O estilo de Lula

Em regimes fechados, os passos do líder são seguidos de perto em busca de sinais sobre o seu sucessor. Era assim na ditadura militar brasileira, era assim nas ditaduras comunistas do passado e é assim nas ditaduras atuais, como Cuba e Coreia do Norte (vide acima).

A escolha do ministro da Fazenda do governo Lula me faz lembrar essa dinâmica. Em 2014 e 2018, Aécio e Bolsonaro indicaram seus ministros (Armínio Fraga e Paulo Guedes, respectivamente) já durante a campanha, em uma sinalização de que tipo de política econômica se poderia esperar durante os seus mandatos.

Lula, com a sua política “la garantia soy yo”, preferiu não indicar ninguém até o momento. O resultado é uma ”leitura de sinais”, a la Kim Jong Un, por parte dos mercados. Ainda durante a campanha, Mantega escreveu um artigo em nome de Lula, fazendo crescer as especulações em torno de seu nome. Gabriel Galípolo foi outro nome que circulou em função de sua proximidade com o presidente eleito. Haddad foi enviado por Lula a um almoço da Febraban, aumentando suas chances de ser “o escolhido”. E assim vai.

Alguém pode argumentar que esse é o estilo de Lula, e que o ministro da Fazenda será indicado a seu tempo. Ok. Mas essa sensação de estar vivendo em um regime fechado não é nada agradável.

Sussurros – A Vida Privada na Rússia de Stálin

O livro Sussuros – A vida privada na Rússia de Stálin (Editora Record, 824 páginas) é um alentado apanhado de como pessoas comuns viviam na União Soviética dominada por Josep Stálin. Tendo como base centenas de documentos, entre cartas e diários, além de entrevistas com os sobreviventes da época, o autor, Orlando Figes, professor de história da Universidade de Londres, traça um quadro inédito de uma história já conhecida. A Revolução Bolchevique, o Terror Stalinista, o Gulag e a participação da URSS na 2ª Guerra são descritos não do ponto de vista do grande enquadramento que estes eventos tiveram na história das nações, mas como cidadãos comuns os viam.

Muitas vezes tendemos a simplificar a história dentro de esquemas mentais que nos ajudam a entender problemas complexos. O stalinismo é um desses casos: um ditador sanguinário que dominava, através do terror, todo um povo. Este é o resumo. Mas há nuances importantes, que, se ignoradas, podem abrir caminho para a repetição da experiência, com outros nomes e em outro contexto. Pois se é óbvio que um ditador totalitário seria rechaçado por qualquer pessoa de bom senso, também é verdade que Stalin dominou a URSS com o beneplácito da maior parte do povo. Como? Por quê? O foco na vida privada das pessoas comuns traz a vantagem de observar como o homem comum absorvia e, até certo ponto, aderia a essa realidade. É este, na minha visão, o ponto mais interessante do livro.

Figes faz um levantamento cronológico dos anos da Revolução Soviética, desde 1917 até os dias atuais. Mas a sua narrativa não é linear: os aspectos importantes se repetem ao longo da obra em diferentes contextos. Neste resumo, procurarei destacar os temas mais relacionados com a dominação ideológica da revolução e, posteriormente, do partido, sobre os cidadãos soviéticos. Para ilustrar, copio trechos do livro que ilustram as ideias. Todos os trechos copiados estarão em itálico.

O Novo Homem

Comecemos pelo grande conceito por trás da revolução bolchevique: a construção do Novo Homem, aquele purificado dos vícios trazidos pelo capitalismo. Como escreveu Máximo Gorki na primavera de 1917, “a nova estrutura da vida política exige de nós uma nova estrutura da alma”

Vê-se que a ambição não era pequena. Tratava-se de mudar a alma humana. Para isso, foram muitos os instrumentos utilizados. O compartilhamento de apartamentos comunais, por exemplo, para além do seu objetivo econômico, serviria também para moldar o “novo homem”: “forçando as pessoas a compartilhar apartamentos comunais, os bolcheviques acreditavam que poderiam transformá-las em comunistas em seus pensamentos e comportamentos básicos”.

