O presidente deu o ar da graça ontem, finalmente, após quase 48 horas do anúncio do resultado da eleição. Não admitiu explicitamente a derrota, mas autorizou, segundo o seu ministro da Casa Civil, o início da transição de governo.
Em sua curtíssima manifestação, Bolsonaro levantou apenas um ponto: a injustiça do resultado eleitoral e o direito de manifestação de seus apoiadores, ainda que tenha condenado seus métodos.
Já escrevi ontem sobre os “métodos” de manifestação usados pelos bolsonaristas, e não precisa o presidente vir dizer que eles têm “direito” a se manifestar. O direito de manifestação é garantido pela Constituição. Vou me ater, portanto, ao ponto da “injustiça”.
O presidente não especificou porque considerou “injusto” o resultado eleitoral. Podemos apenas, portanto, elocubrar sobre as suas razões. Consigo pensar em três: 1) O STF ter permitido que Lula concorresse ao levantar as suas condenações, 2) O TSE ter agido de maneira parcial durante a campanha, apoiando implicitamente o seu adversário e 3) Ter havido fraude na apuração dos votos.
Começando pelo terceiro ponto, é de se notar que a palavra “fraude” sumiu do discurso de Bolsonaro e das redes bolsonaristas. O ministério da defesa (órgão do Poder Executivo) foi destacado para fazer uma “auditoria paralela”, e até agora não se manifestou. Ou seja, para aqueles que, como eu, achava que a carta da fraude seria usada, foi uma surpresa positiva. Ao menos essa questão mais, digamos, técnica, foi descartada. Sobraram as duas hipóteses iniciais, que são políticas.
Antes de comentá-las, vou trazer aqui de volta o gráfico que, para mim, mostra tudo e não esconde nada: a popularidade líquida dos governos (ótimo/bom menos ruim/péssimo).
Nos pontos em vermelho, temos a popularidade líquida de cada governo no mês da eleição. Observem que, em todos os casos em que houve a reeleição do incumbente (1998, 2006 e 2014) ou a eleição do sucessor do mesmo partido (1994 e 2010), a popularidade líquida estava positiva. Se Bolsonaro fosse eleito, seria a primeira vez que um incumbente seria reeleito com popularidade líquida negativa. Ele quase chegou lá, porque sua popularidade melhorou com a campanha eleitoral e com as “bondades eleitorais”, mas não foi o suficiente para ultrapassar essa barreira.
Qualquer outra explicação para a derrota eleitoral do presidente precisaria justificar porque a maioria dos eleitores deveria reconduzir ao cargo um presidente impopular. Eu mesmo, que acabei votando em Bolsonaro, acho seu governo, no máximo, com muito boa vontade, regular. Na área econômica, conquistas como a Reforma da Previdência, a independência do BC e o marco do saneamento são ofuscadas pela depredação do teto de gastos e pela sabotagem da Reforma Tributária ampla que estava sendo discutida no Congresso. Sem contar a sabotagem da privatização do Ceagesp, coisa atravessada na garganta dos paulistanos. E olha que estou deixando de fora questões não econômicas, como a vacinação contra a Covid, em que Bolsonaro fez de tudo para desacreditar a campanha, inclusive fazendo questão de não se vacinar.
Acima estão percepções que construí ao longo dos últimos 4 anos. Cada um terá as suas próprias, e o resultado final estará no gráfico acima. Bolsonaro colheu o que plantou, e isso não tem nada a ver com o STF ou com o TSE.
O STF devolveu os direitos políticos a Lula, e isso pode ou não ter sido justo. O ponto é saber o quanto isso influenciou nas eleições. Pode ser, inclusive, que um outro candidato que não Lula tivesse um resultado ainda melhor. Quem sabe? Em 2018, no auge do antipetismo, com Lula na prisão e Bolsonaro ainda uma promessa, Haddad obteve 45% dos votos válidos. O fato é que, por mais que tenha sido injusta a ação do STF (e “injustiça”, neste caso, é um termo relativo, porque, para muitos, a prisão de Lula é que tinha sido injusta), é realmente difícil relacionar este evento com o resultado das eleições.
Com relação ao segundo ponto, penso que um teórico “apoio” do TSE ao candidato Lula teria efeito muito limitado sobre a votação. O caso das inserções transferidas para Lula como direito de resposta, por exemplo, ignora todo o resto, inclusive a campanha nas redes sociais, que foram o motor da vitória de Bolsonaro em 2018. O problema de Bolsonaro não foi não ter o tempo de TV, foi não ter o que mostrar no tempo de TV, a não ser denegrir o seu adversário. Portanto, mesmo que o TSE tenha implicitamente apoiado Lula, avalio que este “apoio” teria um efeito muito limitado sobre o resultado final da campanha.
Como todo time que perde campeonato, são muitas as teorias levantadas para justificar o mau resultado, inclusive o pênalti não dado pelo juiz. O fato nu e cru, no entanto, está no gráfico acima: Bolsonaro não tinha popularidade suficiente para se eleger. O resto é desculpa de perdedor.
Jabuti não sobe em árvore, se ele está lá é porque alguém colocou.
Esse ditado é útil quando precisamos explicar algo que parece estranho. No caso, uma reportagem sobre o papel “pacificador” do ministro Ricardo Lewandowski no TSE. São dessas reportagens que um leitor experimentado de jornal se pergunta: quem colocou esse jabuti na árvore do Estadão?
A matéria é fofoca de bastidor de poder, e interessa a quem quer passar a imagem de Lewandowski como um ministro imparcial, que segurará a onda do espalha-brasas Alexandre de Moraes. Como evidência de sua isenção, a reportagem cita o fato de que Lewandowski não teria ido presencialmente à leitura do manifesto pela democracia no Largo de São Francisco, para não parecer partidário. E, pasmem, seu exemplo teria sido “seguido” pelos outros ministros. Como se Lewandowski tivesse essa ascendência toda sobre o colegiado.
(Um parênteses antes de continuar. Ironicamente, a reportagem atesta o caráter partidário do tal manifesto, ao destacar a “isenção” do magistrado. Se fosse somente pela democracia, qual seria o problema da presença do ministro? Fecha parênteses)
Coincidentemente, na página anterior, temos a decisão do TSE de mandar suspender as peças publicitárias da campanha de Bolsonaro, citando reportagem da revista Veja com o depoimento de Marcos Valério ligando o PT ao PCC.
A peça entrou na categoria de “fake news”, quando apenas repercute uma matéria da chamada grande imprensa. Efetivamente Marcos Valério disse o que disse, e cabe à campanha de Lula desmenti-lo, não ao TSE. Nessa mesma linha, por exemplo, a campanha de Lula deveria ser proibida de usar a matéria do UOL sobre a compra de imóveis com dinheiro vivo por parte da família Bolsonaro. A rigor, as campanhas deveriam estar proibidas de usar qualquer reportagem que possa denegrir a imagem de algum candidato.
A relatora do caso havia decidido liminarmente pela manutenção da propaganda. Adivinha o ministro que abriu divergência? Sim, o mesmo que lutou com incansável denodo contra Joaquim Barbosa no caso do mensalão, o mesmo que rasgou a Constituição para manter os direitos políticos da presidente cassada Dilma Rousseff, o mesmo que votou contra a prisão em 2a instância para evitar a prisão de Lula, o mesmo que votou pela suspeição de Moro e devolveu os direitos políticos a Lula. Esse é o “pacificador” da cena política nacional, segundo uma matéria que surgiu do nada.
