Cristal trincado

A primeira medida de impacto do governo Temer foi a aprovação da PEC do teto de gastos, no final de 2016. Os credores da dívida olharam aquilo e pensaram: “Puxa, agora é pra valer! A disciplina fiscal está inscrita na Constituição! É muito difícil mudar isso, precisa de um quórum muito alto”.

De fato, o saldo positivo nas contas públicas durante 15 anos seguidos foi obtido sem que houvesse uma lei do “superávit primário”. O 2o governo FHC elevou a carga tributária, o governo Lula navegou uma onda de crescimento global e o governo Dilma, até 2014, varreu pra debaixo do tapete despesas (as famosas “pedaladas”), mas todos tinham um compromisso não escrito de manter o superávit primário, compromisso este crível, pois suportado por um track record de vários anos. Tanto era assim que, em 2015, quando o governo mandou pela primeira vez um orçamento prevendo déficit primário, foi um rebuliço tal que tiveram que mandar outro, prevendo superávit. Mas o cristal já estava trincado, principalmente porque começava a vir à tona os truques usados para obter os superávits nos anos anteriores.

Com o fim da era dos superávits primários, era necessário um movimento forte, que recuperasse a credibilidade do governo junto aos seus financiadores. Este movimento foi a PEC do teto de gastos. Inscrito na Constituição, o teto dava a garantia de que os superávits voltariam a ser produzidos no futuro. Era uma questão matemática: com as despesas aumentando somente com a inflação e as receitas aumentando com o PIB nominal, em algum momento estas ultrapassariam aquelas.

Bolsonaro, uma vez eleito, trouxe Paulo Guedes, um fiscalista de quatro costados, para comandar a economia. O ministro até cunhou um termo, os “fura-teto”, para se referir àqueles que, dentro do governo, tramavam despesas além do teto. Até que chegou o mês de outubro de 2021. Pressionado politicamente a encontrar solução para o aumento de gastos no ano seguinte, ano eleitoral, o governo patrocinou a PEC dos precatórios, que, além de postergar o pagamento dessas dívidas, espertamente mudava a data para a medição da inflação usada para o cálculo do teto. Essa mudança abriu um espaço adicional no teto, uma espécie de claraboia.

Guedes jurou que não se tratava de abandonar o teto, mas o estrago já estava feito. Ficou claro para os credores que o fato de ter uma PEC do teto não trazia segurança alguma. Uma outra PEC poderia modificá-la, e não era assim tão difícil obter quórum, se Executivo e Legislativo estivessem irmanados no mesmo objetivo de gastar além dos limites. Ali se quebrou um cristal, assim como havia acontecido em 2015.

O anúncio de uma nova PEC para subsidiar os combustíveis é apenas a confirmação dessa suspeita, a de que a PEC do teto não é um compromisso sério só pelo fato de ser uma PEC. O compromisso fiscal, no final do dia, depende da credibilidade do governo, não de uma lei.

O programa de governo do PT, recém divulgado, afirma, com todas as letras, que vai acabar com o teto de gastos, pois a regra “perdeu credibilidade”. É com dor no coração que falo isso, mas o PT está certo neste caso. O regime fiscal brasileiro perdeu credibilidade, porque fabricamos PECs ao gosto da necessidade do momento. Quem deveria guardar a chave do cofre, se presta a encenar óperas bufas, como o anúncio de ontem. Depois não entendem porque o mercado não vê muita diferença entre Lula e Bolsonaro.

Claro que Lula sabe disso

Lula afirma que o teto de gastos foi estabelecido para satisfazer “banqueiros gananciosos”, que queriam, vejam só, que o dinheiro que emprestaram para o governo fosse pago.

Como sempre, são várias as questões envolvidas nessa, digamos, fala do “candidato-que-não-vai-fazer-o-que-diz-que-vai-fazer”.

A primeira é técnica: conforme estatística do Tesouro Nacional, os “banqueiros” detém somente 29,47% da dívida pública. Tirando os 4,63% detidos pelo próprio governo, restam 65,90% nas mãos de pessoas físicas ou empresas, através de fundos de pensão e fundos de investimento.