O próprio Gulag, além de servir como punição para “traidores do regime”, era visto como um campo de “remodelação” (prekovka, em russo) de seres humanos: “está ocorrendo uma reformulação maravilhosa (prekovka) de pessoas aqui: todos os prisioneiros retornam ao continente como trabalhadores qualificados, alfabetizados e conscientes”.

Nesta tarefa de remodelar o Homem, o comunismo substituía a fé religiosa. Um depoimento, nesse sentido, chamou-me a atenção: “o que mais temíamos”, lembra-se Kopelev, “era perder a cabeça, ter dúvidas ou pensamentos heréticos e perder nossa fé sem limites.”

Claro que uma remodelagem do ser humano deveria começar nas escolas, com as crianças e jovens. Para isso, havia duas organizações para os mais jovens. As crianças entravam nos Pioneiros, enquanto os adolescentes e jovens ingressavam na Komsomol. O juramento dos pioneiros deixava bem claro o objetivo: “Eu, um Jovem Pioneiro da União Soviética, diante de meus camaradas, juro solenemente ser verdadeiro aos princípios de Lenin, defender com firmeza a causa de nosso Partido Comunista e a causa do Comunismo”

No Komsomol, organização para adolescentes e jovens, a doutrinação era mais pesada, com os jovens tendo que, eventualmente, renunciar a seus pais “traidores”. O seguinte trecho ilustra o ponto: “Ela ingressou na Komsomol, apesar de ter sido avisada de que seria forçada a renunciar aos pais antes de ser aceita, passando a participar de suas atividades, que consistiam basicamente em fazer delações estridentes contra “inimigos do povo” e em cantar músicas de gratidão a Stalin e ao partido em grandes reuniões e marchas”.

Claro que o “novo homem”, sendo puro, deveria ser separado dos impuros. Esta divisão do mundo está presente em muitas passagens do livro.

“Nós, comunistas, somos especiais”, disse Stalin em 1924. “Somos feitos de matéria-prima melhor…”

Nesta linha, um depoimento resume o ponto: “Vivíamos por acreditarmos na felicidade futura de nossa sociedade, não pela satisfação de nossas próprias necessidades. Havia uma pureza moral em nosso estilo de vida”

Essa busca pelo “homem perfeito” forçosamente desembocaria na purificação forçada da sociedade. Dois eram os inimigos a serem eliminados: do ponto de vista econômico, os “kulaks” (fazendeiros) e, do ponto de vista político, os “inimigos do povo”.

Uma passagem chamou-me a atenção por me lembrar de um episódio de Black Mirror, em que soldados usavam capacetes que os faziam enxergar pessoas comuns como monstros a serem eliminados. Essas pessoas eram chamadas de “baratas”, e os soldados as eliminavam com prazer. O trecho é o seguinte: “Fomos treinados para ver os kulaks não como seres humanos, mas sim como vermes, piolhos, que precisavam ser destruídos”.

Em “A Lista de Schindler”, um oficial nazista conversa com uma prisioneira por quem sente atração sexual. Em determinado momento, diz algo assim: “eu sei que você não é uma pessoa, você é uma coisa”. O primeiro passo de um sistema totalitário é desumanizar o inimigo. Nós somos o povo puro, a raça pura, o resto simplesmente não é humano.

É óbvio que um resto de humanidade restava e se revoltava por dentro. No entanto, a ideia de estar fazendo a história era mais forte, como podemos observar no depoimento abaixo, de um funcionário do partido responsável por confiscar grãos e propriedades dos kulaks:

“Era excruciante ver e ouvir tudo aquilo. E era ainda pior estar participando… E eu me persuadia, explicava a mim mesmo. Eu não deveria ceder à piedade debilitante. Estávamos realizando uma necessidade histórica. Estávamos desempenhando nosso dever revolucionário. Estávamos obtendo grãos para a pátria socialista, para o Plano Quinquenal”.

A perseguição aos “inimigos do povo”, por outro lado, teve uma característica diferente: enquanto os “kulaks” eram uma espécie de “inimigo externo”, os inimigos do povo eram o “inimigo interno”. Literalmente qualquer cidadão poderia ser considerado um “inimigo do povo”. Isso levou a números realmente espantosos, no que se convencionou de chamar de Terror, que merece um capítulo à parte.