Não há saída fora das instituições. Portanto, o Brasil precisa funcionar com essa Suprema Corte que aí está. Mas, pelo menos, os ministros poderiam nos poupar de ler reportagens plantadas como essa.
Creio que já deixei claro aqui meu desconforto com o papel que o TSE se autoconcedeu de “juiz da verdade” nessas eleições. Por isso, sinto-me à vontade para elogiar o TSE quando acredito que o tribunal acertou.
Refiro-me a três decisões do tribunal, duas impondo a retirada de conteúdos e uma negando a demanda. Acredito que os juízes do TSE acertaram nos três casos.
No primeiro, um áudio atribuído a Aldo Rebelo culpa o PT pela alta dos combustíveis. O problema, no caso, é que o áudio não é de Aldo Rebelo. O juiz não julgou o conteúdo em si, mas a autenticidade do áudio. Colocado na boca de um aliado de Lula, o discurso torna-se muito mais crível. Portanto, a forma importa. E a forma é falsa. Fosse Bolsonaro ou Guedes dizendo a mesma coisa, teríamos um discurso político, e o TSE não teria nada a ver com isso. Portanto, o TSE acertou neste caso.
No segundo, um vídeo de humor mostrando um advogado do PT dizendo que as pesquisas são manipuladas é apresentado como uma denúncia séria. Obviamente, trata-se de uma manipulação grosseira. O TSE, novamente, não julgou o conteúdo, mas a forma. Não existe um advogado do PT denunciando a manipulação de pesquisas. Uma coisa é alguém com nome e sobrenome fazer a denúncia, tendo o ônus de sustenta-la perante a justiça, dado que os institutos podem processar o denunciante. Outra bem diferente é um programa de humor ser apresentado como “prova” da manipulação. O TSE acertou nesse segundo caso.
O terceiro é um post de Carlos Bolsonaro, em que o filho do presidente comenta uma entrevista de Lula ao jornal El País, onde o presidente afirma que ”não vai enganar o povo mais uma vez”. Carlos, obviamente, deita e rola em cima da frase. O juiz considerou que o video de Carlos Bolsonaro pertence à esfera da luta política, dado que o ex-presidente efetivamente falou o que falou. A acusação é de “descontextualização”, como se fosse obrigação do político contextualizar a fala de um adversário. Cada um fala o que quer e depois aguenta as consequências. O juiz entendeu que não se tratava de falsidade, mas de “tom crítico ou satírico”. Mais uma vez, ponto para o TSE.
Se continuar seguindo nessa linha, o TSE terá um papel importante nessas eleições.
Fake News. Esse assunto tem me incomodado de maneira especial.
Venho acompanhando esse affair do vídeo em que a ministra Damares Alves afirma que o governo Lula produziu uma cartilha que ensinava os jovens a usar crack. O PT entrou na justiça eleitoral pedindo a remoção do vídeo.
Eu não vi a cartilha, mas pelo que a imprensa informou, parece que a abordagem é a de “redução de danos”. Conhecemos essa abordagem: o melhor é você não usar drogas, mas se resolver usar, utilize seringas descartáveis, não compartilhe o cachimbo e coisas do tipo. Damares afirma que são orientações para o uso de drogas. O PT se defende dizendo que se trata de saúde pública.
A Procuradoria Geral Eleitoral diz o óbvio: não se trata de fake news. A cartilha existiu. A cartilha ensina como usar crack. Se isso é apologia ao uso ou redução de danos, cabe a cada um julgar. Damares inseriu a cartilha em seu discurso político, afirmando que é um absurdo tentar “reduzir danos” neste caso. Absolutamente legítimo. Trata-se de um posicionamento político, com o qual podemos concordar ou não. Mas ela não inventou nada, está lá, à disposição da interpretação de todos.
O TSE se meteu em uma armadilha que não tem saída honrosa. Será inundado de pedidos de anulação de propaganda alegando-se “fake news”, quando não passam de discurso político, em que adversários procuram aumentar seus próprios atributos e os defeitos de seus adversários, interpretando fatos concretos à luz de suas próprias percepções. O problema de querer substituir a inteligência dos eleitores por um suposto critério objetivo é acabarmos dependentes de uma verdade estatal. O TSE se transformou no Ministério da Verdade, e isto não é nada bom.
Agora estou tranquilo. Posso ler todos os conteúdos que recebo no Facebook, WhatsApp, Instagram, YouTube, Google, TikTok, Twitter e Kwai sem medo de estar sendo manipulado pelas forças do mal. É impagável essa sensação de paz ao saber que tudo o que vou ler é verdadeiro e bom, de acordo com critérios que eu mesmo não seria capaz de elaborar com a minha mente limitada. Que bom que existe o TSE para nos proteger desses disseminadores do mal.
Ah, e sim, não vou sequer instalar esse tal de Telegram, onde o esgoto corre a céu aberto e os guardiões da pureza e da verdade não alcançam. Nem sequer respondem aos e-mails do presidente do TSE! Será que eles sabem com quem não estão falando? Não, não vou baixar. Vai que eu me contamine e passe a acreditar naquilo que eu não deveria acreditar. Cruz, credo!
Fui dar uma olhada a respeito da prática de bloquear aplicativos e sites ao redor do mundo. Há alguns casos.
A China é, de longe, o país que mais bloqueia o acesso a aplicativos específicos. O motivo não poderia ser outro: segurança nacional, ameaçada por ideias subversivas.
O mesmo ocorre em Cuba, que bloqueou o acesso às redes sociais durante os últimos protestos.
O governo da Índia vem bloqueando o acesso a aplicativos chineses, como forma de se proteger de “roubo de dados”.
O mesmo fez Donald Trump no apagar das luzes de seu governo, ao emitir uma ordem executiva para bloquear oito aplicativos chineses de pagamento. O motivo: tráfego de dados sensíveis e que, supostamente, ficariam disponíveis para o governo chinês. Biden revogou essa ordem em junho último, mas seu governo continua discutindo o que fazer com essa fragilidade.
Notem a diferença entre os casos de China e Cuba e os casos de India e EUA. Enquanto nestes últimos há uma preocupação com a exposição de dados para um governo hostil, nos primeiros o que há é pura e simplesmente censura de conteúdo contra seus próprios cidadãos.
Com relação especificamente ao Telegram, a notícia é de que o aplicativo já foi bloqueado em 11 países.
Na matéria, obviamente, não há uma lista desses 11 países. O número está lá somente para passar a impressão de que não estamos sozinhos, a oposição ao Telegram está se tornando generalizada. Mas não é à toa que a lista de países não foi divulgada pela reportagem.
Dando um Google, descobrimos que essa lista de países preocupados em proteger suas democracias incluem Rússia, Irã, Ucrânia, China, Cuba, Bahrein, Belarus, Paquistão e Indonésia. A justiça brasileira, ao ameaçar bloquear o Telegram, se alinha a esses gigantes da democracia. Parabéns aos envolvidos.
Certamente você já tentou segurar água com as mãos em formato de concha. É questão de (pouco) tempo para a água desaparecer entre os dedos.
Essa tentativa do TSE de controlar os aplicativos de mensagem se assemelha a esse fenômeno. As mensagens chegarão ao seu destino, o que quer que o TSE faça ou deixe de fazer. Sempre foi assim ao longo da história.
