O que são “motoristas irregulares”? São aqueles que não têm a autorização de alguma autoridade para circular. Não têm o chamado “registro”.
O Uber, quando começou, foi acusado pelas associações de taxistas de ser “irregular”. Os motoristas da plataforma não tinham o “registro” requerido para carregar passageiros. A lógica do mercado foi soberana, neste caso. Em um mercado onde a oferta é restrita e os preços são regulados, falta o produto. Era esse o mercado de táxis no Brasil antes do advento do Uber. Não à toa, um “registro” de taxista chegava a valer algumas centenas de milhares de reais em São Paulo. Este era o valor para a “reserva de mercado”.
O Uber chegou para acabar com essa lógica, aumentando a oferta de motoristas. A única forma de fazê-lo era empregando motoristas “sem registro”. A bem da verdade, essa é a situação até hoje. Um motorista do Uber, para se cadastrar na plataforma, precisa apenas ter um carro em determinadas condições. Não é necessário um “registro” junto às autoridades.
Agora, os usuários do Uber vêm enfrentando o mesmo problema que os usuários de táxis enfrentaram no passado: escassez de oferta. Com as margens apertadas pelo aumento do combustível, os motoristas têm “selecionado” as viagens que lhe interessam, quando não dispensado totalmente a intermediação da plataforma, como é o caso dos motoristas “irregulares” de Guarulhos. Estes motoristas estão apenas atendendo a uma demanda reprimida, que não é atendida pelos táxis ou pelo Uber.
A reportagem não cita reclamação de um usuário sequer, a não ser um em um site de reclamações, que diz que pagou R$600 em uma corrida, mas não deixa claro quais foram as circunstâncias. Quem se coloca contra são os suspeitos de sempre, os taxistas, que veem ameaçado o seu monopólio em Guarulhos, parcialmente reconquistado em função da deterioração do Uber.
Chamar de “irregulares” esses motoristas é prestar homenagem ao Brasil cartorial, que demanda o carimbo da “otoridade” para qualquer atividade econômica. Os usuários que pegam carona com um desses motoristas o fazem de caso pensado. Estão dispostos a eventualmente pagar mais para ter o conforto de chegar mais cedo em casa. Quem não quer pagar a mais, pode continuar aguardando um táxi (que é caro também) ou tentar a sorte no Uber. Existe uma demanda, por isso a oferta está lá. Mas, pelo visto, no Brasil, continua sendo pecado atender à demanda do consumidor.
As ações trabalhistas contra os aplicativos de transporte e entrega explodiram em 2021, em uma tendência que já vinha crescendo desde 2019. E, com o crescimento da chamada “economia gig”, esses processos devem continuar aumentando nos próximo anos.
E o que querem esses trabalhadores? Basicamente os mesmos direitos trabalhistas que têm aqueles registrados em carteira: férias, 13o, FGTS, contribuição para o INSS. A ideia é que plataformas como Uber, Rappi ou iFood são verdadeiros empregadores, e seus motoristas e entregadores seriam nada mais do que funcionários.
Há muita discussão jurídica a respeito da natureza desses trabalhos e não é minha intenção entrar nessa seara, mesmo porque não sou operador do direito e meu conhecimento nesse tema é limitado. Vou analisar a coisa do ponto de vista econômico. Claro que tenho meu viés, mas estou convencido de que é o ponto de vista que prevalece no final, pois não há lei que consiga modificar, de maneira permanente, uma realidade econômica.
O ponto principal dessa discussão é o que chamamos de “total cash”. O que importa, do ponto de vista econômico para ambas as partes, é a renda total recebida pelo trabalhador. Esta renda deve ser mensurada em um espaço de tempo compatível com o benefício. Por exemplo, o FGTS e o INSS representam, respectivamente, 8% e 20% da renda mensal, enquanto o 13o e as férias representam, respectivamente, 1/12 e (1+1/3)/12 da renda anual. Somando tudo, temos um custo adicional de 47% sobre o salário nominal do trabalhador. A questão, portanto, se resume a quem vai arcar com esse custo.