Ou seja, não são somente os “banqueiros” que estão preocupados com que o governo pague a sua dívida. É a poupança das famílias que está em jogo. Claro que Lula sabe disso.

Em segundo lugar, essa dívida existe porque governos irresponsáveis do passado, entre os quais os governos do PT merecem o ponto mais alto do pódio, torraram dinheiro como se não houvesse amanhã. Reformas que poderiam mitigar a situação, como a da Previdência e a Administrativa, sempre foram impiedosamente bombardeadas pelo PT. Os “banqueiros” financiaram a festa petista. Claro que Lula sabe disso.

Lula afirma que “um governo sério não precisa de teto de gastos”. De fato, não precisa mesmo. Por isso, um teto para os gastos é essencial para que um novo governo do PT não signifique uma catástrofe econômica para o Brasil. Lula pode afirmar que, em seu governo, o país produzia superávits primários. Verdade. Só não vai lembrar que a semente do desastre do governo Dilma, com um descontrole total das finanças públicas e a maior recessão da história do Brasil, foi plantada em seu governo. Dilma apenas colheu o que ela e Lula plantaram no segundo governo Lula. Claro que Lula sabe disso.

Lula sabe que os banqueiros são seus parceiros, que a dívida pública não surgiu do nada e é o lastro da poupança das famílias, que Dilma não foi um desastre nascido de geração espontânea. Lula sabe de tudo isso, mas discursa como se não soubesse, com o objetivo de animar o seu próprio público. O resultado é esse discurso que transpira hipocrisia, mas que é saudado pelas esquerdas como uma esperança de redenção.

Como tudo o que Lula diz, seu governo será melhor se ele fizer o justo oposto. Claro que Lula sabe disso.

Mais uma proposta para o teto de gastos

Felipe Salto, atual diretor-geral da Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado Federal, entra no debate sobre como reancorar as expectativas sobre a trajetória da dívida pública. A mudança casuística da sua regra de cálculo no ano passado e o discurso do PT contra o teto demonstram que a regra atual está morta, faltando somente o enterro.

Ao contrário de outra proposta que já tive oportunidade de comentar aqui, que propunha como parâmetro um etéreo “PIB corrigido pelo ciclo econômico”, além de prever exceções – por exemplo, investimentos- a proposta de Salto tem o mérito de ser simples, direta e de fácil entendimento por todos: estabelecida uma determinada meta de superávit primário necessária para atingir uma certa relação dívida/PIB, calcula-se o teto de gastos com base em uma determinada previsão de receitas. Ele dá um exemplo numérico, reproduzido abaixo.

A ideia, como eu disse, é boa por ser simples e de fácil entendimento. No entanto, como sempre, o diabo mora nos detalhes. Dois detalhes, para ser mais exato.

O primeiro é saber qual a condição limitante, ou seja, aquela que não será mudada aconteça o que acontecer. Digamos que haja uma frustração de receitas. O que seria mudado, o tamanho dos gastos ou a meta de superávit primário? Tomando o exemplo usado por Salto: se as receitas somarem R$ 1.800 bilhões ao invés dos R$ 2.000 bilhões previstos no início do ano, o ajuste se daria pela diminuição dos gastos para R$ 1.750 bilhões ou do superávit para menos R$ 150 bilhões? A resposta técnica seria manter o superávit e cortar gastos. A resposta política já sabemos qual é.

O segundo detalhe, que na verdade é O problema central de todo esse imbróglio, é que a proposta de Salto, para funcionar, precisa ser ainda mais draconiana que o atual teto de gastos. A previsão de déficit primário para este ano é de 0,7% do PIB. Para apontar para um superávit primário em um horizonte de tempo explícito e crível, seria preciso fazer um ajuste fiscal ainda maior do que o atual. A solução política, obviamente, será apontar para um ajuste beeeeeem suave, a lá Macri na Argentina.

