capacidade de processamento não é suficiente para essa quantidade de testes. A Dasa é, de longe, o maior laboratório do Brasil, e vai conseguir processar 30 mil testes/dia. Para processar todos esses testes em, digamos, um ano, precisaríamos de outras 3 Dasas. Existem?
Desde o início da epidemia, o que não faltam são anúncios grandiloquentes de testagem. A coisa é sempre da ordem de milhões. A realidade, no entanto, é que não conseguimos, até agora, testar mais do que 300 mil pessoas. Não seria o caso de manter os 24 milhões de testes já adquiridos (a maior parte vinda de doações), o que já nos colocaria no patamar da Islândia, e gastar esse dinheiro em coisas mais úteis?
Como eu disse no início, anunciar compra de testes é a parte fácil, e passa a impressão de que o governo está trabalhando. Vamos ver como evolui o número de testes realmente aplicados e processados.
Atualizei estudo que publiquei há 8 dias. Os números não mudaram muito desde então.
Só relembrando: este gráfico mostra a relação entre total de casos e total de testes em cada país (fonte: worldometer), para países com mais de 5 mil casos confirmados.
A média desses países é de 11 casos confirmados para cada 100 testes feitos. Mas há discrepâncias imensas. Por exemplo, na Espanha, são 47 casos confirmados para cada 100 testes. Já na Coreia, são apenas 2, enquanto na Noruega são 5. O que pode explicar tamanha diferença?
Entendo que sejam duas coisas: o número de contaminados e a aleatoriedade da amostra. Na Espanha e França, onde essa relação é alta, deve haver mesmo mais gente contaminada, e devem estar testando mais as pessoas doentes. Já onde a relação é baixa, estão testando todos, doentes e não doentes, além de haver menos pessoas contaminadas.
Esta aleatoriedade é até mais importante do que o número em si de testes. Na Coreia, testaram 10 mil pessoas para cada milhão de habitantes. Na Itália, foram 15 mil. Mas o índice de contaminação na Itália é de 16% do número total de testes, contra 2% da Coreia. A Itália está testando mais simplesmente porque tem mais doentes, não é completamente aleatório.
Obviamente, quanto mais testes, mais tende a ser aleatório. Vamos pegar um caso extremo, a Islândia (que não está no gráfico). Neste pequeno país, foram testados nada menos que 103 mil pessoas para cada milhão de habitantes, ou mais de 10% da população! O número de contaminados é de 5 mil por milhão, ou 5% da amostra. Com uma amostra desse tamanho, já dá para tirar uma conclusão estatística robusta: 5% da população foi contaminada. Luxemburgo é outro exemplo: eles testaram quase 5% da população, e 11% está contaminada. Ou seja, com este tamanho de amostra, é provável que este número de contaminados se aproxime da realidade do país.
Outra comparação interessante é entre a Suécia e os outros países nórdicos. Na Suécia, até o momento, foram 5 mil testes/milhão, sendo que 19% deu positivo. Na Noruega foram 23 mil, na Dinamarca foram 12 mil e na Finlândia foram 8 mil testes por milhão, com proporção de contaminados de 5%, 9% e 7% respectivamente. Ou seja, fica claro que a Suécia escolheu outro caminho em relação aos seus vizinhos.
E no Brasil? Até agora, testamos míseros 300 para cada milhão, e 33% (100 para cada milhão) deram positivo para o Covid-19. Ou seja, estamos testando somente os doentes (ou muito doentes). A triste realidade é que não temos a mínima ideia do que está acontecendo.
O site Worldmeter (minha fonte de dados) disponibilizou o número de testes por país. Com esses dados, fiz um gráfico mostrando a relação entre o número de testes e o número de casos confirmados (tudo em relação à população de cada país). Plotei todos os países com mais de 1.000 casos.
A reta é a média, que dá mais ou menos 10%. Ou seja, de cada 10 testes, 1 dá positivo. Isso, na média desses países.
Mas há diferenças grandes! Na Espanha, por exemplo, a razão é de 35%, ou seja, de cada 10 testes, 3,5 deram positivo até o momento. Por outro lado, na Noruega, a razão é de apenas 5%. Na Austrália e na Coréia é de 2%, enquanto na Itália é de 19% e nos EUA de 20%.Uma explicação possível é que os números são mais altos nos países que demoraram mais a tomar medidas de contenção. Isso deve acontecer simplesmente porque tem mais pessoas contaminadas na população. Outra explicação seria que os países com maiores percentuais são aqueles que estão testando somente os doentes, enquanto aqueles com percentuais baixos estão testando todo mundo. Talvez, inclusive, uma coisa esteja relacionada com a outra.
O Brasil é aquele pontinho vermelho no canto inferior esquerdo. Temos poucos testes e poucos casos ainda. A relação é de 17%, quase igual à Itália. Ou seja, ou demoramos para fazer medidas de contenção, ou estamos testando somente os doentes. De qualquer forma, ainda é um número muito pequeno para tirar conclusões.
Aos que estão soltando fogos pela curva mais suave de casos no Brasil, sugiro guardar os fogos por enquanto.
