Ninguém mexe no queijo de ninguém

O Estado brasileiro é uma máquina de concentração de renda. Por trás das discussões sobre o pagamento do Auxílio Brasil, encontra-se uma miríade de interesses privados, dos quais três exemplos estão nas notinhas abaixo.

Qualquer regra fiscal sempre baterá de frente com as demandas infinitas de lobbies e corporações, sempre dispostos a defender com unhas e dentes suas causas justas. Agora ainda mais, em uma república formada por sindicalistas e desenvolvimentistas.

Isso sem falar, claro, mas cláusulas pétreas da Constituição cidadã, que impede uma gestão de pessoas minimamente racional e que protege os mais abastados com regras generosas de previdência.

O teto de gastos é apenas o bode expiatório perfeito para se culpar pela “falta de recursos para pagar o auxílio para os pobres”. Enquanto isso, ninguém mexe no queijo de ninguém.

Me engana que eu gosto

Em evento ontem, Alckmin, supostamente o adulto na sala, voltou a defender a “responsabilidade fiscal” em tese. Na prática, porém, a sinalização é de que buscam uma maneira para gastar mais enquanto esperam iludir os mercados com fórmulas de “controle de dívida”. Vejamos.

Alckmin afirma que o teto de gastos “esmaga investimentos” ao não permitir que as despesas subam, mesmo que as receitas tenham se elevado. Não sei se é ignorância ou má fé, mas Alckmin convenientemente se esquece da razão estrutural que levou ao debacle fiscal do governo Dilma. Vamos refrescar sua memória.

Até 2014, o regime fiscal no Brasil era o da produção de superávits primários. Funcionava bem. Afinal, para manter a dívida sob controle, o importante mesmo é produzir superávits primários. Controlar gastos é apenas uma forma de atingir esse objetivo. Se fosse garantido que as receitas cresceriam, digamos, 5% ao ano além da inflação, os gastos poderiam crescer nesse mesmo ritmo sem que o superávit primário diminuísse. Aliás, foi exatamente isso o que aconteceu entre 2003 e 2012: despesas e receitas cresciam a uma taxa de 5% ao ano acima da inflação, e os governos Lula e Dilma I colocaram em prática a proposta de Alckmin: permitir que as despesas crescessem no mesmo ritmo, a fim de não “esmagar investimentos”.

Ocorre que, como sabemos, despesas são para sempre, mas nada garante que as receitas o sejam. A partir de 2012, o ritmo de crescimento das receitas começou a cair, e passou a diminuir, em termos reais, a partir de 2014. As despesas, no entanto, continuaram a crescer, pois o orçamento no Brasil é extremamente rígido: uma vez a despesa estando lá, não há condições políticas de tirá-la de lá. Vide, por exemplo, o auxílio de R$ 600, que era para ser uma exceção durante a pandemia, e tornou-se regra.

Então, aconteceu o inevitável: com receitas caindo e despesas rígidas, o superávit se transformou em déficit fiscal, não sem antes ter sido camuflado com as chamadas “pedaladas fiscais”. A solução foi a adoção do teto de gastos: com os gastos crescendo somente com a inflação, era questão de tempo para voltarmos a ter o que importa: superávit primário.

O que Alckmin propõe é, na prática, a volta ao regime anterior: se o aumento das receitas permitir, poderíamos ter aumento das despesas. O desastre, obviamente, será o mesmo, dado que as despesas não diminuirão quando as receitas caírem. E é questão de tempo para que caiam.

Um mecanismo qualquer de “controle de dívida” não muda essa realidade. Assim como o teto de gastos, uma regra de limite de dívida iria igualmente “esmagar investimentos”, o que certamente contribuiria para o seu fracasso, assim como foi com a regra do teto. Não há solução quando o que se quer, na verdade, é gastar sem limites.

A regra do teto tem duas grandes vantagens: é anti-cíclica e é simples de entender. A grande desvantagem é que impõe uma disciplina que a sociedade brasileira não está preparada para suportar. As regras alternativas em discussão, que permitiriam “aumentar as despesas quando as receitas aumentam”, são pró-cíclicas e de uma complexidade bizantina, na medida para serem manipuladas pelos políticos. É um “me engana que eu gosto”, feito sob medida para posar de fiscalista, ao mesmo tempo em que se continua a gastar como se não houvesse amanhã.