O Terror

116.885 membros do Partido foram executados ou presos entre 1937 e 1938.

O sistema Gulag se expandiu num vasto império industrial, com 67 complexos de campos, 10 mil campos individuais e 1.700 colônias, empregando uma força de trabalho escravo de 2,4 milhões de pessoas em 1949 (comparada a 1,7 milhão antes da guerra)

A partir de abril de 1935, quando foi aprovada uma lei reduzindo a idade de responsabilidade criminal para 12 anos, o número de crianças no sistema do Gulag começou a aumentar constantemente, com mais de 100 mil crianças entre 12 e 16 anos condenadas pelas cortes e pelos tribunais por ofensas criminosas nos cinco anos seguintes.

Estes três trechos do livro resumem a grandiosidade do Terror da União Soviética de Stálin. Mas este não é, nem de longe, o principal aspecto desse período. O aspecto mais chocante, e que inspirou o título do livro, é o estado de espírito da sociedade soviética. Qualquer um poderia ser um “inimigo do povo”, e a forma de provar a fidelidade ao partido era denunciar um “inimigo do povo”, mesmo que este fosse um parente ou amigo próximo. Qualquer palavra mal colocada poderia ser interpretada como uma falta de fidelidade. Assim, as pessoas evitavam conversar em voz alta e falavam aos sussurros.

São vários os depoimentos nesse sentido ao longo do livro. Mas uma das mais chocantes foi a história de Pavlik, um garoto dos Pioneiros que denunciou o próprio pai. Criou-se uma espécie de culto em torno do menino, um exemplo a ser seguido. Figes descreve o episódio da seguinte forma:

“O culto estava em todos os lugares. Histórias, filmes, poemas, peças, biografias e canções retratavam Pavlik como o Pioneiro perfeito, um leal vigilante do partido dentro de casa. Sua coragem abnegada, a qual demonstrara ao sacrificar o próprio pai, foi promovida como um exemplo para todas as crianças nas escolas soviéticas. O culto teve um impacto enorme nas normas e sensibilidades de toda uma geração de crianças, que aprendeu com Pavlik que lealdade ao Estado era uma virtude maior do que amor familiar e outros laços pessoais. Por meio do culto, foi semeada em milhões de mentes a ideia de que acusar os próprios amigos ou parentes não era vergonhosa, mas sim uma questão de espírito público. Esperava-se realmente que o cidadão soviético agisse assim.”

Claro que este clima não poderia deixar de influenciar muito negativamente as relações sociais. Segundo Figes, “as pessoas deixaram completamente de confiar umas nas outras”, pois “… estavam ficando tão habituadas a ocultar o sentido do que diziam que corriam o risco de perderem totalmente a capacidade de dizer a verdade”. Portanto, “com o final da comunicação genuína, a desconfiança espalhou-se pela sociedade”.

Isso teve implicações, obviamente, também no campo familiar. Segundo Figes, “a grande ruptura gerou uma nova sociedade na qual as pessoas eram definidas pela relação que mantinham com o Estado”. Nessa linha, já em 1927, Anatoly Lunacharsky, um dos teóricos do partido, escreveu: “A dita esfera da vida privada não pode nos escapar, porque é precisamente nela que o objetivo final da Revolução deve ser alcançado.” Isso vai em linha com a construção do “novo homem soviético”.

A captura da esfera privada não seria completa se o mais recôndito do ser humano também não fosse capturado: a sua própria consciência.

O Partido e Stálin acima de tudo

O aspecto mais impressionante de 1984 não era o Estado onipresente ou a manipulação da verdade. O mais chocante foi a transformação da consciência do protagonista. Não bastava que o sistema eliminasse o inimigo. Não bastava a obediência ao Partido. Isso era necessário, mas era pouco. O sistema buscava a adesão total. Assim, o protagonista, antes de ser fuzilado, reconhece que “amava o Grande Irmão”. Estava completa a captura da consciência.