Apenas para ficar nos casos mais famosos, Hitler não precisou de um aplicativo de mensagens para ganhar corações e mentes da maioria do povo alemão, assim como Stálin não precisou do WhatsApp ou do Telegram para manter toda uma sociedade sob o regime do medo durante vários anos. Claro que se essas ferramentas estivessem disponíveis eles as usariam. Mas a história mostra que não são essenciais. O que importam são as ideias, e essas se espalham como a água, por mais que se tente segurá-las.
Para não dizer que usei apenas exemplos extremos, grandes movimentos cívicos brasileiros, que tinham como objetivo a derrubada de regimes, como a marcha da família com Deus pela liberdade ou os comícios das Diretas Já, não precisaram de aplicativos de mensagens para atraírem apoio.
Claro que os aplicativos de mensagens potencializam o “problema” do compartilhamento de ideias, pois permitem um alcance maior e mais rápido. É um pouco como comparar carroças com carros, ambos servem para chegar do ponto A até o ponto B, mas o carro chega mais rápido. Mas isso não muda a natureza da coisa, como a história demonstra. Mesmo porque, as mesmas ferramentas estão disponíveis para todos. Então, o que vale, o que continua valendo, sempre, são as ideias.
E este é o ponto fundamental: grande parte das pessoas forma sua opinião e apenas DEPOIS busca informações (verdadeiras ou falsas) que confirmem o seu ponto de vista. Posso dizer que sou veterano de redes sociais. Nunca vi, em todos esses anos, uma única pessoa mudar de opinião em discussões no Facebook ou em grupos no WhatsApp. Pelo contrário, parece que as opiniões iniciais se cristalizam ainda mais depois dessas discussões. Assim, as pessoas filtram as informações que querem receber, não são a página em branco idealizada pelos ministros do TSE. Por isso, controlar os aplicativos de mensagem, além de ser uma tarefa de Sísifo, é inútil.
Por fim, não deixa de ser curioso o presidente do TSE, que é também ministro do STF, levantar o problema da falta de representante do Telegram no país apenas em relação às eleições.
O Telegram pode ser (e certamente é) usado por contraventores para planejar os seus crimes. Esse tipo de uso, no entanto, não chama a atenção do STF, que nunca levantou o problema da falta de representante do aplicativo no Brasil. O que não pode é servir de canal para feique nius durante as eleições. Pensando bem, para um STF que julga com base em mensagens hackeadas ilegalmente do próprio Telegram, está tudo muito coerente.
O TSE determinou que “disparo em massa de mensagens contendo desinformação e inverdades” constitui abuso de poder econômico. De onde se conclui que 1) disparo de mensagens contendo informação e verdades, ou 2) a disseminação de desinformação e inverdades por outros meios que não o disparo de mensagens em massa, estão liberados.
Essa diretriz do TSE vem em reposta à “denúncia” feita pela Folha na reta final da campanha de 2018, de que empresários estariam por trás do disparo de mensagens de WhatsApp em favor do então candidato Bolsonaro. A decisão do TSE é um monumento ao contorcionismo, ao afirmar que “isso aí” que vocês fizeram não pode, mas não dá pra afirmar que “isso aí” tenha tido, de fato, influência nas eleições. Tanto foi assim, que os partidos agora estão atrás do TSE para entender o que pode e o que não pode fazer.
É natural que os partidos estejam perdidos. Abuso de poder econômico sempre foi o coronel comprar votos com lanches, transporte de eleitores ou ameaça de punição. Propaganda nunca foi abuso de poder. O TSE fez uma nova tese, em que certos tipos de propaganda configuram abuso de poder econômico.
Por que mesmo disparo de mensagens no WhatsApp configuraria abuso? Eu canso de receber mensagens de corretores de imóveis via WhatsApp. Recebo também mensagens de telemarketing e malas-diretas em casa. Por fim, ao abrir o jornal ou ligar o rádio e a TV, ouço e vejo anúncios que foram “disparados em massa”. Afinal, propaganda é, por definição, comunicação em massa. Por que um poderia e o outro não? É o que os partidos querem saber.
Para piorar a situação, o TSE entra no pantanoso campo do conteúdo. O disparo em massa não pode conter “desinformação e inverdades”. Quer dizer, de agora em diante, o TSE vai se tornar uma agência de “fact checking”, julgando se o que é dito sobre os candidatos é verdade ou mentira. Por exemplo, em 2014, teriam que julgar se a propaganda do PT, acusando a então candidata Marina Silva de querer tirar a comida da mesa do brasileiro ao defender a independência do BC, era uma desinformação. Boa sorte, magistrados!
Tudo isso reflete apenas o inconformismo pelo fato de Bolsonaro ter vencido as eleições de 2018 gastando uma fração do dinheiro usado pelos seus adversários no pleito. As “armas” eram as mesmas para todos, mas o que se viu foi que Bolsonaro, além das armas, tinha uma militância não paga que fez a diferença. O resto é teoria da conspiração.
A única mensagem inequívoca do julgamento do TSE, e que não tem nada a ver com “disparos em massa”, foi a cassação do deputado Fernando Fransischini por divulgação de vídeo denunciando uma suposta fraude da urna eletrônica. Fraude foi o vídeo em si, o que foi punido com a cassação. Essa foi a única parte do julgamento que prestou para alguma coisa.
Em um dos meus últimos artigos, esclareci qual o critério que utilizo para distinguir a verdade dos fatos: se “cheira” a teoria da conspiração, normalmente descarto. Alguns dos meus leitores mostraram desconforto, e com razão: afinal, como descartar a priori algo que nem sequer foi investigado? Não seria uma postura muito cômoda, preguiçosa até, ao simplesmente confiar em uma “regra geral”, sem se dar ao trabalho de verificar a sua veracidade?
Pensei no assunto com cuidado.
Vamos dividir esta discussão em duas partes: na primeira, definiremos o que é uma “Teoria da Conspiração”. Depois, com base nesta definição, concluiremos que, por construção, é absolutamente inútil investigar ou pesquisar o objeto de uma teoria da conspiração.
O que é Teoria da Conspiração?
Quando meus filhos eram pequenos, assistiam a vários desenhos no Cartoon Network. Um deles era Pink e o Cérebro, que envolvia dois personagens completamente antagônicos: Pink, um rato desmiolado que só aprontava confusão, e Cérebro, um rato superinteligente, cujo único objetivo na vida era nada menos do que “dominar o mundo”. Pink se preocupava com as coisas mundanas, enquanto Cérebro estava sempre preparando um plano genial para dominar o mundo.
Sempre quando ouço algo que me parece Teoria da Conspiração, lembro do Cérebro: deve haver um rato superinteligente tentando dominar o mundo por traz disso.
Teoria da Conspiração é qualquer explicação para um evento ou tese (que vou aqui chamar de Grande Tese) que envolva forças superiores e obscuras, as quais invariavelmente buscam manipular a realidade, na maior parte das vezes com motivações políticas.
Por que Teorias da Conspiração são inverossímeis? Por um motivo simples: para serem verdade, pressupõem a existência de um Cérebro que consegue puxar todas as cordas da realidade, de modo a criar uma realidade paralela que engana grande parte da humanidade, MENOS os iniciados que conseguem perceber a tramoia.
O documentário Behind the Curve, disponível no Netflix, explica exatamente este mecanismo.