O cálculo econômico das empresas é relativamente simples: qual o custo da mão de obra que viabiliza o negócio? Ou, de outra forma, qual o retorno potencial sobre o capital investido que viabiliza o empreendimento? Quanto maior o custo da mão de obra, menor será o retorno potencial do negócio, o que pode, no limite, inviabilizar o investimento. E não há lei que modifique essa realidade econômica.
Vamos a um exemplo prático: o 13o salário. Getúlio Vargas é até hoje saudado por esse grande benefício aos trabalhadores brasileiros. Como se, por força de lei, as empresas passaram a pagar 1/12 a mais de salário para os seus funcionários. Bem no começo deve ter sido assim mesmo. Mas logo as empresas adaptaram a sua folha de pagamento e, ao invés de pagar o mesmo total cash em 12 parcelas, passaram a pagar em 13 vezes. O bolo é o mesmo, foi somente a quantidade de fatias que aumentou. O mesmo vale para todos os outros “benefícios” concedidos por lei: as empresas não deixam de ter o seu próprio cálculo econômico, e adaptam o que podem pagar aos seus funcionários ao determinado pela lei. No final do dia, os “benefícios” não passam de uma ilusão de ótica.
Nesse sentido, é interessante observar a forma como os motoristas e entregadores enxergam a sua própria remuneração. Digamos, por hipótese, que de ontem para hoje as plataformas concedessem um aumento de 47% na remuneração desses trabalhadores, o equivalente aos principais direitos trabalhistas. Com o tempo (e não muito tempo) esse dinheiro adicional seria incorporado ao orçamento desses trabalhadores e não demoraria muito para que voltassem a pedir seus “direitos trabalhistas”. Psicologicamente, as pessoas tendem a preferir “benefícios” do que cash, ainda que, financeiramente, sejam coisas equivalentes. Na verdade, cash é melhor, pois permite maior liberdade de escolha. Mas algum estranho mecanismo psicológico nos faz preferir os pequenos “presentinhos”.
Além disso, há a questão da disciplina. Em tese, todos os trabalhadores poderiam construir seus próprios “benefícios” a partir de seus próprios salários. Por exemplo, para ter um 13o salário, bastaria separar 1/12 do salário mensal e, no final do ano, haveria um “13o salário”. Ou se poderia reservar 8% do salário como um “seguro desemprego”, que faria o papel do FGTS. E assim por diante. Mas isso exigiria uma disciplina que poucos têm. Os tais “benefícios” ajudam a manter o dinheiro longe das mãos dos trabalhadores, o que se reverte em seu próprio benefício futuro.
De qualquer forma, não endereçamos o problema principal aqui: quem vai arcar com os 47% a mais que significariam o pagamento dos principais benefícios trabalhistas? Talvez um Uber consiga, mas estamos falando de centenas de plataformas com os mais diversos tipos de serviços. Todas elas teriam condições de arcar com esse custo adicional? Ou aconteceria o mesmo que ocorreu com o 13o salário, ou seja, a remuneração nominal diminui para que o total cash permaneça o mesmo?
Não haverá uma solução única: algumas plataformas conseguirão repassar o custo adicional para os consumidores, outras diminuirão a remuneração dos trabalhadores e outras simplesmente fecharão as portas. Uma coisa, no entanto, é certa: a lei positiva não tem o condão de mudar uma realidade econômica.
PS.: para uma parte significativa das empresas e trabalhadores brasileiros, essa discussão não faz o mínimo sentido. Com a baixa produtividade geral do trabalhador, as empresas simplesmente não conseguem colocar na mão do trabalhador uma quantidade de dinheiro mínima para subsistência E pagar os benefícios trabalhistas. Resultado: há um pacto pela informalidade, única forma de manter esses trabalhadores empregados. Como disse, a lei não modifica uma realidade econômica.
Se existe um mercado de trabalho perto do que poderíamos chamar de perfeito é o de motoristas de aplicativos. Nesse mercado, patrões (passageiros) e empregados (motoristas) se encontram através de uma plataforma tecnológica (Uber). As curvas de demanda (passageiros) e oferta (motoristas) se encontram praticamente sem atritos, através de um algoritmo de otimização que forma o preço de equilíbrio em cada lugar e a cada hora.A reportagem do NYT afirma que o Uber tem aumentado os preços. Errado. O responsável pela elevação dos preços foi um aumento repentino da demanda em relação à oferta. A demanda tem aumentado nos EUA na medida em que as pessoas vacinadas se sentem mais seguras para sair. Por que a oferta não acompanhou?