Na atual situação das contas públicas nacionais, qualquer regra séria deverá impor uma disciplina insuportável para a sociedade. Desconfie de regras fiscais indolores. Assim como os regimes alimentares que não exigem esforço para emagrecer, essas regras são apenas uma forma de empurrar o problema com a barriga.

O discurso faz a diferença

Quando a regra do teto de gastos foi aprovada, em 2016, já se sabia que a dinâmica de crescimento dos gastos constitucionalmente obrigatórios forçaria a revisão da regra em algum momento no futuro. Isso porque, com os gastos totais limitados pela inflação e os gastos obrigatórios (principalmente Previdência e funcionalismo) crescendo acima da inflação, os gastos discricionários (não constitucionalmente obrigatórios) seriam espremidos com o passar dos anos. Por isso, se previu uma revisão da regra para 2025. A ideia (ou esperança) era de que houvesse um amplo debate no país sobre os gastos obrigatórios, de modo a abrir espaço para os não obrigatórios.

Ocorre que o único debate que ocorreu foi o da reforma da Previdência, que ajudou, mas ficou muito longe do suficiente para estabilizar o crescimento dos gastos. Além disso, para juntar o insulto à injúria, veio a pandemia, que fez com que gastássemos, em dois anos, toda a poupança gerada pela reforma da Previdência em 10 anos. Além disso, cristalizou o valor de R$600 para o Bolsa Família / Auxílio Brasil, fazendo com que este programa saltasse dos anteriores R$ 35 bilhões/ano para os propostos R$ 175 bilhões/ano para 2023.

(Alias, só um parêntesis. Ainda vou entender como R$ 35 bilhões foram capazes de “acabar com a fome no Brasil”, e, com R$ 175 bilhões, “a fome nunca foi tão grande e intensa no país”. – essa frase contém várias ironias)

Assim, pressionado, por um lado, pelos gastos obrigatórios e, pelo outro, por um programa gigantesco de transferência de renda, não é à toa que o espaço para os gastos não obrigatórios tenha desaparecido. E o que são esses gastos não obrigatórios?

A notícia a seguir destaca um deles.

Os salários dos policiais da PF são gastos obrigatórios, mas o papel para confeccionar o passaporte, não. A mesma coisa, por exemplo, nas universidades federais: os salários dos professores e funcionários são gastos obrigatórios, mas o dinheiro para comprar o papel higiênico, não. Os funcionários do IBGE têm o seu salário garantido, mas a estrutura para fazer o censo, não. Programas como Farmácia Popular e incentivos à cultura são não obrigatórios. E por aí vai.

Por isso, o PT propôs tirar R$ 105 bilhões adicionais da regra do teto por 4 anos. A máquina do Estado corre o sério risco de parar se isso não for feito. Bolsonaro teria exatamente o mesmo problema se tivesse sido eleito. Pode-se discutir esse montante, mas alguma coisa teria que ser feita.

Os mercados entendem todo esse racional. O problema é a falta de perspectiva de que esse problema será resolvido algum dia. O mercado financeiro vive de trazer o futuro a valor presente. Quando Lula dá a entender que não está nem aí para o equilíbrio fiscal e o PT pede waiver para 4 anos, a leitura é de que Lula e o PT não têm apetite para resolver a questão de maneira mais estrutural e, portanto, teremos uma dívida explosiva no futuro. E isso é precificado pelos mercados hoje.

Alguns me perguntam, com sinceridade de coração, o que eu faria no lugar, dadas as condições postas. A resposta é relativamente simples: a mesma coisa, só que cuidando a mensagem. “Vamos pedir um waiver de R$ 175 bilhões este ano para acomodar as promessas de campanha. Entendemos que se trata de algo totalmente excepcional. Ao mesmo tempo, vamos trabalhar pelas reformas administrativa e tributária e por uma nova regra fiscal já no primeiro ano do governo, de modo a estabilizar a trajetória da dívida pública”. Obviamente, o mercado não compraria a promessa a valor de face a zero de jogo, e esse montante certamente faria (fará!) com que o BC tenha dificuldade de cortar juros no ano que vem. Mas, pelo menos, se evitaria todo esse estresse dos mercados que vivenciamos nos últimos dias, e o novo governo poderia começar em um ambiente melhor.

Lula tem se comportado como presidente de grêmio estudantil. Quando voltar a vestir o figurino de presidente (se um dia voltar), os mercados responderão positivamente.