Este documentário aponta com precisão as características de uma Teoria da Conspiração:
– Evidências apenas para os iniciados: as “evidências” encontradas a favor da Grande Tese são óbvias apenas para aqueles que compartilham da mesma fé. Por exemplo, uma das “evidências” de que a terra seria plana é que não há voos sobre os oceanos do hemisfério sul, que estariam muito próximos da “borda” do planeta. Mas obviamente há, o que não abala a fé dos terraplanistas.
– O “bom-senso” é a prova fundamental da Grande Tese. Se conseguimos andar em linha reta durante milhares de quilômetros, ou se consigo ver a linha do horizonte, ou se não “sinto” o movimento de rotação do planeta, é óbvio que a terra é plana. A Grande Tese é sempre sustentada pelo pensamento “não pode ser diferente disso”.
– A convicção vem antes da prova. O documentário mostra vários experimentos que frustram a Grande Tese. Mas isso acontece porque não “testaram direito”. Se o experimento não consegue provar, é porque não foi suficientemente bom. Ou, no máximo, há um paradoxo em busca de uma explicação.
– A falta de refutação formal e detalhada por parte dos cientistas é apontada como uma evidência em favor da Grande Tese. Não se lhes ocorre que, pelo disparatado da coisa, ninguém realmente vai perder seu precioso tempo refutando ponto por ponto. Por outro lado, evidências como fotos tiradas do espaço são descartadas como sendo parte da grande conspiração liderada pelo Cérebro.
– Reunião em comunidades. Os que comungam da mesma crença reúnem-se em comunidades que se autoalimentam com suas paranoias, e não se deixam levar por evidências contrárias à sua fé. Sim, porque a coisa se transforma em fé religiosa. Uns apoiando-se nos outros para sustentarem a sua fé.
– Forças ocultas e poderosas: Por fim, há sempre uma concertação de forças ocultas e poderosas que impõem a mentira com objetivos obscuros e sinistros. No caso do terraplanismo, a Nasa mente, mas não fica claro porque mentiria sobre isso. O fato é que mente, e por algum motivo muito grave deve ser.
Uma parte interessante do documentário é a descrição da Síndrome do Impostor e do Efeito Dunning-Kruger. A Síndrome do Impostor acomete acadêmicos que aprofundam em um determinado tópico e, em certo momento, conseguem ver o quanto ainda não sabem sobre aquele assunto. Assim, sentem-se como impostores, que afetam um conhecimento que supostamente não têm. Por outro lado, o Efeito Dunning-Kruger é exatamente o oposto: quanto menos uma pessoa sabe sobre um determinado tema, mais ela acha que já sabe tudo. Faz pesquisas na internet, vê vídeos no YouTube, lê artigos na Wikipedia e… voi lá! tornou-se um expert sobre aquele assunto. É interessante observar como esse padrão se repete: os teoristas da conspiração não têm dúvidas de nenhuma maneira sobre aquilo em que acreditam.
É inútil debater com conspiracionistas
Em determinado momento do documentário, um escritor de ficção científica define bem o problema: enquanto cientistas partem dos fatos para chegar em uma teoria, os teoristas da conspiração partem da teoria e buscam fatos que a comprove. E se os fatos não a comprovam, que se danem os fatos. O documentário mostra pelo menos três experimentos realizados pelos terraplanistas que não funcionam, mas isso não abala a sua fé na teoria.
Portanto, não há como debater contra a Grande Tese. Não estamos sobre o mesmo terreno, o campo de debate não é o mesmo. O teorista da conspiração está em um outro mundo, com suas próprias regras. Neste mundo, há pessoas poderosas querendo esconder a verdade. Eles, no entanto, por algum motivo, são os únicos que conhecem essa verdade. Mesmo contra todas as evidências.
Óbvio que eles falarão que somos nós que não estamos vendo as evidências, claras como a luz do dia. Uma “evidência” apresentada no documentário, por exemplo, é o fato de o planeta estar girando a uma velocidade estonteante, mas nós não sentimos absolutamente nada. Como isso é possível? O bom senso diz que estamos parados, claro. Esse é o tipo de “evidência” dos terraplanistas. Pouco se lhes dá que experimentos científicos básicos mostram que dois corpos viajando na mesma velocidade estarão parados um em relação ao outro. Qualquer evidência científica é descartada como parte de um sistema montado para enganar.
Este é o cerne do critério que utilizo: se cheira a Teoria da Conspiração, descarto. Cheirar a Teoria da Conspiração significa ter alguns dos requisitos listados acima. E descarto a priori porque não teríamos base para discussão. Estamos em universos diferentes, utilizando ferramentas de análise diferentes. Portanto, o máximo que posso fazer é desejar toda a felicidade do mundo para os conspiracionistas. Sejam felizes com sua Grande Tese, não serei eu a tentar convencê-los do contrário.
A coisa pode ficar séria
Propositalmente, considerei um caso extremo de Teoria da Conspiração, o terraplanismo. Quero acreditar que a maior parte das pessoas que lerão este artigo não deem maior importância a esse tema. Eu mesmo não dava, até descobrir que há comunidades que se reúnem em torno do tema. Mas essas pessoas são inofensivas, sua fé não vai mudar o destino da humanidade.
Ocorre que há Teorias da Conspiração que são realmente perigosas e podem fazer mal. Vou dar três exemplos para ilustrar.
O primeiro é o que se refere ao poder dos judeus. Não de um ou outro judeu, mas da comunidade judaica. O antissemitismo marca o povo judeu desde sempre, mas é com a edição do livro Os Protocolos dos Sábios de Sião, no final do século XIX, que a Teoria da Conspiração ganha contornos bem definidos: o plano judaico de dominação do mundo. Esta obra é citada por Hitler no seu livro Mein Kampf, e serviu de base para concretizar o antissemitismo assassino na Europa das décadas de 30 e 40 do século passado. E note que, como qualquer Teoria da Conspiração, não há como refutá-la. Trata-se de uma convicção, gerada por um preconceito primordial.
A Grande Tese, neste caso, é que haveria um plano de dominação do mundo por parte dos judeus. Claro que, em sendo verdade, este plano deveria ser parado de qualquer forma. E qualquer forma significou a morte de 6 milhões de judeus na Europa. Exemplo de uma Teoria da Conspiração muito mais perigosa do que o terraplanismo.
Um segundo exemplo de Teoria da Conspiração perigosa é o movimento anti-vacina.
Iniciei minha carreira em um grande banco internacional. Minha filha mais velha era um bebê na época e, como todo pai consciente, cumpria a tabela de vacinação. Um gerente mais velho, quando soube que eu levava minha filha para tomar vacinas, disse-me algo na linha “então você coloca qualquer substância dentro do corpo de sua filha?” Era um anti-vaxx. Isso era 1990, o que mostra que esse movimento não é de hoje. Depois soube que também era adepto de coisas esotéricas. Essas coisas nunca vêm sozinhas. No documentário sobre terraplanismo, alguns dos entrevistados são também anti-vaxx. Como se trata de uma negação do conhecimento científico, é só natural que tudo o que cheire a ciência seja rejeitado.
A Grande Tese, segundo este gerente, é que os grandes laboratórios ganhavam muito dinheiro convencendo os governos e as pessoas de que essas doenças contra as quais as vacinas protegem são muito perigosas, quando, na verdade, o grande perigo eram as próprias vacinas. Essas sim é que deixavam as pessoas doentes, o que fechava o círculo, pois os mesmos laboratórios vendiam os remédios. Não importavam evidências de erradicação de doenças que antes existiam, a Grande Tese se fechava em si mesma em uma lógica irrefutável. Aprendi ali que discutir com terraplanistas de qualquer gênero não leva a parte alguma.