O livro Sussurros está cheio dessas passagens, em que as vítimas do Terror, por mais inocentes que fossem (e a grande maioria o era), acreditavam, de alguma forma, que o Partido tinha razão. Vou citar alguns trechos que traduzem a ideia:

“Defender-se era acrescentar mais um crime à lista: discordância com a vontade do Partido. Isso explica por que tantos bolcheviques se rendiam aos seus destinos nos expurgos, mesmo quando eram inocentes dos crimes pelos quais eram acusados”.

“Era até possível convencer essas pessoas que, para o bem da Revolução, precisavam confessar que eram espiões. E muitos foram convencidos e morreram creditando na necessidade revolucionária de fazê-lo”.

Os membros da elite bolchevique eram particularmente passivos diante da possibilidade de serem presos. A maioria fora tão doutrinada pela ideologia do Partido que a ideia de resistir era facilmente superada pela necessidade mais profunda de provar sua inocência diante do Partido”.

“… a maioria dos comunistas convictos precisava preservar a qualquer custo sua fé na União Soviética. Renunciar a ela estava além de suas capacidades”.

As prisões de Stalin estavam repletas de bolcheviques que continuavam acreditando que o Partido era a fonte de toda a justiça. Alguns confessaram ter cometido os crimes pelos quais eram acusados simplesmente para preservar essa fé”.

E, como um eco do final de 1984, Figes conta as últimas palavras de um membro do Partido antes de ser fuzilado: “Vida longa ao Partido! Vida longa a Stalin!

Não à toa, a morte de Stálin causou comoção em toda a Rússia. “Multidões enormes foram prestar suas homenagens. O centro da capital foi tomado por pessoas de luto, que haviam viajado até Moscou de todos os cantos da União Soviética; centenas delas morreram esmagadas”.

Até hoje, a era stalinista é vista com nostalgia.

Um paradoxo semelhante permeia a nostalgia popular por Stalin, que, mais de meio século após a morte do ditador, continua a ser sentida por milhões de pessoas, inclusive muitas de suas vítimas. […] em janeiro de 2004, 42% das pessoas queriam ver o retorno de um “líder como Stalin” (60% dos entrevistados com mais de 60 anos eram a favor de um “novo Stalin”)”.

Figes recolhe um depoimento que resume esse sentimento: “Sim, meu pai sofreu, como tantos outros também, mas Stalin ainda foi melhor que qualquer um dos líderes que temos hoje. Ele era um homem honesto, mesmo que as pessoas em volta dele não fossem”.

Concluindo

O livro cobre vários outros tópicos interessantíssimos, como os impactos econômicos da coletivização, o papel da guerra no moral do povo soviético, o papel da arte engajada e muitos outros. Um resumo completo mereceria outro livro.

Concluo no mesmo ponto em que iniciei este resumo: a ditadura de Stálin só foi possível porque grande parte do povo aderiu ao projeto da Revolução Bolchevique. Tudo era função de um grande projeto de um mundo novo, melhor e mais justo. Como Stálin costumava dizer, não se faz omelete sem quebrar os ovos.

Alguns dirão que Stálin desvirtuou o verdadeiro sentido da revolução bolchevique. Eu direi que Stálin foi a consequência necessária de um sistema que pretendia criar o mundo perfeito. O simples fato de que o meu mundo perfeito não é igual ao seu mundo perfeito faz com que seja impossível a criação de tal mundo. Portanto, qualquer projeto nesse sentido resultará necessariamente em um sistema totalitário. Stálin não foi um acidente de percurso.

A moralidade da inteligência artificial

Reportagem do NYT, reproduzida pelo Estadão, descreve os últimos avanços da inteligência artificial no campo das decisões morais. Um software batizado Delphi (em homenagem ao oráculo de Delfos) está sendo “treinado” com milhões de decisões de seres humanos reais, que envolvem algum julgamento moral. A questão que se coloca, claro, é se um algoritmo, por mais poderoso que seja, será um dia capaz de tomar decisões morais.