A matéria aponta como motivo o receio de alguns motoristas com relação à pandemia. Meio estranho, dado ser este um ganha-pão, e ficar em casa muitas vezes significa passar fome. Há uma outra razão, omitida pela reportagem: o auxílio-emergencial mais generoso do mundo, pago pelo governo americano, no valor de 300 dólares por semana. Aí fica claro: entre arriscar-se a ficar doente e permanecer em casa recebendo sem trabalhar, a decisão parece um no-brain, como dizem os americanos.
Este é um problema que vem afetando empresas no país inteiro, principalmente naqueles serviços de menor remuneração. Em alguns casos, o empresário consegue repassar aos preços, em outros, diminui a sua margem de lucro ou trabalha no prejuízo. O caso do Uber é especialmente fascinante: como o consumidor paga o salário do empregado diretamente a ele, ficando o Uber com um percentual, esta dinâmica de quem leva o prejuízo para casa fica mais evidente.
Em qualquer empresa, há uma disputa sobre a participação no valor produzido pelo negócio. São quatro os contendores: acionistas, empregados, consumidores e fornecedores. Para simplificar, vou deixar os fornecedores de lado nessa análise, assumindo que se trata de um custo fixo. A briga entre esses contendores se dá em torno do preço do produto ou serviço e dos salários. Há um verdadeiro cabo de guerra para puxar preços e salários na direção dos interesses envolvidos: consumidores querem preços os mais baixos possíveis, acionistas querem preços os mais altos possíveis; empregados querem salários os mais altos possíveis, acionistas querem salários os mais baixos possíveis. Em mercados perfeitos, os preços dos produtos e os salários dos empregados se encontram nas curvas de demanda e oferta. Na verdade, nos imperfeitos também, mas os preços e salários, nesse caso, não maximizam a criação de valor. Mas isso é uma outra história, que não vem ao caso aqui.
Os consumidores normalmente compram o produto da empresa, e a empresa paga o salário para os empregados. No caso do Uber, o consumidor paga o salário diretamente para o empregado da empresa, e este repassa uma parte dessa “salário” para a empresa. É natural que, nesse arranjo, fique mais difícil identificar a figura do “acionista”: a plataforma é apenas um intermediário entre o empregado e o consumidor. Na verdade, o Uber quer nos fazer crer que o acionista é o motorista, não existe ninguém no meio. Mas existe. Caso contrário, o Uber seria dispensável, e não é. Por isso, algumas regiões (Califórnia, por exemplo) entendem que é o Uber o empregador, não o usuário. Mas essa é uma discussão longa, que envolve aspectos como dedicação exclusiva e flexibilidade de horário, e que não é o foco dessa discussão.
Pois bem: o Uber poderia, como acionista, diminuir seu lucro para manter os preços e pagar mais para os motoristas saírem de casa. Ocorre que o Uber não dá lucro desde a sua fundação, e gerou prejuízo de US$ 8,5 bilhões em 2019 (2020 foi um ano atípico). Então, o acionista, neste caso, já está subsidiando a corrida do usuário. Os subsídios deveriam ser maiores?
A questão de fundo é qual o valor do produto que atraia um número de usuários que mantenha o negócio em pé. Até o momento, o acionista do Uber está apostando na criação de um mercado que antes não existia. Quantos aqui passaram a “andar de Uber” e antes raramente andavam de taxi? Eu me incluo nessa. Foi criado um mercado. A aposta é que, no futuro, esse mercado será tão grande, as pessoas estarão tão acostumadas, que toparão pagar preços mais altos que viabilizem a existência da plataforma. Sim, porque os acionistas não têm paciência infinita para prejuízos.
O que está ocorrendo no momento é que a curva de oferta de motoristas está sendo mantida artificialmente baixa pelo auxílio emergencial do governo. A afirmação da especialista, de que é preciso aumentar os salários para atrair trabalhadores é só um truísmo que cheira a sindicalismo barato e que não esclarece o essencial: por que há falta de trabalhadores?