Pelo menos, no caso deste gerente, as vacinas causavam apenas doenças. Hoje, as vacinas transmitem genes que funcionam como chips que nos marcam para o controle de uma Nova Ordem Mundial. Enfim, a coisa se sofisticou com o tempo.
Note que aqui, novamente, a Teoria da Conspiração é muito perigosa. A cobertura de vacinação vem caindo com o tempo, e doenças como o sarampo, que já há algum tempo vinham sendo controladas, voltaram com força. Trata-se de um problema de saúde pública sério.
O terceiro exemplo de Teoria da Conspiração nada inocente refere-se a acusações de fraudes em eleições. Este tipo de Teoria é perigoso porque ataca diretamente um dos principais alicerces do regime democrático: a lisura das eleições. Coloque em dúvida o resultado eleitoral, e todo o edifício democrático vem abaixo. Esta é justamente a Grande Tese: a democracia está dominada pelo establishment, que não deixa a voz do povo falar através das urnas. Qual a saída em um quadro desses? Pergunta apenas retórica, como demonstrou a invasão do Capitólio.
Há dois tipos de fraudes eleitorais. O primeiro ocorre em regimes autoritários, onde as eleições são apenas um arremedo de cumprimento do ritual democrático, feitas apenas para cumprir tabela em uma democracia de fachada. É o que vemos na Venezuela, por exemplo.
O segundo tipo de fraude é o que ocorre em democracias bem estabelecidas. São pequenos delitos, que não são, via de regra, suficientes para mudar uma eleição majoritária. O think tank Heritage Foundation mantém uma página onde lista todas as fraudes detectadas em todas as eleições norte-americanas. Nas eleições de 2020, por exemplo, o site lista 16 fraudes. Já nas eleições de 2016, o número de fraudes listadas sobe para 62! Ou seja, no ano da eleição de Trump, o número de fraudes é quase quatro vezes maior do que no ano da eleição de Biden.
Alguma dessas fraudes, ou mesmo o conjunto delas, foi suficiente para mudar os resultados agregados? Provavelmente não. Mesmo porque, seus efeitos foram sanados. A questão, obviamente, não está nesses casos, mas naqueles não detectados, ou detectados, mas não devidamente investigados. Quantos desses casos existem? Seriam em número suficiente para mudar o resultado eleitoral?
Aqui entra a Teoria da Conspiração.
Fraude eleitoral: uma Teoria da Conspiração antidemocrática
Donald Trump repetiu até o fim que as eleições foram fraudadas e que ele tinha sido o vencedor por uma larga margem. Teria havido uma gigantesca manipulação, com o simples objetivo de eleger o seu adversário, Joe Biden. E mais: além da manipulação em si, todo o sistema eleitoral, com seus comitês e juízes, estariam irremediavelmente corrompidos, de modo que não levaram adiante as devidas investigações que atestariam a manipulação.
Isto me faz lembrar uma passagem do documentário sobre o terraplanismo. Em determinado momento, um dos principais propugnadores da Teoria, Mark Sargent, afirma que os cientistas não conseguem refutar a Grande Tese. Na verdade, segundo ele, eles nem tentam fazê-lo, pois sabem que não teriam a mínima chance. Por isso, nem entram no ringue (ele usa essa expressão). Corta para um astrofísico (alguns cientistas são entrevistados ao longo do documentário), que afirma que não dá para ficar perdendo tempo com toda teoria maluca que aparece. Os cientistas têm mais o que fazer. É mais ou menos isso o que acontece com relação a denúncias de “fraudes gigantescas”.
É claro que toda denúncia séria deve ser checada. Não à toa, o site da Heritage Foundation lista as denúncias que resultaram em penalidade. Isso é uma coisa. Outra coisa são essas denúncias feitas por supostos experts ou denunciantes nem sempre identificados, apontando esquemas óbvios de fraude. Tão óbvios, que realmente fica difícil de entender por que os diversos profissionais do sistema eleitoral não lhes deram ouvidos. Só tem uma explicação, na cabeça dos teoristas: assim como acontece com os cientistas, os profissionais do sistema eleitoral nem se atrevem a entrar no ringue, pois sabem que seriam fragorosamente derrotados. Mantém uma farsa, com interesses escusos e obscuros. Assim, milhares de mesários, membros de comitês eleitorais e juízes estariam mancomunados com o establishment para esconder a Verdade.
Bem, eu não deveria fazer isso, mas vou fazer, em atenção àqueles que realmente têm dúvidas sinceras sobre a lisura do último pleito nos EUA. Pessoas que não têm uma Grande Tese a priori, mas ouviram tanto falar em fraudes e ouviram tantas histórias, que realmente ficaram na dúvida. Para essas pessoas, não basta dizer “os cientistas afirmam que a terra é redonda”. Ou, no caso, que as autoridades competentes asseguraram que as eleições foram limpas e seguras. Gostariam de ver uma refutação objetiva de cada uma das denúncias. Então, vamos lá.
Para tanto, vou usar como fonte o site FactCheck.org. Claro, quem tem a Grande Tese da fraude como premissa pétrea, este site, assim como todos os sites de checagem de fatos, faz parte da Grande Mancomunação. Mas o que vai a seguir não é para os terraplanistas da democracia. Para estes, nada do que se diga os moverá. Assista o documentário e você entenderá o que quero dizer. O que vai a seguir, como disse acima, é dirigido para quem tem dúvidas sinceras. Se você não as tem, seja porque acredita na Grande Tese, seja porque não acredita, pode pular para a próxima seção, pois se trata de um trecho muito longo deste artigo.
Como ponto em comum de todos os casos a seguir, temos a sua publicação em redes sociais. As redes sociais são o canal pelo qual essas “denúncias” se proliferam. Normalmente em tom alarmista, a “denúncia” é feita por um “expert” ou por uma “testemunha ocular”, mas normalmente é impossível fazer o rastreamento de sua origem. Vamos aos casos.
31/10: Votos pré-preenchidos no Queens, NY. Uma “enxurrada” de votos pré-preenchidos com o voto em Biden teriam sido distribuídos no Queens, NYC, segundo um jornalista freelancer chamado Jake Novak, retuitado pelo filho de Trump. Na verdade, o jornalista mostrou apenas um voto pré-preenchido como evidência. A explicação é simples: este voto pertencia a uma pessoa que se mudou de NY para a Califórnia, e pediu um formulário. O formulário chegou em branco, mas na hora de colocar no correio, o eleitor (que preencheu com voto para Biden) não envelopou corretamente, e o voto acabou voltando para a sua antiga residência em NY.
03/11: Apagaram os votos em Utah: um vídeo no Instagram, em que uma senhora narra uma cena estranha, viralizou: seu marido foi votar, mas a máquina mostrou uma mensagem de que ele já havia votado. A mesa teria sido capaz de “apagar” o seu voto e, então, ele votou normalmente. O que aconteceu foi que, na geração do cartão para o voto, o mesário esqueceu-se de fazer um passo, o que, de fato não habilitou o cartão. É óbvio que, se esse fosse um problema recorrente, outros relatos desse tipo teriam aparecido.
03/11: “Joguei fora 100 votos pró-Trump!”: um cidadão da Pennsylvania, Sebastian Machado, dizendo-se mesário no condado de Erie, fez um vídeo no Instagram afirmando que, naquele dia, havia jogado mais de 100 votos pró-Trump fora. A junta eleitoral do condado de Erie negou que o cidadão trabalhasse como mesário em qualquer seção eleitoral, ou mesmo fosse um cidadão registrado do condado.