Em primeiro lugar, o que é moral? Não sou filósofo, então vou responder “leigamente”: moral é tudo aquilo que regula o comportamento dos seres humanos em relação aos seus pares e a si mesmo. Os seres humanos são seres morais, então todos as suas decisões carregam uma carga moral. Mesmo a decisão de escovar ou não os dentes de manhã tem implicações morais: se eu não escovar estarei dando bom exemplo ao meu filho? Estarei atentando contra a minha própria saúde? Esta pasta foi fabricada com elementos tóxicos que estão prejudicando populações indefesas? Enfim, as mais simples decisões carregam implicações morais, pelo simples fato de serem decisões humanas. Temos uma bússola interna que aponta o “certo” e o “errado” em tudo o que fazemos, o tempo inteiro.

Como tomamos decisões? Temos, internamente, um código moral, fruto de nossa formação e do nosso livre arbítrio. Quem tem filhos sabe que nem tudo é formação, nossos filhos estão constantemente tomando decisões “erradas” de acordo com o nosso próprio código moral. Há uma parcela de livre arbítrio, que é a formação recebida modulada pelas experiências pessoais.

Esse nosso código moral interno é muito claro em algumas coisas (são as nossas convicções mais profundas) e nebuloso em outras, quando ficamos em dúvida de como agir em determinadas situações. Procuramos (os mais sensatos pelo menos) conselho com pessoas em que confiamos. E confiar significa duas coisas: a pessoa não tem conflito de interesses no conselho que vai nos dar e tem um código moral com o qual, em geral, concordamos.

O pressuposto de um algoritmo que tome decisões morais é de que existe um campo comum de decisões morais “certas”. Como chegar nesse algoritmo?

Uma primeira ideia seria programar o computador com ideias simples e gerais, com as quais todos concordam. Regras como “não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem com você” ou “o seu direito termina onde começa o meu”, arrisco dizer que são de aceitação universal. O diabo, no entanto e como sempre, mora nos detalhes. Na discussão sobre o aborto, por exemplo, quem são “os outros”? No “direito” de não se vacinar, onde começa o “direito” do outro? Regras muito gerais não resolvem o problema.

Uma outra possibilidade é confiar em um código moral externo mais detalhado. As religiões proveem esse código. Os 10 mandamentos talvez sejam o mais antigo código moral organizado que a humanidade conheceu. Muitas pessoas vivem de acordo com esses códigos, pero no mucho. As religiões hoje são encaradas mais como supermercados morais, em que as pessoas pegam nas prateleiras as regras que mais lhes convém. Muitas vezes é a vida que determina o código, e não vice-versa. E as religiões acabam se adaptando ao que as pessoas, com seus próprios códigos morais, preferem.

Eis aí o desafio de uma inteligência artificial que toma decisões morais: qual o código moral a utilizar. “Cada cabeça, uma sentença”, diz o dito popular. Fazendo a “média” dos códigos morais de milhões de pessoas, espera-se que este algoritmo se torne a “consciência moral” da humanidade. O fato é que, provavelmente, será apenas mais uma cabeça ditando regras, como todos nós fazemos. A média terá o condão de desagradar a todos, uns mais, outros menos.

Segundo a reportagem, as máquinas “ainda” têm dificuldade em lidar com temas que extrapolam a lógica matemática. Bem, se pensarmos bem, a humanidade tem exatamente a mesma dificuldade. E olha que nosso algoritmo está sendo treinado há milhares de anos.

A questão que sempre restará, tanto para a inteligência artificial quanto para a inteligência natural, é se existem um “certo” e um “errado” universais. A resposta é sim, quando tratamos da coisa genericamente (“não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem a você”), mas tudo se complica quando descemos ao detalhe. Uma coisa é, no entanto, certa: se e quando chegarmos a um mundo onde há um consenso geral sobre o “certo” e o “errado”, pode ter certeza que este mundo será totalitário.

No filme Eu, Robô, uma inteligência artificial central chega à conclusão, muito lógica, de que, para “consertar” a humanidade, seria preciso escravizá-la e deixá-la sob o comando dos robôs, esses sim, donos de uma moral perfeita. Afinal, o mundo é bom, é o ser humano, com suas ambiguidades morais, que o estraga.

Quem é o maluco?

Notinha no Estadão nos conta que o ministro Luís Roberto Barroso, em tom jocoso, teria flertado com a ideia de uma “Casa Verde”, que servisse como lugar de internação para os malucos do país, em uma referência ao conto O Alienista, de Machado de Assis.