A grande sacada do atual finado teto de gastos é tirar da mão dos políticos e da sociedade a decisão sobre os parâmetros que comandam a trajetória da dívida. A regra, se seguida, garante matematicamente, se o país tiver crescimento positivo, que produziremos superávits primários e estabilizaremos a dívida em algum momento no futuro. Para um país como o Brasil, que cresce pouco (1% ao ano), este ajuste é bem suave, mas aceito pelos credores, porque a regra garante a convergência. Mas mesmo esse ajuste suave não se mostrou suportável para os políticos e para a sociedade, que querem retomar para si o comando dos parâmetros da dívida.

A proposta de Salto permite a retomada desse comando, ao deixar para a decisão discricionária do Congresso como vamos controlar a dívida, se por aumento de impostos ou diminuição de despesas, e em que velocidade vamos colocar a casa em ordem. Alguém dirá que esta é a coisa certa a fazer. Afinal, é a sociedade, através de seus representantes, que deve decidir sobre como e quando pagaremos a nossa dívida. Justo. Só falta combinar com os russos.

De fato, o orçamento público não é como o orçamento privado

O economista Antônio Correa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia, nos lembra que a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico não se aplica, porque o Estado tem “funções e prerrogativas próprias”. De onde se conclui que o Estado pode gastar mais do que arrecada, se for com o objetivo de cumprir suas “funções e prerrogativas próprias”.

Nem economista sou, quem sou eu para discutir com o representante máximo dos economistas brasileiros. Ele deve ter razão, afinal é professor-doutor da matéria. Mas, como todo aluno aplicado, fico cá com minhas dúvidas.

Economistas como Lacerda defendem que o Estado pode sim se endividar de maneira ilimitada, porque seus gastos teriam um “efeito multiplicador” na economia. Ou seja, gerariam impostos suficientes para pagar a dívida lá na frente. Seria preciso apontar para um “equilíbrio intertemporal”, em que os investimentos de hoje serão os impostos de amanhã, garantindo, assim, o equilíbrio da dívida pública e, de quebra, fazendo “a roda da economia girar”.

Claro que não é assim tão simples, e tenho certeza que Lacerda concordaria comigo. É preciso que esses gastos sejam “de qualidade”. Não adianta, por exemplo, contratar pessoas para cavar buracos e depois enterra-los. Isso não vai gerar o “efeito multiplicador” desejado, vai só queimar mais dinheiro, gerando mais dívida pública.

E é nesse “gasto de qualidade” que mora o problema. Lacerda não vai me desculpar, mas vou usar um exemplo de economia doméstica. Imagine uma família que gasta mais do que ganha e já altamente endividada. O marido, então, ao invés de cortar gastos, decide abrir uma barraquinha de pastel na feira. O raciocínio é simples: com esse investimento, vamos ter lucro suficiente para pagar o investimento e ainda cobrir o buraco dos gastos correntes da família. É óbvio que, para que o plano dê certo, é preciso que este investimento seja “de qualidade”. Ou seja, que realmente gere lucro.

Ocorre que, quase que por definição, os gastos do governo são de péssima qualidade. Os gastos de “boa qualidade”, aqueles que geram retornos suficientes, normalmente já são realizados pela iniciativa privada. Sobra só a carne de pescoço, disputada por grupos de interesses que têm a eficiência do investimento como último critério de escolha, quando têm.

Lacerda e seus companheiros, além de defenderem o “efeito multiplicador” dos gastos públicos, costumam brandir o argumento das “externalidades positivas”. Ou seja, um investimento pode não ter retorno em si, mas ajudará outros agentes econômicos que não pagam pelo investimento. O exemplo clássico é o da estrada que não tem fluxo suficiente para pagar o investimento em sua manutenção, mas que supostamente beneficia indiretamente as populações das cidades que são por ela ligadas. Tenho uma certa dificuldade em entender como uma estrada por onde não passa ninguém beneficia alguém, mas vá lá, digamos que seja assim. Mesmo nesse caso, em que a externalidade supostamente alavanca a arrecadação de impostos, é preciso que o investimento seja feito com critério, para maximizar as externalidades positivas. Como esse é um exercício dificílimo de ser feito, não surpreende que também acabe refém de decisões políticas.