Trata-se, obviamente, de um arranjo que não se sustenta no tempo. O governo não consegue pagar 300 dólares por semana para todos os trabalhadores ficarem em casa ad aeternum. Mesmo porque, são esses trabalhadores que gerarão a atividade econômica que dará origem aos impostos que servirão para pagar esse auxílio. Lembrando que a dívida de hoje é o imposto de amanhã.
Seria muito bom que o governo pudesse pagar um salário mínimo para todos os trabalhadores, e as empresas fossem obrigadas a aumentar os salários para atrair esses trabalhadores. A renda de todo mundo iria subir, todos ficaríamos mais ricos. O truque, no entanto, obviamente não se sustenta: o governo não cria renda, apenas transfere renda de uns agentes para outros, seja hoje (impostos), seja no futuro (dívida). No fim, a inflação come o bolo de todo mundo, principalmente dos trabalhadores que foram “ajudados” pelo governo.
Bater no Boulos não tem graça, eu sei. O marxismo do sujeito é tão de almanaque, que qualquer coisa que ele diz parece vindo de um viajante do tempo que acaba de chegar do fim do século XIX.
Mas não pude resistir a comentar a sua fala em apoio aos entregadores de aplicativos. Boulos descobriu um filão, a luta dos moto e cicloboys por remuneração maior. Sua forma de entender o problema, porem, é típica de quem não entendeu como se cria riqueza ao longo do tempo. Note que não falei “de quem não entendeu o capitalismo”, mas sim algo mais amplo, que supera uma determinada forma de organizar a produção.
Boulos não se conforma com o fato de que as empresas de tecnologia fiquem com a parte do leão “só por oferecerem uma tecnologia”, enquanto os donos dos braços, pernas, motos, bikes e carros fiquem com as migalhas do negócio de entregas.
Ocorre que essa é a regra, não a exceção. A tecnologia, em qualquer lugar e tempo, é o que mais agrega valor, é o que mais gera riqueza. Quem domina a tecnologia, é mais rico. Simples assim.
Sempre uso esse exemplo, mas como tem muita gente nova por aqui, vou usar de novo, com a licença dos leitores mais antigos. Somos um dos maiores produtores de café do mundo, com muito orgulho. No entanto, quem fica com a parte do leão dos lucros dessa indústria? A Nestlé, com o seu Nespresso e outras tecnologias. A Suíça não produz um grãozinho de café sequer, mas fica com o grosso dos lucros da indústria. Faz sentido? Todo sentido. Ou alguém toma café diretamente do grão?
Ao desenvolver uma tecnologia que agrega valor para o usuário, a Nestlé multiplica em dezenas de vezes o potencial do grão do café. E se apropria dessas dezenas de vezes, sobrando as migalhas para os produtores de café.
É sempre assim. E como se cria alta tecnologia comercializável? Porque também tem isso: não basta ser um professor Pardal supercriativo, inventor de mil e uma tecnologias inovadoras. É necessário criar uma empresa que faça essa tecnologia chegar aos usuários por um preço razoável. Isso requer não só o gênio criativo, mas também, e principalmente, a capacidade de captar o capital necessário para o desenvolvimento de uma forma de fazer chegar a tecnologia para os consumidores. Que são, afinal, os que darão o veredito final sobre o valor agregado daquela tecnologia.
A nova fronteira tecnológica está na Internet móvel. Ao conectar tudo e todos em qualquer lugar, a Internet móvel abre campos insuspeitados de ganhos de produtividade. E agregar valor nada mais é do que fazer mais com menos, entregando o mesmo produto por preços menores ou produtos novos por preços acessíveis. Não é à toa que as empresas mais valiosas do mundo hoje são as que exploram essa tecnologia.
Só que, para chegar lá, existe um caminho tortuoso e incerto de erros e acertos. Para cada Facebook que dá certo, milhares de outras empresas que tentaram caminhos alternativos fracassaram. E é preciso capital intensivo para testar todos esses caminhos. O caminho até o Santo Graal da tecnologia é coalhada de cadáveres.