04/11: Biden ganha 140 mil votos em segundos no Michigan: o número de votos pró-Biden de repente deu um salto de 140 mil no condado de Shiawassee, no Michigan, ultrapassando, inclusive, o número de eleitores registrados no condado. O próprio Trump tuitou sobre o assunto. Ocorre que houve um erro na transcrição dos resultados nesse condado, resolvido assim que descoberto. Os dados do próprio dia passam por checagens antes de se tornarem oficiais. O resultado incorreto foi o primeiro divulgado, e corrigido assim que checado.
04/11: Votos pró-Trump não contados por terem sido preenchidos com lápis no Arizona: um vídeo que viralizou mostrava um homem em frente a uma sessão eleitoral no condado de Maricopa, Arizona, dizendo que as pessoas estavam sendo orientadas a marcar o seu voto com “lápis bem apontados”, o que invalidaria os seus votos. E aquele condado seria pró-Trump. Obviamente, o comitê eleitoral afirmou que todos os votos seriam contados, independentemente do tipo de caneta ou lápis utilizado.
04/11: Mais votos do que eleitores em Wisconsin. Vários posts mostravam números errados. Era a coisa mais fácil do mundo verificar que houve 3.297.137 votos no Estado, enquanto há 3.684.726 eleitores.
05/11: Muitos formulários para votar pelo correio eram ilegítimos. Segundo a narrativa criada pelo QAnon, as cédulas de votação por correio seriam produzidas pelo Homeland Security com um isótopo que os identificaria. Os democratas teriam impresso milhares de cédulas falsas, que seriam identificadas através da falta dessa marca, desmascarando a farsa democrata. Tudo falso, do início ao fim. Parece aqueles tuítes super-bem-informados, que nos avisavam que a derrota na verdade era uma vitória, e que tudo seria esclarecido em breve…
06/11: Eleitor em Detroit entra com processo contra as eleições. Em uma suposta reportagem da Fox, um eleitor em Detroit teria entrado com um processo contra a junta eleitoral da cidade, acusando-a de ter 4.788 registros duplicados, 32.519 mais eleitores registrados do que eleitores válidos, 2.503 eleitores mortos e um eleitor nascido em 1823. Só tem um problema: a reportagem era do final de 2019, e o eleitor retirou as acusações de maneira espontânea no início de 2020, depois de a cidade demonstrar que não havia irregularidades.
Pennsylvania: Trump alegou que houve uma imensidade de cédulas recebidas pelo correio depois do dia 03. A lei do Estado permitia considerar votos que chegassem até o dia 06, desde que houvesse um carimbo do correio com data máxima de 03/11. Trump alegou que a maioria não tinha carimbo, o que é simplesmente falso. Além disso, esses votos foram contados separadamente e, mesmo sem eles, Trump perde no Estado.
Michigan: Trump alegou que várias cédulas apareceram “do nada” de madrugada em Detroit, aparentemente baseando-se em um vídeo espalhado por um site chamado Texas Scorecard. O vídeo foi devidamente desmascarado. Além disso, a campanha de Trump alegou que seus delegados não puderam acompanhar a votação, o que é simplesmente uma inverdade (o juiz indeferiu a reclamação).
Georgia: Trump alegou que votos que chegaram depois do dia 03/11 foram contados, o que simplesmente não é verdade.
North Carolina: aqui, Trump reclamou que as cédulas enviadas pelo correio eram, na maioria, a favor de Biden. Isso parece natural, dado que os democratas fizeram campanha pelo voto via correio, ao passo que Trump demonizou essa forma de votação ao longo de toda a campanha. De qualquer forma, Trump ganhou este Estado.
Wisconsin: Trump alega que ganhou o Estado, mas sua vantagem foi “roubada” depois de estar em larga vantagem. Neste caso, não mostra nenhuma “evidência”. O fato é que os votos pelo correio viraram o jogo.
06/11: Fraude na contagem de votos na Pennsylvania: um vídeo mostrando contadores de votos supostamente preenchendo votos no condado de Delaware viralizou como prova de fraude. O vídeo faz parte do próprio streaming da seção eleitoral (não foi filmado de maneira escondida), e não mostra que a apenas 2 metros dali havia fiscais de ambos os partidos observando. Os contadores estavam transcrevendo votos que não estavam sendo lidos pelo scanner para cédulas novas, de modo que pudessem ser escaneadas. O curioso nessas coisas é porque esse tipo de fraude prejudicaria somente o candidato republicano.
06/11: Correios carimbando cédulas com data de 03/11 em Michigan. Segundo denúncia do site conservador Project Veritas, ouvindo um denunciante anônimo de dentro dos correios, a instituição estaria carimbando cédulas com data de 03/11, de modo a validá-las. O vídeo foi retuitado por Donald Trump Jr. Obviamente, não se encontraram evidências. Além disso, Michigan é um dos Estados que não validam cédulas que chegam após o dia 03/11, mesmo que tenham o carimbo de 03/11, de modo que nem adiantaria carimbar com data anterior.
09/11: Mortos votando na Pennsylvania. Esta foi uma alegação muito comum dos apoiadores de Trump. O senador republicano Lindsey Graham afirmou em uma entrevista que a campanha de Trump havia identificado pelo menos 100 eleitores mortos registrados, e pelo menos 15 desses haviam realmente votado. Depois de muito espremer, a campanha apresentou uma evidência concreta, uma senhora que morreu em 22/10, a sua aplicação para votação pelo correio chegou no dia 23/10, e a cédula chegou com o seu voto no dia 02/11. Entrevistada, a filha da eleitora não conseguiu explicar por que a cédula foi enviada depois da morte da mãe. De qualquer forma, o voto da mãe foi para Trump (aliás, sempre me pergunto por que a fraude teria apenas um lado). De qualquer forma, votos de pessoas mortas são relativamente raros, e normalmente devido a erros administrativos. São incapazes de mudar resultados como o da Pennsylvania, que teve diferença de 45 mil votos.
10/11: Mortos votando na Pennsylvania – 2. Uma organização chamada Public Interest Legal Foundation entrou, em outubro, com uma ação na justiça da Pennsylvania, alegando que havia 21 mil defuntos na lista de eleitores registrados, pedindo o cancelamento desses registros. O juiz federal que julgou o caso indeferiu o pedido por falta de provas. Os apoiadores de Trump usaram esse caso para voltar a afirmar que mortos votaram na Pennsylvania.
12/11: Votos exclusivos em Biden na Georgia. Um post retuitado pelos apoiadores de Trump, incluindo seu filho Donald Trump Jr. dizia o seguinte: “Na Georgia, cédulas onde o eleitor votou APENAS no presidente: Trump: 818, Biden: 95.801”. Ou seja, muito suspeito, segundo a campanha de Trump. Estes números não estão corretos. Houve 4.992.420 votos na eleição presidencial e 4.945.792 votos na eleição para o Senado. Uma diferença de 46.628 votos. Portanto, é impossível que 95.000 votos tenham sido dados somente para Biden, sem votação para o Senado. A única coisa que esse número de 95.000 votos a mais poderia significar é que Biden recebeu esse montante a mais em relação ao candidato democrata ao Senado. Ou seja, houve eleitores que escolheram Biden e o candidato republicano ao Senado. Além do mais, é impossível ter acesso a esse nível de detalhamento da votação com os números divulgados.