De fato, a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico é inadequado, mas não porque o Estado tenha “prerrogativas e funções que lhe sejam próprias”. O orçamento público é diferente porque o Estado tem a prerrogativa de se endividar sem limites, pois tem o monopólio da emissão da moeda na qual são, por lei, feitos os gastos. Assim, as famílias, que não podem emitir seu próprio dinheiro, precisam ajustar o seu orçamento. Já o Estado, que pode captar dinheiro sem limite, não precisa se ajustar. Esqueça toda essa história de “efeito multiplicador” e “externalidade positiva”, não é disso que se trata, mas de abusar do poder de monopólio sobre a moeda.

Isso funciona se os financiadores da dívida não têm para onde escapar e há excesso de poupança privada. Caso contrário, a única forma de se financiar é rodar a maquininha, desvalorizando a própria moeda. Se uma família faz isso, vai presa. Se o Estado faz isso, o máximo que acontece é o governo de plantão não ser reeleito ou ser impichado, em função da inflação e do baixo crescimento gerados.

De fato, o Estado não pode ser comparado com uma família: nós não temos como produzir inflação para pagar nossas contas.

Equilíbrio fiscal verdadeiro

“Equilíbrio fiscal verdadeiro”.

Desde o “é proibido gastar” do discurso de inauguração do mandato de Tancredo Neves (lido pelo vice, José Sarney, dado que Tancredo encontrava-se hospitalizado), todos os governos da Nova República fazem juras de amor ao “equilíbrio fiscal”.

Destaquei abaixo três trechos de jornais antigos para ilustrar o ponto. O primeiro é do início do governo Sarney, em 1985, quando o então ministro Francisco Dornelles anuncia um pacote de “austeridade”.

O segundo, de um ano depois, mostra o então ministro Dilson Funaro prometendo “equilíbrio dos gastos públicos”.

Já o terceiro indica a expectativa com o Plano Bresser, que seria anunciado alguns dias depois, em junho de 1987: esperava-se “comprimir drasticamente as despesas públicas”.

Poderia continuar empilhando notícias, ano após ano, governo após governo, de promessas de “equilíbrio fiscal”. Talk is cheap, como dizem os americanos.

Agora, Ciro promete um tal de “equilíbrio fiscal verdadeiro”, o que pressupõe que o que estamos vivendo hoje é um falso equilíbrio fiscal. E o que nos está condenando a este “falso equilíbrio fiscal”? Claro, “essa ficção fraudulenta chamada teto de gastos”.

Equilíbrio fiscal é algo relativamente simples: o governo, em todas as suas esferas, precisa gastar menos do que arrecada. Há somente duas pontas: gastos e arrecadação. Se o teto de gastos é uma forma fraudulenta de atingir o equilíbrio fiscal, resta a ponta da arrecadação. Aqui é que entra o pensamento mágico, aquele que anima todas as propostas desse tipo: aumentar a arrecadação passa por “taxar os mais ricos” e “estimular o crescimento econômico”.

Como, cedo ou tarde, os governos descobrem que “taxar os mais ricos” é uma quimera e o “crescimento econômico” não costuma responder a grandes planos mirabolantes desenhados nos gabinetes de Brasília, o equilíbrio fiscal acaba sendo alcançado pelo truque mais manjado da história econômica brasileira: inflação.

O teto de gastos é a única forma honesta de se alcançar o “verdadeiro equilíbrio fiscal”. Fraudulento é Ciro Gomes, não o teto.

Método de emagrecimento ajustado ao ciclo psíquico

A jornalista Adriana Fernandes dá a sua contribuição para o debate eleitoral do ponto de vista do modelo de controle fiscal a ser adotado pelo país. Pena que seja a contribuição de alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe bem onde.