A isonomia “por cima”

Desculpem-me se estou demasiadamente monotemático, mas sou obrigado a, novamente, falar sobre orçamento público. Ontem escrevi sobre a síndrome do “já que”. Hoje, escreverei sobre a “isonomia por cima”.

Já notaram que a palavra “isonomia”, no contexto do funcionalismo público, é sempre usada para nivelar salários por cima? Nunca se trata de nivelar por baixo, apesar de a palavra “isonomia” significar, apenas, igualdade de nível, qualquer que ele seja. O nobre deputado Marcelo Castro poderia propor um aumento de 5% para o Judiciário e o Legislativo também, o que não exigiria mudança alguma no orçamento e garantiria a mesma “isonomia”. Mas, por alguma estranha manobra mental, o deputado prefere o caminho mais difícil para alcançar o mesmo objetivo.

Claro que se trata de uma ironia. Judiciário e Legislativo, assim como o Executivo, são poderes autônomos e, como tal, têm o poder de determinar os seus próprios salários, desde que respeitada a regra do teto de gastos, que é independente para cada Poder. Portanto, não haveria como exigir que todos os poderes seguissem a mesma regra salarial, a não ser que houvesse uma lei específica para tanto. A questão aqui é outra: como o Judiciário e o Legislativo podem dar mais aumento do que o Executivo?

A coisa remonta ao drible da vaca que o governo deu no teto de gastos em 2021. A chamada PEC dos Precatórios trazia uma mudança de data para o cálculo da inflação que reajusta o teto de gastos para o ano seguinte: era o IPCA acumulado em 12 meses até junho do ano anterior, e passou a ser o IPCA acumulado em 12 meses até dezembro do ano anterior. Como a inflação estava se acelerando em 2021, essa manobra permitiu aumentar o teto de 2022. O Executivo gastou esse dinheiro a mais pagando a manutenção do Auxílio Brasil em R$600, de modo que já está na tampa de novo. Já o Legislativo e o Judiciário, que só têm despesas com seu próprio funcionalismo, podem usar esse espaço adicional para aumentar salários.

Trata-se, obviamente, de uma manobra meramente contábil. O dinheiro não apareceu como que por mágica só porque a data de reajuste do teto foi mudada. Se tudo correr conforme os planos do Banco Central, estamos no fim do “bônus inflacionário”, que permitiu uma arrecadação extra em 2021/2022. A partir de 2023, com a queda da inflação e a desaceleração da economia, o aumento da arrecadação reduzirá seu ritmo, e aquele teto mais alto cobrará o seu preço em aumento da dívida pública. A não ser que tenhamos seguidas surpresas inflacionárias que mantenham a arrecadação em alta, o que é, por sinal, o resultado esperado da gastança.

Sinal de que o cobertor já está curto é a quantidade de vezes que vocês lerão o nome do deputado Marcelo Castro, o relator do orçamento, em reportagens desse tipo daqui para frente. Ontem foi o piso da enfermagem, hoje é o reajuste do funcionalismo, e a fila só aumenta para o pedido de “perdão” para ultrapassar o teto de gastos no ano que vem. São todas causas boas e justas, e que implicam aumento permanente de despesas. O Banco Central nos promete inflação na meta em 2024 (já desistiu de 2023 também). Boa sorte.

A síndrome do “já que”

É somente óbvio que era questão de tempo para que o teto de gastos sofresse da síndrome do “já que”. Quem já fez reforma em casa sabe do que estou falando: estamos já encalacrados nos gastos, com a casa toda quebrada, e temos uma ideia que não estava no orçamento inicial. Então, pensamos: ”já que” está tudo quebrado e já gastamos tudo isso, por que não fazer mais esse gasto com essa nova ideia? Aquilo nos parece muito razoável, pois a comparação do novo gasto com o já incorrido parece irrelevante. E assim, de “já que” em “já que”, gastamos muito mais do que o orçamento inicial.

O piso da enfermagem é o mais novo na fila do “já que”. Antes tivemos o auxílio emergencial e as despesas com infraestrutura. Provavelmente teremos outras mais. Farmácia Popular, por exemplo. Ou merenda escolar. Ou Lei Paulo Gustavo. Procure na imprensa nas últimas semanas as denúncias sobre cortes de verbas e você verá os candidatos potenciais para a síndrome do “já que”. Basta ter um padrinho aguerrido no Congresso, como os enfermeiros tiveram a sorte de encontrar.