12/11: Correios carimbando cédulas com data de 03/11 na Pennsylvania. Um funcionário dos correios do condado de Erie, Pennsylvania, chamado Richard Hopkins, denunciou a conversa de dois supervisores que, segundo eles, estariam falando sobre carimbar cédulas com data de 03/11, mesmo tendo chegado aos correios posteriormente. Trump chegou a chamar esse funcionário de “grande patriota”. Um levantamento do jornal local concluiu que das 129 cédulas carimbadas com a data de 03/11, apenas duas haviam sido carimbadas pela agência local dos correios. Todas as outras haviam sido carimbadas em lugares tão distantes quanto California e Washington. Além disso, em investigação posterior, o funcionário se contradisse, e admitiu que poderia ter inventado boa parte do diálogo.
13/11: Em um tuíte, Trump alega que o sistema eleitoral deletou milhões de votos a seu favor e mudou milhares de votos dele para o seu rival. Essa alegação de Trump teve origem em uma reportagem do canal conservador OANN, que alegava que 435 mil votos de Trump haviam sido mudados para Biden e 2,7 milhões de votos para Trump haviam simplesmente desaparecido nas máquinas que usavam o Sistema Dominion de votação. Esta seria a conclusão de um relatório do Edison Research, uma firma de pesquisa de consumo que coordenou a contagem de votos para os grandes canais nacionais de TV. O canal OANN aparentemente colheu essas informações do site Gateway Pundit, que cita um post de um anônimo, que por sua vez afirmou que fez essa análise com base em dados do Edison Research. O Edison Research afirmou que nunca produziu um relatório desse tipo. São vários os depoimentos contra esse tipo de afirmação, mas o que mais me convenceu foi o do chefe de operações do OSET Institute, uma entidade que se dedica à tecnologia de votação: “a única forma de chegar a essas conclusões seria uma completa auditoria forense das máquinas em nível nacional. Não há como se concluir nada em tão pouco tempo. É simplesmente impossível.”
13/11: Cédulas “corrigidas” na Pennsylvania. O caso é o seguinte: houve uma diretiva geral do comitê eleitoral de que cédulas enviadas pelo correio e que fossem achadas com erros formais ao serem abertas, poderiam ter os seus respectivos eleitores alertados, de modo a que pudessem corrigir o seu voto. Essa diretiva não foi seguida uniformemente entre todos os condados da Pennsylvania. Ou seja, em alguns condados os eleitores foram avisados e puderam votar novamente, enquanto em outros não foram avisados, e seus votos foram anulados. Os republicanos alegam que os condados que não seguiram a diretiva eram predominantemente republicanos, ao passo que os que seguiram eram predominantemente democratas. Portanto, a “correção” teria beneficiado os democratas. Ora, há exemplos de condados republicanos que seguiram a diretiva, enquanto alguns condados democratas não seguiram. De qualquer modo, permitir a “correção” de cédulas deve ter beneficiado Biden, pois os democratas usaram mais cédulas por correio do que os republicanos. Estes alegam que a “correção” é contra a lei, e entraram com um processo, que estava sendo julgado quando foi escrito este racional. De qualquer forma, o número de cédulas que foram “corrigidas” foi muito pequeno para mudar o resultado do Estado.
13/11: O supercomputador que mudou votos. Em 31/10, um blog chamado American Report afirmou, com base no relato de um denunciante chamado Dennis Montgomery, que a campanha de Biden iria usar um supercomputador chamado The Hammer, rodando um software chamado Scorecard, para virar votos a seu favor. Uma passagem na CNN na noite da apuração, em que 19.958 votos passaram de Trump para Biden na Pennsylvania, deu gás para essa teoria. Na verdade, ocorreu um erro humano na totalização pela Edison Research, que corrigiu o dado cerca de uma hora depois. Não foi um erro da junta eleitoral. No final, o condado onde ocorreu o erro apresentou vitória de Trump.
17/11: Um diretor da campanha de Biden é preso por fraude. Dallas Jones, do staff da campanha de Biden, teria sido preso, acusado de chefiar um esquema de fraude eleitoral no Texas, usando nomes de sem-teto, idosos e mortos para criar votos falsos para Biden. Ocorre que Dallas Jones não foi preso. A foto da prisão, usada nos posts, é de outra pessoa.
20/11: Urnas eleitorais recheadas de votos falsos na Philadelphia. Segundo o Buffalo Chronicle, um site operado por um consultor político pró-Trump, uma multidão liderada por Joseph “Skinny Joey” Merlino recheou várias urnas com 300 mil votos pró-Biden, em troca de uma recompensa de US$ 3 milhões. Merlino, de acordo com seu advogado, afirmou que a história é uma loucura. Mesmo Rudy Giuliani achou a história meio forçada, em uma entrevista para a Fox News. O porta-voz da comissão eleitoral da cidade disse ser ridículo achar que alguém conseguiria entrar na sede do centro de apurações com várias urnas falsas.
25/11: Máquinas Smartmatic viraram votos nas eleições. A advogada pessoal de Trump, Sidney Powell, alegou que as máquinas Smartmatic teria virado votos em favor de Biden, usando a mesma tecnologia desenvolvida para beneficiar Hugo Chávez, na Venezuela. De fato, os fundadores são venezuelanos e seu primeiro contrato foi para as eleições venezuelanas. No entanto, a Smartmatic forneceu máquinas para apenas um condado nas eleições de 2020, Los Angeles, onde Biden ganhou por 71-27, mais ou menos a mesma proporção da vitória de Hillary Clinton em 2016 no mesmo condado (72-23). Para dar sustentação à tese, Powell afirmou que as máquinas Dominion (que estão presentes em 30% das seções eleitorais nos EUA) rodam um software da Smartmatic, pois a Dominion comprou em 2010 uma outra firma chamada SVS que sucedeu a uma outra firma chamada Sequoia, que havia sido adquirida pela Smartmatic em 2005 e vendida em 2007 (ufa, haja ligação de pontos!).
03/12: O mais importante discurso de Trump. Esse discurso é importante porque elenca todas as alegações de fraudes. FactCheck.org derruba uma a uma. Nenhuma novidade em relação ao que foi visto acima, mas serve como um bom resumo da coisa toda.
Bem, é isso. Gastei todo esse tempo transcrevendo todas as acusações em atenção àqueles para os quais não basta um “argumento de autoridade”, ou mesmo um raciocínio lógico, do tipo “teoria da conspiração exige a coordenação impossível de milhares de pessoas para funcionar”. Estão aí as não-evidências de fraude.
Agora, vamos falar das eleições brasileiras.
Fraude eleitoral no Brasil: a nossa Teoria da Conspiração
“Minha campanha, eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude. E nós temos não apenas palavra, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar, porque nós precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos. Caso contrário, passível de manipulação e de fraudes.”
O presidente Jair Bolsonaro proferiu essas palavras no dia 09/03/2020 em um evento evangélico em Miami. Até o momento em que escrevo, Bolsonaro não mostrou as “provas que tenho em minhas mãos”. Ficou o dito pelo não dito. A não ser pelo fato de que a Grande Tese continua em pé: houve fraudes nas eleições de 2018 e haverá fraudes nas eleições de 2022.