Não sei se a notinha é fidedigna. Mas se for, denota um ato falho do ministro do STF. Basta conhecer a trama para sacar que a imagem da “Casa Verde” se volta contra o próprio ministro. Aliás, como toda obra-prima atemporal, O Alienista parece descrever a realidade atual.

A obra nos apresenta a história do Dr. Simão Bacamarte, médico bem-sucedido que volta para a sua cidade natal. Lá, põe em prática seus conhecimentos de psicanálise, e começa a internar todas as pessoas que não se enquadram em seu padrão de perfeição. No início tem o apoio dos cidadãos, mas a coisa começa a sair do controle, com cada vez mais pessoas internadas na “Casa Verde”.

Em determinado momento, o barbeiro Porfírio lidera a “Revolta dos Canjicas”, para acabar com aquela situação. As forças armadas se juntam à revolta, e Porfírio toma o poder da cidade, fechando a Câmara dos Vereadores. Mas, surpreendentemente, Porfírio faz um acordo com Bacamarte, que continua internando as pessoas normalmente.

É então que João Pina, outro barbeiro, se revolta com aquela situação, e lidera outra revolução, que derruba Porfirio do poder. Mas João Pina também se alia a Bacamarte e as internações continuam.

Interrompo aqui a sinopse para traçar o evidente paralelo político entre O Alienista e a situação dos dias que correm. Os barbeiros lideram o povo contra os desmandos do médico. Mas, quando tomam o poder, compõem com o doutor, pois este lhes é útil para o exercício do poder. A luta contra o status quo é apenas uma desculpa para o exercício do poder. E o povo vai atrás, iludido. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Mas, avancemos. Bacamarte continua em sua missão, até que uma parte relevante da população se acha internada. Neste ponto, o médico começa a desconfiar de que sua teoria está errada. Na verdade, se comportamentos fora do padrão constituem a norma (dado que boa parte da população encontrava-se internada), então o “padrão” deveria estar invertido. Desvios de comportamento eram o normal e louco era quem não apresentasse nenhum desvio. A partir dessa conclusão, Bacamarte libera todos os internados da cidade e interna-se a si próprio, pois era, em sua avaliação, o único cidadão que não apresentava qualquer desvio de caráter.

Barroso, ao evocar a Casa Verde, coloca-se como o Bacamarte que julga os desvios morais das pessoas com base na “ciência”. A ciência é uma grande conquista da humanidade, sem dúvida, mas quando é usada para fins políticos, desvirtua-se. Como cansamos de ver durante essa pandemia, a ciência já deu sua “palavra final” muitas vezes, para depois ter que se desdizer, como Bacamarte o fez. Na verdade, a ciência nunca dá uma “palavra final”, sempre está aberta a ser desafiada. O uso político das conclusões científicas é que pretende dar essa aura de infalibilidade para a ciência, muito útil para os fins políticos.

Na verdade, todos somos um pouco Simão Bacamarte. Julgamos as pessoas de acordo com a nossa régua. Somos os únicos perfeitos no mundo, e os outros deveriam ser internados. O que significa, no final, que deveríamos nos alienar em nosso mundo perfeito. Essa é, na minha visão, a mensagem de Machado de Assis: tenha cuidado com o desejo de um mundo perfeito. Normalmente, traz a semente de um mundo totalitário.

Compungidos

Milhões de cubanos acompanham, compungidos, o féretro de Fidel.

O problema de todo sistema totalitário é que não dá pra saber quantos desses milhões estão compungidos sinceramente.

Construtores de utopias

“Na década de 90, aceitou algo do capitalismo mas, à diferença dos chineses, preservou o máximo de conquistas sociais. Sempre acreditou no “homem novo”, na vida sem egoísmo. Este, o seu maior mérito: não repudiou o que havia de ideais no comunismo. Sua meta estava na independência de Cuba e na justiça social; para isso incorporou o comunismo.”

Este é Renato Janine Ribeiro, hoje, no Valor Econômico. Entre ontem e hoje, li algumas análises sobre Fidel escritas por intelectuais de esquerda, para tentar entender a cabeça desse pessoal. Acho que esse trecho resume bem a coisa toda.