A tese central da jornalista é de que a regra do teto de gastos, da forma como está hoje, é inexequível, e dá margem a “pedaladas fiscais”, como foi o caso dos superávits primários. Portanto, seria necessária uma regra mais “flexível”, mais “moderna”, que fosse passível de ser cumprida e, ao mesmo tempo, contasse com a confiança dos credores da dívida pública. O que dizer?

Bem, em primeiro lugar, a regra dos superávits primários (que nunca foi escrita!) durou nada menos do que 15 anos! Portanto, não era tão inexequível assim. Na verdade, foi possível cumprir a regra enquanto as receitas do governo aumentavam 5% reais ao ano, cavalgando no crescimento global puxado pela China. Quando o mundo desacelerou, o governo Dilma até que tentou segurar o crescimento das despesas, mas sabe como é… Desse, modo, a regra dos superávits primários tornou-se “inexequível”, dando origem às pedaladas.

Portanto, essa história de uma regra ser ”exequível” ou “inexequível” é apenas uma outra forma de dizer que o Estado brasileiro tem pouquíssima flexibilidade para reduzir a velocidade de aumento das despesas e depende do cenário externo para se financiar. Nesse sentido, entende-se o adjetivo “pró cíclico” que a jornalista usa para a regra do superávit primário: quando as coisas vão bem, o governo tem espaço para aumentar as despesas, quando vão mal, precisa diminuir despesas ou aumentar impostos, o que piora o ciclo recessivo.

A regra do teto de gastos, por outro lado, é anticíclica: quando as coisas vão bem, a arrecadação aumenta, mas não pode ser usada para ampliar gastos. Trata-se de uma poupança forçada. Por outro lado, quando as coisas vão mal, as despesas podem continuar crescendo junto com a inflação e não é necessário aumentar impostos. Essa é a virtude principal da regra do teto, superior, nesse sentido, à regra dos superávits.

Mas mesmo tendo esse componente anticíclico reclamado pela jornalista, ainda assim a regra do teto não está boa, é “inexequível”. A proposta (e aqui entra o componente do galo cantando não se sabe onde) é uma tal “meta de resultado estrutural ajustada ao ciclo econômico”. Por trás do economês temos o bom e velho superávit primário (“resultado”), sem contar com receitas ou despesas não recorrentes, como privatizações (“estrutural”), e retirando o caráter pró cíclico (“ajustada ao ciclo econômico”). A proposta parece realmente excelente, flexível e moderna. Inclusive, tem o selo de qualidade “a exemplo do modelo europeu”. Há, no entanto, dois problemas com essa proposta, que esbarram nessa coisa chata chamada realidade.

A primeira é mais técnica: como definir o que é despesa recorrente? E, principalmente, como definir o “ciclo econômico”? A discussão dos precatórios demonstra quão difícil é definir a natureza das despesas. Auxílio emergencial por 3 anos, é recorrente ou passou a ser normal? Mas é na definição de ”ciclo econômico” que a tese encontra sua maior armadilha: qual o crescimento “normal” do país? Crescer a 1%, como tem sido a regra desde 2017, é normal ou estamos no ponto baixo do ciclo econômico? Essa é A questão relevante, pois, a depender da resposta, a regra poderá permitir a produção de déficits primários. Afinal, é preciso “estimular” a economia quando estamos na baixa do ciclo econômico.

Enfim, a coisa parece que funciona na Europa. Sim, porque lá é a Alemanha que dá as cartas. E, para os alemães, não há regras “inexequíveis”. Se há uma regra, se cumpre. Sem jeitinhos. No Brasil, e esse é o segundo problema, o tal “resultado estrutural ajustado ao ciclo econômico” somente daria mais graus de liberdade para os jeitinhos, deixando ainda mais distante a perspectiva de redução da dívida pública. O resultado serão taxas de juros mais altas, pois se os credores já desconfiam do cumprimento de uma regra rígida, imagine em relação a uma regra mais “flexível”, que praticamente institucionaliza o jeitinho.