Voltemos à questão das plataformas de entrega. Imaginemos o mundo antes dessa tecnologia. Cada entregador deveria procurar um emprego em milhares de pequenos comércios que tivessem tomado a decisão de manter frota própria, ou em centenas de pequenas empresas de entregas. Os comércios tinham que manter frotas próprias ou contar com as pequenas empresas de entrega. E os usuários deveriam contratar essas pequenas empresas de entrega ou comprar de pequenos comércios com frotas próprias. Um esquema claramente improdutivo, se comparado aos aplicativos.
Hoje o usuário tem, na palma da mão, acesso a milhares de comércios e milhares de entregadores. E os comércios não estão mais na mão das pequenas e ineficientes pequenas empresas de entregas. E, mais importante que isso, têm condições de atingir públicos muito maiores, que saberão sobre a existência de seu pequeno comércio através do aplicativo. Aliás, esse é o grande pulo do gato: publicidade. A entrega é quase mero detalhe.
Ter braços, pernas, carros, bikes e motos é como ter o grão do café. O valor agregado é muito baixo, perto do que fazem os aplicativos de entrega. Por isso, moto e cicloboys recebem as migalhas, assim como os plantadores de café. Boulos nunca vai entender isso.
Greve é um direito inalienável de qualquer trabalhador. Mas, antes de tudo, trata-se de um fenômeno econômico. E, como qualquer fenômeno econômico, obedece a certas leis. O que nos permite, com algum grau de precisão, prever o seu resultado.
Qualquer greve envolve risco para ambas as partes do conflito: os patrões podem perder produção e faturamento, os empregados podem perder salário e até o emprego. A deflagração de uma greve ocorre quando os trabalhadores avaliam que o patrão tem mais a perder do que eles próprios.
O risco do patrão é tanto maior quanto mais difícil for a reposição desses trabalhadores em greve. Greves no setor metalúrgico, por exemplo, são uma dor de cabeça para os patrões, pois é difícil repor funcionários treinados durante anos em suas funções. Além disso, custa muito caro demitir um funcionário desses. Por isso, quanto mais especializado for o empregado, maior o risco do patrão durante uma greve. Dizemos, neste caso, que a barreira de entrada nesse mercado de trabalho é muito alta.
Com todo respeito aos motoboys, em uma atividade econômica em que qualquer um pode atuar alugando uma bicicleta, a barreira de entrada é muito baixa. O que significa que o risco da greve é muito maior para o empregado do que para o patrão. (Aqui estou usando a terminologia empregado-patrão em uma relação muito mais difusa do que a relação trabalhista clássica. Mas serve para o raciocínio). Em outras palavras: quanto tempo os motoboys podem ficar sem receber? Qual a chance de que outros motoboys se aproveitem da paralisação para entrar no mercado?
Uma greve explicita um conflito distributivo: o capital humano disputa com o capitalista, dono do capital físico, a renda gerada pela produção. Este conflito tem três possíveis resoluções: i) o capitalista mantém a sua renda, ii) o capitalista cede parte de sua renda para os empregados ou iii) a renda aumenta por meio do aumento do preço do produto. Neste caso, o consumidor é que transfere a sua renda para os empregados. A resolução desse conflito distributivo não depende da boa ou da má vontade dos agentes envolvidos. A realidade econômica se impõe. Se o patrão considerar que a renda que está auferindo é insuficiente para remunerar o risco do seu capital, ele fecha o negócio. Se os empregados considerarem que a renda que estão recebendo é insuficiente e conseguirem se colocar em outras empresas, o negócio fecha. Se o consumidor deixar de comprar o produto pelo novo preço, é o fim do negócio. Qualquer empreendimento de sucesso é o resultado de um tênue equilíbrio entre esses três agentes.
No caso dos motoboys, estes claramente estão de olho na renda do patrão. No caso, os aplicativos. A julgar pelos resultados da única companhia de capital aberto do ramo, o Uber, o capitalista ainda está fazendo prejuízo com o negócio. De modo que a margem para aumentar a renda dos empregados parece baixa. Poderia se tentar o aumento do preço do produto. Resta saber se o consumidor concorda com isso.
Aliás, por falar em consumidor, há muitos que se condoem das condições de trabalho dos motoboys e concordam com suas reivindicações. Neste caso, é fácil resolver: basta abrir mão individualmente de sua renda e pagar uma gorda caixinha para os motoboys que entregam os produtos em sua casa. Aliás, nessa relação, o verdadeiro patrão é o consumidor. O aplicativo é apenas uma tecnologia que une patrões e empregados.