O centro da polêmica está nas urnas eletrônicas que não imprimem o voto. Vimos na seção anterior que a campanha do ex-presidente Donald Trump acusou as urnas eletrônicas de “virarem votos” para o seu adversário. O curioso é que essas máquinas imprimem o voto. De forma que a impressão dos votos não foi suficiente para invalidar a Grande Tese. O mesmo ocorrerá aqui. A Grande Tese da fraude seguirá viva e inteira mesmo se as urnas imprimirem os votos.
Cá como lá, abundam vídeos e posts nas redes sociais apontando supostas fraudes nas urnas eletrônicas. Não vou aqui gastar tempo descrevendo cada uma como fiz acima. Vou apenas listá-las abaixo, com as devidas refutações do site Comprova, um checador de fatos de responsabilidade dos principais veículos de imprensa do país. Aqui, novamente: a Grande Tese da fraude envolve também a imprensa e esses institutos de verificação de boatos. Portanto, para quem acredita na Grande Tese no matter what, pode pular esta parte. Estas explicações são para aqueles que têm dúvidas sinceras.
A respeito da segurança das urnas eletrônicas, sugiro fortemente assistir aos dois vídeos a seguir (aviso de que se trata de dois vídeos gravados em um evento técnico, de modo que há muita linguagem técnica).
O primeiro é uma palestra de 40 minutos com o especialista em segurança de dados Diego Aranha, talvez o mais vocal crítico da segurança das urnas eletrônicas no Brasil e advogado do voto impresso pelas urnas eletrônicas como único meio seguro de auditoria do voto.
O segundo vídeo, um pouco mais longo (uma hora) é um debate, no mesmo evento, entre Diego Aranha e um técnico do TSE, em que este rebate ponto por ponto dos argumentos de Aranha. No final, ficam claras duas coisas: 1) É possível sim auditar a totalização dos votos (o PSDB fez isso em 2014) e 2) A única vulnerabilidade do sistema é um ataque interno, ou seja, alguém do próprio TSE introduzir um software malicioso que manipule os resultados. Hackers externos não têm acesso ao sistema. Fica então a questão: vale gastar R$ 2,5 bilhões para introduzir um sistema que, por ser mecânico, pode resultar em problemas em várias seções eleitorais para, no final, não servir para desmontar a Grande Tese da fraude, como vimos nas eleições americanas?
Minha opinião: nenhum sistema do mundo é 100% seguro. As cédulas em papel eram obviamente inseguras, e a impressão do voto não tornará o sistema 100% seguro também. A auditoria permitida pelo voto impresso é uma miragem, pois sempre um agente interno pode também manipular estes votos. Ou seja, você conferiu o seu voto no papel, mas esse papel pode ser trocado por outro no caminho da apuração. Não existe nada 100% seguro. E, como não existe nada 100% seguro, nunca será possível refutar a Grande Tese.
Abaixo, imagens de apurações parciais do TSE e do TRE Paulista da eleição da cidade de São Paulo.
A primeira apuração é do TSE, com meros 0,39% dos votos apurados. As outras apurações são do TRE Paulista, com 37,77%, 57,77% e 100% dos votos apurados.
As diferenças entre essas apurações foram as seguintes:
Covas: 32,58%/32,79%/32,81%/32,85%
Boulos: 20,33%/20,32%/20,35%/20,24%
França: 13,95%/13,65%/13,65%/13,64%
Russomanno: 10,44%/10,53%/10,49%/10,50%
Arthur do Val: 9,74%/9,73%/9,77%/9,78%
Tatto: 8,79%/8,66%/8,58%/8,65%.
Observe como os números com apenas 0,39% das urnas apuradas praticamente se mantiveram ao longo da votação. Para justificar essa incrível coincidência, seria necessário que a apuração feita nas primeiras 0,39% urnas tenha representado uma amostragem absolutamente fiel do perfil da votação da cidade. Qual a probabilidade de isso acontecer?
Quanto maior a uniformidade da votação na cidade, maior a probabilidade de as primeiras urnas indicarem a tendência geral da eleição. Fiz o seguinte exercício: calculei a média e o desvio-padrão das votações nas diversas zonas eleitorais da cidade de João Doria em 2016 e de Bruno Covas em 2020. Os resultados foram os seguintes:
João Doria: média 53,85%, desvio-padrão 11,49%
Bruno Covas: média 33,05%, desvio-padrão 4,41%
Observe como o desvio-padrão da votação de Covas é muito menor do que o desvio-padrão da votação de Doria. Quanto menor o desvio-padrão, mais homogênea tende a ser a votação entre as diversas zonas eleitorais da cidade. Não por outro motivo, Covas ganhou em todas as zonas eleitorais da cidade, coisa que nem Doria havia conseguido, mesmo tendo ganhado a eleição no primeiro turno.
Mas esta é apenas uma hipótese. Resolvi testá-la utilizando os dados de votação das 58 zonas eleitorais da capital. Montei uma planilha Excel (quem quiser, pode me pedir no Messenger), em que sorteio a chegada dos votos para totalização. As 58 zonas eleitorais são sorteadas 20 vezes cada uma, totalizando 1.160 sorteios. Para cada vez que uma zona eleitoral é sorteada, 1/20 dos votos recebidos por Covas naquela zona são contabilizados. A cada 5 sorteios, temos um total de 100%/1.160*5 = 0,43% dos votos apurados. Vamos acumulando até chegar nos 100%.
Fiz 100 sorteios. Ou seja, simulei 100 possíveis caminhos para a apuração. Obviamente, quanto mais urnas são apuradas, mais o resultado chega próximo dos 32,85% obtidos por Covas, até chegar neste número quando se completa 100% das urnas apuradas.
Pois bem. O que nos interessa é o quinto número, aquele obtido com 0,43% das urnas apuradas. Das 100 simulações, 5 ficaram entre 32,55% e 33,15% (32,85%+/- 0,30%). Ou seja, em 5% das simulações, o número apontado por 0,43% das urnas apuradas já antecipa o resultado final com uma margem bastante aceitável.
5% é um número muito baixo. Mas não é zero. Ou seja, é possível sim que, logo no primeira divulgação, com apenas 0,39% das urnas apuradas, o número já estivesse próximo do resultado final, pelo menos para o resultado de Covas. Teríamos que simular o mesmo para os outros candidatos de maneira conjunta, mas aí a planilha ficaria muito pesada. Além disso, o mesmo fenômeno que ocorre com Covas, ocorre também com os outros candidatos: a votação é relativamente homogênea nas zonas eleitorais (desvio-padrão baixo) para todos eles (está na planilha também).
Para 37,77% e 57,77% das urnas apuradas, a simulação retornou, respectivamente, 61% e 78% de resultados dentro do intervalo especificado. Ou seja, a probabilidade de que os resultados já fossem próximos do real com 37,77% e 57,77% das urnas apuradas já é significativamente maior.
Não estamos, portanto, falando de um fenômeno estatístico a lá Mega-Sena. Existe uma probabilidade material, ainda que baixa, de que tenha acontecido exatamente isso: os primeiros números apontando o resultado final.
Sendo assim, mesmo tendo sido um fenômeno que chamou a atenção, o fato de não ter havido alteração nos números ao longo da apuração não é, em si, prova de nada. Na verdade, pode ser explicado por uma certa homogeneidade da votação na cidade, homogeneidade muito maior do que em eleições passadas.
O papelão que o TSE protagonizou ontem infelizmente dá margem a teorias da conspiração. Esta da “não mudança” na apuração da cidade de São Paulo é apenas mais um motivo de desconfiança, gerado pelo contexto de incompetência do árbitro das eleições. Podiam passar sem essa.