No fundo, toda essa discussão só existe porque a sociedade brasileira quer que o Estado gaste mais. Qualquer limite sempre será “inexequível”. A única regra “exequível” será aquela que permitirá “flexibilidade” suficiente para tornar o processo indolor. É um pouco como acreditar em emagrecimento sem sacrifício. Acho que vou lançar um “método de emagrecimento com resultados estruturais ajustados ao ciclo psíquico”, em que não contam os períodos de festas e os momentos em que a pessoa está triste e precisa descontar na comida. Vai fazer um baita sucesso!

Significa?

Ontem discutíamos se a indicação de Guido Mantega para escrever um artigo com o “pensamento econômico” de Lula realmente significava aquilo aparentava significar.

Hoje, reportagem do Estadão colhe uma série de depoimentos de próceres do partido, envolvendo vários tópicos caros aos liberais: reforma trabalhista, privatizações, teto de gastos, autonomia do BC. A começar pelo próprio Lula, que já havia dito que acabaria com o teto de gastos, e agora aponta a contra-reforma trabalhista na Espanha como um modelo a ser seguido.

A essa altura do campeonato, se alguém ainda tinha alguma dúvida do que significava a escalação de Guido Mantega como porta-voz econômico de Lula, respondo com Ronnie Von: significa.

O país onde as regras se desmancham no ar

Estamos muito pessimistas. Esta é a conclusão de um economista da IIF, uma instituição internacional que reúne bancos de todos os países, e da qual a Febraban faz parte.

Segundo o economista, o “novo teto” proposto pelo governo ainda segura bem as despesas e, em 2022, ainda estaremos gastando menos que em 2019. Parece a história do sujeito que caiu do 10o andar de um prédio e, ao passar pelo 5o andar, um morador pergunta se está tudo bem, ao que o homem responde: “tem um vento me incomodando, mas até aqui, tudo bem”. Acho que, da mesma forma, o economista não entendeu a natureza do problema criado pela mudança da regra do teto.

A regra do teto de gastos foi inscrita na Constituição brasileira. Essa foi uma novidade potente, que convenceu os agentes econômicos de que aquilo era para valer. A regra da geração de superávits primários, que era a regra anterior, foi cumprida durante 15 anos mesmo não estando escrita em lugar algum. Mas foi facilmente abandonada quando as receitas deixaram de crescer na mesma velocidade que as despesas. Agora não! Com a regra do teto, tínhamos algo oficial, que obrigava os dirigentes políticos a andarem na linha.

O mercado caiu na ilusão de que as leis modificam o comportamento dos agentes políticos. Modificam sim, mas até certo ponto. Em determinado momento, no limite, muda-se a lei. Temos um exemplo dramático na Argentina, quando se estabeleceu a paridade de 1 para 1 entre o Austral e o Dólar. Aquela paridade sobreviveria se houvesse disciplina fiscal. Entre a indisciplina e a paridade, escolheu-se a indisciplina. O resto é história.

O teto de gastos não sobreviveu à indisciplina fiscal. E não adianta dizer, como o faz o economista do IIF, que, por enquanto, tudo bem. Sabemos (o mercado sabe) que, entre a indisciplina e uma moeda estável, a escolha sempre será pela indisciplina. Mesmo que a regra esteja inscrita na Constituição. A coisa poderia funcionar se, daqui por diante, todos os brasileiros se dessem as mãos, e prometessem não pegar nem mais uma latinha de cerveja na geladeira. “Ninguém larga a mão de ninguém” não costuma ser uma regra crível.

O grande mal dessa mudança atabalhoada na regra do teto foi demonstrar que lei, no Brasil, não passa de um arranjo provisório. O que vale é a “boa intenção” do governante, do Congresso e do STF de plantão. Como as necessidades sociais em um país pobre como o Brasil serão sempre muito maiores do que a capacidade de arrecadação, a dívida pública sempre será pressionada. A única forma de conter a dívida, nesse contexto, é a inflação, como vimos neste ano: a dívida só está abaixo de 90% do PIB porque a inflação fez crescer o PIB nominal. Quem perdeu foram os detentores da dívida, como bem sabe qualquer investidor em renda fixa.