Posso estar enganado, mas acho que é a primeira vez que o TST julga essa questão.
Para não me acusarem de “insensibilidade” (acontece frequentemente aqui) não vou comemorar efusivamente. Obviamente gostaria que todos os motoristas do Uber, assim como todos os trabalhadores do Brasil, fossem registrados em carteira, tendo assegurados todos os seus “direitos trabalhistas”.
Mas também é óbvio que, se isso ocorresse, o preço do Uber subiria em pelo menos 50%, o que afastaria uma parcela significativa de seus clientes, o que, por sua vez, desempregaria uma parcela relevante dos motoristas. A plataforma do Uber replicaria o Brasil: uma minoria com os “direitos garantidos” e uma maioria desempregada.
Mas a ideia do Uber vai além dessa questão, digamos, mais pragmática. A plataforma é, conceitualmente falando, apenas uma maneira inteligente de ligar passageiros a motoristas. Três exemplos deixarão claro porque é absurdo considerar essa relação como empregador-empregado:
1) A prefeitura de São Paulo lançou um aplicativo que permite chamar táxis na cidade. Seriam esses motoristas funcionários públicos da Prefeitura por se cadastrarem no aplicativo?
2) São comuns as cooperativas de Taxi, que se utilizavam no passado de rádio e, mais modernamente, de aplicativos, para conectar motoristas e passageiros. Seriam estes taxistas empregados das cooperativas?
3) Existe um aplicativo chamado GerNinjas, que conecta profissionais dos mais diversos ramos com potenciais usuários de serviços. A contratação é feita diretamente com o prestador de serviço, não há intermediação da GetNinjas (terceirização). Seriam esses profissionais empregados do aplicativo?
Enfim, acho que ficou claro. O curioso nisso tudo é que quem defende a existência dessa “relação trabalhista” normalmente é a esquerda, que, como sabemos, é a defensora número 1 dos trabalhadores. Mas Marx defendia que os proletários assumissem os meios de produção para, assim, se apropriarem da mais-valia que era usurpada pelo capitalista. Ora, no esquema do Uber, o trabalhador possui o seu “meio de produção” que é o carro, e extrai dele a sua mais-valia. Não há patrão. Quer coisa mais marxista?
Eu normalmente sou um cara ligado nesse lance de tecnologia. Sai um app novo, alguma coisa que eu acho interessante, vou lá ver do que se trata.
E não é que deixei passar batido um app revolucionário lançado pela prefeitura de São Paulo? Trata-se do SPTaxi, um aplicativo que promete conectar os táxis da cidade aos passageiros. Mais ou menos o que a 99 fez sete anos atrás. Foi lançado, vejam só, em abril do ano passado, e só agora fiquei sabendo que esse troço existe.
Fui verificar o que eu estava perdendo. Baixei o aplicativo. Pra começo de conversa, você não cadastra o cartão de crédito. Por um motivo simples: o pagamento deve ser feito diretamente ao motorista, aquele que nunca tem uma máquina de cartão de crédito funcionando ou nunca tem troco. O design e a usabilidade são dignos de recém formados em cursos de design de aplicativos.
Mas pra não dizer que tudo é defeito, o app permite escolher o desconto que o usuário vai querer sobre o valor cheio da corrida, de zero a 40%. Obviamente, a chance de um motorista aceitar a sua corrida é inversamente proporcional ao tamanho do desconto. É a tarifa dinâmica tupiniquim.
Quando soube que existia um app estatal de táxis, não pude deixar de pensar que a prefeitura de São Paulo já resolveu todos os problemas da cidade e agora resolveu concorrer com o Uber e a 99.
Obviamente, esse aplicativo foi desenvolvido como uma resposta à pressão dos taxistas. Como isso ajuda os taxistas, pra mim é um mistério. Mas fica a questão: se os motoristas do Uber podem ser considerados funcionários da empresa, esse aplicativo transforma os taxistas em funcionários públicos?
Tropecei com esse artigo (A uberização de nossas vidas) da colunista dO Globo, Ruth de Aquino. Resolvi escrever porque é o típico exemplo de mistura de pensamento mágico com ojeriza ao capitalismo de nossa elite bem-pensante.