Claro que todas essas despesas são meritórias. Na verdade, custa-me crer que haja no orçamento alguma despesa que não o seja. Tudo o que nossos nobres presidente e deputados aprovam é para o bem da nação. Portanto, dizer que esses gastos não são meritórios chega a ser uma contradição em termos. Na verdade, os gastos não meritórios, como, por exemplo, as inúmeras e diversas vantagens dos funcionários públicos, estão inscritos nos chamados “gastos obrigatórios”, talhados em rocha mais firme do que a tábua dos 10 mandamentos. Nessas despesas ninguém mexe.

Uma lei orçamentária que sofre da síndrome do “já que” não pode ser levada a sério. Agora que aprendemos que fazer uma PEC é tão fácil quanto trocar de camisa, essas despesas meritórias certamente encontrarão guarida em nosso “orçamento”, qualquer que seja o próximo presidente. A conta? Bem, a conta será paga pela próxima geração, que herdará a dívida que fazemos hoje para pagar por esses gastos meritórios. Nossos filhos e netos se perguntarão, como nos perguntamos hoje, porque o país cresce tão pouco e a inflação é tão alta, aprofundando as desigualdades. Estamos hoje pagando as irresponsabilidades do passado. E a próxima geração pagará pelas nossas irresponsabilidades. E assim, de irresponsabilidade em irresponsabilidade, vamos construindo o país do futuro que nunca chega.

ASA – Associção dos Sem Associação

A Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base apresentou documento aos candidatos defendendo as reformas. E, enquanto as reformas não vêm, propõe um waiver ao teto de gastos para investimentos em infraestrutura. Afinal, infraestrutura é fundamental. É só coincidência que a Associação exista justamente para defender os interesses de empresas de construção de infraestrutura.

Ficamos esperando o documento da Associação das Faculdades Particulares, pedindo um waiver para gastar além do teto de gastos para financiar alunos do ensino superior. Afinal, educação é fundamental.

Também aguardamos ansiosamente o documento da Associação de Hospitais Privados solicitando um waiver no teto de gastos para a atualização da tabela do SUS. Afinal, saúde é fundamental.

A Associação dos Funcionários Públicos também deve estar preparando um documento para sugerir um waiver para o teto de gastos para o reposição salarial do funcionalismo. Afinal, sem serviço público o país para.

Poderíamos aqui continuar a lista de Associações que consideram muito importantes, e até mesmo essenciais, os produtos e serviços de seus associados, a ponto de justificar uma brecha no teto de gastos. A única associação que você não verá aqui é a ASA – Associação dos Sem Associação. Esses são os milhões de brasileiros que não têm como impor seus interesses em Brasília. Para os integrantes do ASA, o teto de gastos é a única forma de manter a disciplina fiscal e, por consequência, os juros e a inflação mais baixos. O poder de compra da moeda é o único patrimônio dos associados da ASA, e para estes não interessa qualquer waiver no teto de gastos.

A ASA não faz lobby em Brasília. Seus interesses não são defendidos por ninguém. Por isso, há muitas “dificuldades políticas” para manter alguma disciplina fiscal.

Lula descobre a “regra de ouro”

Em entrevista à imprensa internacional, Lula voltou a atacar a regra do teto de gastos. Diz o candidato do PT que a regra parece “coisa para garantir interesse do sistema financeiro”.

Lula tem razão. O teto de gastos só está aí para garantir que a dívida pública seja solvente ao longo do tempo, o que só interessa aos financiadores da dívida, o sistema financeiro. Mas Lula deveria pensar melhor antes de cuspir na mão que lhe ajuda. Melhor ter um sistema financeiro que cobre o que lhe é devido do que não ter ninguém disposto a financiar as atividades do governo.

Mas o que me chamou a atenção foi o trecho seguinte, que dá uma pista do que Lula tem em mente. Segundo o candidato do PT, o governo responsável não gasta mais do que tem, “a não ser para construir novos ativos que possam fazer o país crescer”.

Isso a que Lula se refere está longe de ser uma novidade. Trata-se da “Regra de Ouro”, a mais antiga regra fiscal do país, nascida na Constituição de 88, e que diz exatamente isso: o governo só pode se endividar para fazer investimentos. Segundo Lula, portanto, bastaria a regra de ouro para resolver o problema fiscal do país, restando ociosas todas as outras regras.