PS1: nesse contexto, o acompanhamento do número de mortos parece ser um indicativo mais fidedigno do espalhamento da doença. Apesar de ser um dado defasado, ele pode ser comparado com mais precisão com as estatísticas de outros países. Além disso, ao que parece, estão priorizando os exames de pessoas em estado crítico e mortas.
PS2: parece óbvio que se faz necessária uma coordenação com os laboratórios privados para aumentar a capacidade de testagem.
A coisa toda é complexa, e à medida que se vai montando o quebra-cabeças, a paisagem vai se desenhando. Mas trata-se de um quebra-cabeças de 5.000 peças, então a compreensão do todo é lenta. Pelo menos para mim.
Juntei aqui 4 peças desse quebra-cabeças, que estão me ajudando a compreender melhor o panorama.
O primeiro é a reação da China ao problema inicial, na região de Hubei, e seus resultados, que pode ser visto aqui.
O segundo é o que está acontecendo na Itália neste momento.
O terceiro é o que a Coreia fez e o que a Alemanha está fazendo (aqui), junto com um artigo de Fernando Reinach hoje no Estadão, sobre testes.
E o quarto é um artigo de Geraldo Samor, no Brazil Journal, sobre os custos econômicos de uma quarentena sem fim (aqui).
Comecemos pela primeira peça. O que fez a China? Uma quarentena total de uma região inteira (Hubei) com cerca de 60 milhões de habitantes. Total quer dizer total. Tudo parou de funcionar. Pessoas com sintomas foram confinadas em estádios. Saídas de casa foram restringidas de maneira severa. E severa quer dizer severa. Tudo isso a partir do dia 23/01. Ontem, pela primeira vez, não se registrou nenhum caso na região de Hubei. Ou seja, dois meses depois. E só daqui a 14 dias, se não houver mais nenhum caso, a quarentena será liberada. Dois meses e meio no total.
Vamos tentar encaixar a segunda peça nessa primeira. A região norte da Itália vem sofrendo com um número muito grande de casos. No entanto, as medidas restritivas foram tão draconianas como as que que vimos em Hubei. Por que não funcionaram, pelo menos até o momento? Um funcionário da Cruz Vermelha chinesa afirmou (postei mais cedo) que as medidas não foram draconianas o suficiente. Pergunto: será possível, em uma democracia, agir como se estivéssemos em uma ditadura?
Ficamos o tempo todo recebendo vídeos da Itália, mostrando o horror. A mensagem é clara: “eu sou você amanhã”, se você não adotar as medidas draconianas adotadas pela China. Daí vem a pergunta: não há realmente meio termo? Aí entra a terceira peça do quebra-cabeças: a Coreia do Sul e a Alemanha adotaram a tática de testar à exaustão, além de medidas restritivas. A Alemanha está testando 160 mil pessoas/semana, o que pode explicar a enorme, gigantesca discrepância entre o número de casos e o número de mortes: enquanto essa relação é de 9,3 mortes para cada 100 casos na Itália, na Alemanha este número é de apenas 0,4. A diferença pode estar no denominador, não no numerador. O artigo do Fernando Reinach explica todas as vantagens de se fazer testes extensivos. E, parece, o governo acordou, e prometeu 5 milhões de testes até semana que vem. Vamos ver.
Mas isso não substitui a estratégia de “social distancing”. Tanto a Alemanha quanto a Coreia do Sul a adotaram. Hoje, por exemplo, a Alemanha anunciou o fechamento de todo o comércio não essencial. Então, trata-se de um conjunto de estratégias. Isso nos remete à quarta e última peça do quebra-cabeças, o econômico.
O artigo de Geraldo Samor resume a indignação de várias pessoas com o custo de se deter esta epidemia. Ele pergunta-se se não seria o caso de, ao invés de distribuir um caminhão de dinheiro para mitigar os efeitos da recessão, não seria mais inteligente usar uma fração desse dinheiro em ações na área de saúde para mitigar o problema. Ou seja, a estratégia seria investir tudo na mitigação e não adotar medidas que possam resultar em queda do PIB. Parece lógico, mas tem um só problema: qualquer ação demanda tempo, desde a construção de hospitais, passando pela aquisição de equipamentos e testes e incluindo ações de educação da população. Não é só uma questão de dinheiro, mas de gerenciamento. Não é qualquer país que consegue construir um hospital em 10 dias ou que tem capacidade gerencial para fazer 160 mil testes/semana. Nem todo país é igual à China ou à Alemanha, e mesmo estes países adotaram medidas de contenção envolvendo algum tipo de quarentena.
Talvez o máximo que possamos almejar é que estas medidas de contenção não sejam em vão, como tem sido na Itália: ou seja, além da depressão econômica, eles não estão conseguindo controlar a epidemia. Parafraseando Churchill, entre a desonra e a derrota, escolheram as duas.
Resumindo o panorama até o momento: a China mostrou um caminho de difícil implementação no chamado mundo democrático. Coreia e Alemanha vêm adotando uma versão mitigada desse mesmo caminho, mas complementando com testes extensivos, o que parece estar funcionando. Mesmo assim, os dois países vêm adotando medidas recessivas como todos os outros. Até o momento, nenhum país onde a epidemia apresentou transmissão comunitária deixou de adotar medidas restritivas de aglomeração e contato social. Se o Brasil o fizesse, seria o primeiro. Essa questão permanece sem resposta.