É por isso que, para se protegerem de “truques” desse tipo, os detentores da dívida estão pedindo taxas de juros muito mais altas. O problema não é a dívida hoje ou os gastos do ano que vem, como sugere o economista do IIF. O problema é que ficou claro que as regras se desmancham no ar, ao sabor das necessidades do momento. O próximo presidente terá muita dificuldade em reconquistar a confiança dos credores da dívida pública.

Preparem seus bolsos

O teto de gastos, para todos os seus efeitos, morreu. Podemos aqui ficar discutindo se vale a pena manter a regra em estado vegetativo, aguardando um milagre médico no próximo mandato, ou se seria melhor desligar os aparelhos de vez. Mas o fato é que, para o que servia (ancorar as expectativas do mercado em relação à dívida pública) o teto não serve mais.

José Serra reconhece este fato e propõe uma nova âncora: o controle direto do endividamento público. Se o problema é a dívida, porque não controlá-la de maneira direta?

Parece fazer sentido. No entanto, antes de avaliar a proposta, um pouco de história.

Depois dos primeiros passos e tropeços do Plano Real, estabeleceu-se, em 1999, o tripé macroeconômico: metas de inflação, câmbio flutuante e superávits primários. O BC cuidaria da inflação através das taxas de juros, o câmbio flutuaria para não termos mais crises de balanço de pagamentos e os superávits primários permitiriam o controle da dívida pública ao longo do tempo. A parte fiscal do esquema funcionou muito bem de 1999 a 2011. Neste período, com o boom das commodities, conseguimos gerar aumentos de receitas (impostos) na base de 5% ao ano em termos reais (acima da inflação), o que pagava aumentos de despesas de mesma magnitude. Geramos superávits primários de 3% ao ano nesse período, ganhamos o grau de investimento, todo mundo estava feliz, como diria a Xuxa.

No entanto, a partir de 2012, com o fim do boom das commodities, o crescimento das receitas com impostos começou a perder ritmo. O governo Dilma até que fez algum esforço de redução de crescimento das despesas mas, sabe como é, difícil cortar despesas no Brasil. Ainda mais para uma mandatária que já tinha afirmado que “gasto é vida”. Resultado: os superávits primários começaram a diminuir, diminuir… até que, em 2014, o governo Dilma varreu para debaixo do tapete um déficit fiscal usando as famosas “pedaladas fiscais”. A verdade nua e crua veio à tona em 2015, quando Joaquim Levy mandou para o Congresso o primeiro orçamento com déficit primário desde o longínquo 1999. Foi um Deus nos acuda semelhante ao que aconteceu no mês passado, quando Paulo Guedes reconheceu que não tinha como não furar o teto. Na época, como agora, o mercado ficou pendurado na broxa, sem uma regra para calcular a trajetória futura da dívida pública.

Como sabemos, a solução para o mercado engolir os déficits primários foi o teto de gastos. Com essa regra (inscrita na Constituição!), a volta da produção de superávits primários era uma questão de tempo: com as despesas limitadas à inflação e as receitas crescendo com o PIB, ficava fácil entender como a dívida seria paga ao longo do tempo. O resultado foi a queda estrutural das taxas de juros.

Os mais cínicos dirão que essa regra do teto estava marcada para morrer desde o seu nascimento. Afinal, dependia de fazer o Estado brasileiro caber dentro de um orçamento, o que é quase uma contradição em termos. Os cínicos tinham razão. O teto funcionou enquanto as despesas não atingiram o limite. Foi só ameaçar emendas parlamentares e um programa populista eleitoreiro, que até o ministro mais ortodoxo que já passou pela Esplanada dos Ministérios rendeu-se à “lógica política”.