Eles simplesmente não ligam a miséria econômica e a ditadura feroz com a ideologia comunista. Todas as análises (e incluo aqui FHC) ressalvam o “grande ideal de Fidel”, e colocam o Estado policial e a perseguição política quase como acidentes de percurso, que não são suficientes para tisnar a Grande Obra do Homem, do Mito, do Herói.

Renato Janine e seus companheiros de ideologia não veem, ou não conseguem admitir, que a “construção do Homem Novo, solidário, sem egoísmo”, tem como instrumento necessário o estabelecimento de um Estado Totalitário. Sobre isto, recomendo a entrevista de Natan Sharansky, ontem, no Estadão. O dissidente soviético descreve com rara precisão o controle do pensamento em Estados Totalitários, único modo conhecido de implantar a Revolução do Homem Novo.

É curioso como esses intelectuais não conseguem (ou não querem) ver a contradição entre a comemoração das supostas “conquistas sociais” do regime cubano e a necessidade de “aceitar algo do capitalismo”. Ora, se as tais conquistas sociais são tudo o que o povo quer e precisa, pra que capitalismo? De onde essa necessidade de comércio e de livre iniciativa, na Sociedade do Homem Novo? Renato Janine termina seu texto perguntando se a figura de Fidel continuará inspirando aqueles que “lutam contra a miséria”! Caramba, então pra que capitalismo, se está tudo bem na ilha?

Renato Janine condena o regime chinês, “um capitalismo selvagem somado a uma ditadura, que se diz comunista mas é selvagem”. Ou seja, apesar de se dizer comunista, o regime chinês é selvagem. Aqui está, me parece, a grande desonestidade intelectual desse pessoal: se é selvagem, não é comunismo. O comunismo é virtude, e quem é contra não passa de um egoísta. A realidade das coisas é um mero detalhe para esses construtores de utopias.

Tudo acaba em triplex no Guarujá

Eliane Cantanhêde informa hoje que parlamentares de partidos de esquerda estão articulando a formação de um novo (mais um!) grande partido de esquerda, sucessor do PT, cujo ciclo teria acabado. Seria a hora de “resgatar as teses da esquerda que afundam junto com a era petista”.

Me faz lembrar o que dizem sobre o fim da URSS: que o socialismo verdadeiro não foi realmente implementado na URSS, com suas classes dirigentes tendo desvirtuado os ideais socialistas.

Não conseguem ver que o ideal socialista traz em si o germe totalitário, e com ele, a corrupção absoluta. O Manifesto Comunista, de Marx e Engels, já dizia: “O proletariado usará sua supremacia política para arrancar, gradualmente, todo o capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante; e para aumentar as forças produtivas tão rapidamente quanto possível. Claro que, no início, isto não pode ser obtido exceto por meio de intervenções despóticas nos direitos de propriedade, e nas condições de produção burguesas”.

A utopia está em que, ainda segundo o Manifesto Comunista, “quando, no curso do desenvolvimento, as distinções de classe tiverem desaparecido, e toda produção estiver concentrada nas mãos de uma vasta associação de toda a nação, o poder público perderá o seu caráter político. […] No lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus antagonismos de classes, deveremos ter uma associação, na qual o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos.”

Fica difícil entender como conjugar “intervenção despótica” com “desenvolvimento livre” no mesmo texto, e é justamente essa contradição insolúvel que torna o socialismo uma utopia: os “homens livres” em uma “sociedade livre” sempre ficam para depois, porque agora precisamos continuar “intervindo despoticamente” nas instituições burguesas.

O poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. O socialismo fracassou onde quer que tenha se tentado implementar seriamente porque precisa de homens incorruptíveis para a sua implantação. Homens utópicos, não reais. O estado é um ente abstrato, que é operado através de um governo, que é formado por homens. A concentração de poder no estado significa a concentração de poder na mão de poucos. E os revolucionários tornam-se a nova burguesia, a nova classe dominante, como magistralmente retratado na Revolução dos Bichos, de Orwell.

A criação de um novo partido de esquerda, para manter acesa a chama dos ideais socialistas, é só o reinício do ciclo: a busca da utopia, que acaba em um triplex com elevador no Guarujá.