Bem, seria assim se fosse assim. Se a regra de ouro fosse suficiente, não teríamos que ter criado outras regras, como a do superávit primário ou do teto de gastos. Ocorre que, a exemplo dos seus sucedâneos, a regra de ouro foi desmoralizada ao longo do tempo. Primeiro, porque muitos itens foram sendo considerados como investimentos mesmo não sendo. Depois, receitas meramente contábeis, como o lucro do BC com a variação cambial das reservas, foram consideradas na conta. Por fim, mais recentemente, através da aprovação de “créditos extraordinários” no Congresso, uma espécie de “waiver” para burlar a regra. Ou seja, cumprir a regra de ouro a rigor, hoje, demandaria um esforço fiscal ainda maior do que cumprir o teto de gastos. Acho que Lula não foi informado sobre isso.

Isso sem considerar o “estilo PT” de governar. Os grandiosos investimentos realizados através de um BNDES turbinado resultaram na maior recessão da história brasileira. É para esse tipo de “investimento” que Lula quer licença para gastar?

Meta para a dívida: funciona?

A manchete acima é de ontem, mas não tive tempo de comentar. Trata-se de uma nova ideia sobre âncora fiscal, em elaboração por técnicos do ministério da Economia e que consistiria de uma meta para a dívida pública, incluindo bandas de flutuação. Funciona?

Em primeiro lugar, as vantagens. A primeira é que uma meta para a dívida pública endereça diretamente a preocupação do mercado, que é o tamanho da dívida. Para os credores, tanto faz como se chega em uma dívida controlada, desde que se controle a dívida. O teto de gastos era uma maneira de se chegar, em algum momento, a superávits primários e, por consequência, a uma trajetória de redução da divida. Controlando a dívida diretamente, teríamos o mesmo resultado de maneira mais direta.

A segunda vantagem em relação ao teto é a flexibilidade. Justamente por endereçar diretamente o problema, a meta para a dívida pública deixa mais graus de liberdade nas mãos do gestor público. Limitar os gastos é apenas um de três instrumentos disponíveis para atingir o objetivo. Os outros dois são aumento das receitas correntes e aumento das receitas extraordinárias, via venda de ativos. Assim, a meta poderia ser alcançada combinando-se vários instrumentos e não apenas um só, livrando o governo da camisa-de-força representada pelo teto de gastos. (Estou desconsiderando a diminuição dos juros da dívida como instrumento, dado que não está nas mãos do governo federal mas de um ente independente, o Banco Central).

Agora, as desvantagens. A primeira é que o controle do nível da dívida é uma política pró-cíclica, ou seja, vai apertar o torniquete quando mais o país precisar de investimentos. Isso acontece por uma questão matemática: como a relação dívida/PIB tem o PIB no denominador, quando o PIB diminui a relação aumenta. Além disso, com a redução do PIB, menos impostos são arrecadados, piorando ainda mais a relação dívida/PIB. Neste momento, o governo será chamado a diminuir gastos para voltar à relação dívida/PIB estabelecida pela meta, aumentando a desaceleração da economia. O teto de gastos, por outro lado, é anti-ciclico: por ser um objetivo nominal (gastos do ano anterior corrigidos pela inflação), em uma recessão os gastos em relação ao PIB aumentam, justamente porque o PIB diminuiu. Ou seja, o teto trabalha contra o ciclo econômico, gastando mais em relação ao PIB quando há recessão e gastando menos em relação ao PIB quando há expansão do PIB.

E é nossa pró-ciclicalidade que reside a grande fraqueza da meta para a dívida pública. Imagine a pressão política para “abrir exceções” à regra quando a vaca da economia estiver indo para o brejo. Talvez por isso, os técnicos da Economia tenham pensado nas “bandas” de flutuação da dívida. Essas bandas serviriam para absorver choques inesperados que tirariam a relação dívida/PIB da trajetória desejada, a exemplo de como funcionam as metas de inflação. Assim, o governo ainda teria algum espaço de manobra caso houvesse uma recessão “inesperada”.

Só tem um problema nessa comparação: um BC crível começa a agir imediatamente após entender que a meta (o centro da meta, não a banda superior), está em risco. E por agir, entendemos aumentar a taxa de juros. Para imitar o comportamento do BC no sistema de metas, o governo federal deveria cortar gastos imediatamente após ficar claro que o centro da meta de endividamento está sob risco. Ou seja, no sistema de metas de inflação, a banda não é uma desculpa para deixar a inflação correr solta. Isso foi o que aconteceu no Banco Central do Tombini, o que destruiu a credibilidade da autoridade monetária. Da mesma forma, a banda da meta de endividamento não deveria servir como uma desculpa para “gastar mais caso haja necessidade”, sob pena de jogar mais essa regra na mesma vala comum em que jazem todas as outras regras fiscais do país. Mas não é nada menos que óbvio que é justamente isso que ocorrerá.