Voltemos à proposta de Serra. Estabelecer um limite para o endividamento público tem um problema sério, que é a própria necessidade de rolar a dívida. Como não produzimos superávits primários, dívidas novas são feitas para pagar dívidas antigas. Este crescimento da dívida ficaria fora do controle?

Digamos que este problema fosse superado. Qualquer regra de “teto de dívida” deveria supor a produção de superávits primários. A produção de déficits primários ad aeternum leva necessariamente, matematicamente, a uma dívida com trajetória explosiva. Portanto, a proposta de Serra nos levaria de volta, em algum momento, para o problema da geração de superávits primários. O mesmo problema enfrentado por Dilma e “resolvido” pelo teto de gastos. A vantagem do “teto de dívida” sobre o “teto de gastos” é que os superávits primários podem ser alcançados via aumento da carga tributária e não cortando despesas.

Se os gastos não são controlados, a única forma de gerar superávits primários é através da cobrança de mais impostos. O teto de gastos havia sinalizado que o ajuste fiscal brasileiro se daria pelo controle das despesas. Vimos que nem o mais ortodoxo dos governantes consegue isso. Resta o aumento da carga tributária.

Preparem seus bolsos.

Não há atalhos para acabar com a miséria

O ex-presidente Michel Temer escreveu um artigo na Folha supostamente defendendo a sua cria, a regra do teto de gastos. Segundo Temer, a miséria pós-pandemia seria suficiente para a decretação de um estado de calamidade, o que permitiria continuar pagando um auxílio emergencial por fora do teto.

Essa ideia tem dois problemas.

O primeiro, óbvio, é que se trata de um gasto por fora do teto. Ou seja, mantém-se o teto formalmente mas, na prática, a regra deixa de ter efeito para esses gastos. Defender o teto e, ao mesmo tempo, burla-lo, parece ter se tornado uma especialidade dos nossos políticos. E, apesar de ter sido o pai do teto, Temer continua sendo um político.

Assumindo-se que teremos um novo decreto de calamidade pública, vamos para o segundo problema: qual o critério? Em 2020, com toda a economia fechada, não houve dúvida, não foi necessário um critério objetivo, estava na cara de todo mundo. Em 2021, por outro lado, foi preciso um exercício de contorcionismo para estender o auxílio, e o mercado estressou por causa disso. O forte repique da pandemia em março e a aprovação dos “gatilhos” do teto de gastos fizeram o serviço para que o mercado “aceitasse” a extensão do auxílio pela segunda vez. Uma terceira extensão do auxílio, além de merecer música no Fantástico, precisará de um critério objetivo para a sua justificação. Afinal, miseráveis sempre existiram no país. Por que um decreto de calamidade pública só agora? Será porque acabou o espaço no teto, e esses recursos para os pobres competem com os recursos das emendas parlamentares e fundo partidário?

Digamos que a ideia seja séria. Se não quisermos que, todo ano, tenhamos um decreto de calamidade para tirar o auxílio aos pobres do teto, será necessário estabelecer um critério. Desemprego? Renda média da população? Número de reportagens sobre pessoas comendo ossos? Qual seria o critério para estabelecer que, nesse ano, não temos miséria suficiente para decretar calamidade? É óbvio que se torna uma política permanente.

Para deixar a hipocrisia de lado, o governo deveria tirar o pagamento desses auxílios e do bolsa família do teto de gastos. No entanto, ao estar fora do teto, deixa de haver limites. E o que não falta no Brasil são necessitados. O problema, claro, é que mais gastos por fora do teto, na prática, fazem a regra perder efeito. E o mercado e o BC reagem, aumentando os juros, o que desacelera a economia, prejudicando principalmente os mais pobres. Fora a inflação.

Enfim, não há atalhos para acabar com a miséria. Os que parecem existir, não passam de mecanismos que, no final da linha, a perpetuam. O único caminho é abrir espaço no orçamento para ajudar os mais pobres. Fazer de conta que o orçamento é ilimitado só leva a mais miséria ao longo do tempo.