A regra do teto de gastos inscrita na Constituição foi a nossa melhor chance de construir credibilidade fiscal: uma regra simples, de fácil entendimento e contra-cíclica, que poderia ter induzido uma reforma do orçamento público. No final, foi o orçamento público que induziu uma reforma (na verdade, o fim) do teto. Qualquer outra regra será inferior e, portanto, menos apta a induzir reformas que tornem o Estado brasileiro sustentável no tempo. Se o teto não deu conta de suportar as pressões políticas, imagine uma regra mais flexível. O resultado disso são taxas de juros reais mais altas do que precisariam ser e, portanto, crescimento econômico menor ao longo do tempo.

La garantia soy yo!

O Brasil é um país que, a cada temporada, adere à dieta da moda com entusiasmo, para desistir logo adiante. A última dieta foi o teto de gastos, abandonada, na prática, pelo governo Bolsonaro.

O que não falta no Brasil são regras fiscais. Regra de Ouro, Lei da Responsabilidade Fiscal, superávits primários, teto de gastos. Uma a uma, essas regras fiscais foram ficando pelo caminho, como memoriais das boas intenções de que o inferno está repleto.

Quando Lula afirma que a lei do teto só tem utilidade para governos irresponsáveis, ele tem razão. Aliás, a regra só foi aprovada no governo Temer justamente por causa da irresponsabilidade dos governos do PT que o antecederam. A ideia era ter uma regra inscrita na Constituição, de modo que fosse muito difícil mudá-la. Não contavam com a astúcia de Rodrigo Pacheco, Arthur Lira e seus companheiros de Congresso, que aprovam PEC como quem troca de camisa.

Lula diz que vai acabar com a regra do teto. Na verdade, Lula vai dar-lhe um enterro digno, dado que, hoje, trata-se de um cadáver insepulto, fedendo na sala. A partir do ano que vem, teremos a inauguração de uma nova regra fiscal, chamada de “La garantia soy yo”. Provavelmente não vai funcionar, como todas as outras. Mas, pelo menos, não perderemos tempo fazendo de conta que estamos seguindo uma dieta rígida. Pelo direito de ser gordo!

E la nave do populismo va

Anteontem, foi aprovado no Senado um pacote de bondades no valor de R$ 41 bilhões. Como não há espaço no teto de gastos, foi aprovado, em conjunto, a decretação de um “estado de emergência”, o que permite gastos acima do teto. A PEC (sim, foi necessário emendar a constituição para aprovar essa despesa, dado que o teto de gastos está inscrito na constituição) foi aprovada, no primeiro turno, por incríveis 72 votos a 1 e, na segunda votação, por 67 votos a 1. Além disso, sua tramitação levou poucos dias, um verdadeiro recorde para uma PEC, que, normalmente, tem seu tempo de tramitação medida em meses, quando não em anos.

Este episódio é um suco concentrado de Brasil, e nos permite observar a realidade política e econômica brasileira de diversos ângulos. Vejamos.

1) A lenda de que Bolsonaro não realizou tudo o que queria porque é refém do Legislativo (desculpa normalmente usada para poupar o presidente da crítica de não ter avançado com reformas estruturais) cai por terra. No presidencialismo, quando o presidente quer, mas quer de verdade, a coisa acontece. Um pacote de bondades com o objetivo de ajudá-lo nas eleições foi aprovado por uma quase unanimidade na velocidade da luz. Se isso não é poder político, não sei mais o que é.

2) Dois terços dos senadores não enfrentarão eleições neste ano. Portanto, a desculpa de que estão tentando surfar em medidas populistas para ganhar votos não se aplica. A grande maioria votou por convicção mesmo. O que não deixa de ser assustador.

3) A definição de “emergência” passou a ser mais elástica. Em 2020, a pandemia, que paralisou a economia global por vários meses, foi considerada uma emergência. Ok, fazia todo sentido. Em 2021, os efeitos da pandemia ainda se faziam sentir, mas a vacinação avançava e a economia já vinha em franca reabertura. Isso não impediu que a lei orçamentária fosse aprovada prevendo uma claraboia no teto de gastos, para despesas “emergenciais” com a pandemia, o que incluía basicamente qualquer coisa. E agora, a “emergência” é o aumento dos preços dos combustíveis. Três anos seguidos de emergência, o governo já pode pedir música no Fantástico. É o jeitinho institucionalizado.

4) A banalização do conceito de emergência era tudo o que o PT queria. Fica demonstrado que esse teto de gastos é para inglês ver. Gastar acima do teto passou a ser a norma, não a exceção, o que esfrega a desmoralização da âncora fiscal na cara da nação. Não à toa, em seu programa de governo, o PT afirma que o teto de gastos está desmoralizado. E não à toa, votou em peso por mais essa pá de cal no esquema de controle das contas públicas. Somente José Serra (o único senador que votou contra) terá moral para apontar o dedo e acusar um governo do PT de ser fiscalmente irresponsável.

5) Se esse pacote de bondades era realmente imprescindível, não seria difícil encontrar espaço no orçamento para gastos de R$ 41 bilhões. Trata-se de uma situação completamente diferente da de 2020, quando foram gastos R$700 bilhões em uma verdadeira emergência. No entanto, quem disse que tem espaço em um orçamento de R$ 1,6 trilhões para acomodar mais R$ 41 bi de gastos? Cada milímetro do orçamento é defendido com unhas e dentes por interesses dos mais variados. E essa é a lição deixada por mais essa exceção na regra: todo mundo quer patrocinar bondades, desde que não signifique mexer no meu queijo.

6) Tem quem defenda que há espaço para gastar mais porque o governo tem tido sucesso na gestão fiscal, produzindo superávits primários e obtendo receitas extraordinárias, como os dividendos da Petrobras e a venda da Eletrobras. Essa é uma visão míope da realidade. Grande parte do superávit foi obtido através de receitas inflacionárias, que não foram gastas com o funcionalismo, que tem o seu salário congelado há algum tempo. É óbvio – não, é muito óbvio – que esse esquema não se sustenta no tempo. A inflação vai cair em algum momento e, mais cedo ou mais tarde, a inflação passada terá que ser incorporada ao salário dos servidores. Esse superávit primário tem muita semelhança com os programas alardeados pelo PT: conquistas grandiosas que não têm como se sustentar no tempo. Além disso, nós precisamos fazer superávit primário para diminuir a dívida pública. Se, a cada vez que fizermos superávit, inventarmos uma emergência para gastar, a nossa dívida nunca irá diminuir e o nosso gasto com juros só vai aumentar.

7) E por falar em gastos com juros, o mercado vem respondendo com mau humor a essas “flexibilizações” do teto. A taxa de juros tende a ser mais alta, pois a inflação tende a ser mais alta no futuro. Quem acredita que o governo brasileiro vai deixar de gastar como se não houvesse amanhã, permitindo que o BC traga a inflação para a meta de 3% nos próximos 10 anos, o Tesouro Direto tem uma oportunidade imperdível: título prefixado com vencimento em 2033 e pagando 13% ao ano. Ou seja, um título do governo pagando 10% ao ano acima da inflação oficial! Um negócio da China! Alguém pode desconfiar da esmola, e com razão. Afinal, por que um título do governo está pagando uma taxa de juros tão alta? Simples: porque os investidores estão desconfiados de que a inflação pode ser bem mais alta nos próximos anos, dado o comportamento fiscal do governo. Coisas como esse “pacote emergencial” por fora do teto só fazem aumentar essa desconfiança. Resultado: o custo da dívida aumenta. Se nada for feito, chegará uma hora em que nenhuma taxa satisfará os investidores. Aí, só com inflação descontrolada para rolar a dívida.

8) Os bolsonaristas que entendem tudo o que vai acima, mas ainda assim apoiam a medida, o fazem porque seria a única forma de enfrentar o PT na eleição, um partido que também não mede meios para atingir seus objetivos. Vale “fazer o diabo”, como bem disse a ex-presidenta. Seria como que uma licença para gastar em anos eleitorais, deixando a austeridade para anos não eleitorais. Pode ser. Viveríamos de criar bondades que valem somente para anos eleitorais, sendo retiradas nos outros anos, dado que não existe espaço no orçamento. Resta saber se o mercado e os eleitores se deixariam enganar por esse tipo de “bondade não permanente”.

A PEC ainda vai ser votada na Câmara, mas deverá passar por ampla maioria. E la nave do populismo va.