Ruth escreve sobre um recém-lançado filme do diretor britânico Ken Loach, que costuma dirigir filmes com “críticas sociais”. Ruth assistiu ao filme em Paris, bien sûr.
O filme é sobre o último flagelo que se abateu sobre a humanidade: a “precarização” do mercado de trabalho. As críticas são as mesmas de sempre: por debaixo da ilusão da “vida sem patrão”, existe muita frustração e trabalho insano que destrói vidas. E, como sabemos, vidas humanas são muito importantes.
O foco está na vida dos entregadores, explorados pelas grandes empresas e aplicativos de entregas. O que eu realmente acho curioso é que entregadores sempre existiram, mesmo antes do surgimento da Amazon ou do iFood. Lembro de pedir pizza por telefone 25 anos atrás. Esses entregadores eram tão “explorados” quanto os atuais: ganhavam o seu suado dinheiro na base do “quanto mais entregas você faz, mais dinheiro você ganha”. Duvido que os restaurantes contratassem esse pessoal com carteira assinada. Mas nada se falava a respeito.
A situação dos pobres entregadores só chamou a atenção quando alguém teve a brilhante ideia de explorar a ineficiência gritante desse mercado, e ganhar bilhões com isso. A vida dos entregadores não mudou uma vírgula, mas agora alguém do Vale do Silício está fazendo fortuna com isso. Isso é que não pode. Isso é que não dá, meus amigos!
Mesma coisa com os taxistas. A maioria, pobres motoristas explorados pelos donos de frotas. Mas isso não tocava os espíritos sensíveis. Foi só aparecer o Uber, o belzebu do capitalismo selvagem, e todos os amantes da humanidade se condoem da situação dos explorados.
Ruth, e os outros arquitetos da felicidade humana, apenas na superfície sonham com um mundo onde o trabalho não é “precarizado”. No fundo, eles sonham mesmo é com um mundo onde alguns não ficam “ultraricos” (palavras dela) com a “exploração” do trabalho alheio.
Obviamente, todos gostaríamos que todos tivessem empregos bons e seguros e que pagassem bem. Mas, todos também queremos que nossas pizzas sejam entregues no menor tempo possível pelo menor preço possível. E, de preferência, ao toque de um botão. Uma coisa não é compatível com a outra.
O motorista me contou (eu não sabia) que a Câmara de Vereadores de São Paulo está discutindo um projeto para limitar o número de motoristas de aplicativos na cidade.
Surpreendentemente, ele é a favor do projeto. Segundo ele, existem hoje 300 mil cadastrados no sistema, mas somente 130 mil são “Uber full time”, o resto dirige como um bico ou complemento de renda. Ele acredita que, limitando aos 130 mil “profissionais”, o serviço para o usuário iria melhorar, seria um “ganha-ganha”.
Tentei argumentar que, limitando o número de motoristas, poderia haver falta do serviço justamente nos momentos de pico, como saída de shows ou horário de rush. Ele tentou me convencer que não, pois os motoristas “profissionais” dirigiriam mais horas nestes casos.
E qual seria o critério de seleção? Simples: seria pela nota e pela taxa de cancelamentos. Aí argumentei se o próprio aplicativo já não faz essa peneira, se precisaria de uma lei. No que ele retrucou: o aplicativo não faz isso, precisa de uma lei.
O Uber veio para acabar com o cartório dos táxis e revolucionou o transporte público nas grandes cidades. Agora, a prefeitura vai criar o cartório dos Ubers. Afinal, todo brasileiro quer um cartório pra chamar de seu.
A Califórnia acaba de aprovar uma lei que equipara os motoristas de aplicativos a empregados das empresas que operam os aplicativos.
Quais serão os prováveis efeitos desta lei?
1. Aumento de custos, que poderão ou não ser repassados para o consumidor. Nos EUA, estima-se que este aumento seria da ordem de 20% a 30%. Hoje, o Uber dá prejuízo. Aumentar os seus custos só deixará a empresa mais distante do lucro, que é a única garantia de perenidade do serviço. Por outro lado, tentar repassar o custo certamente diminuirá a demanda, o que pode também aumentar o prejuízo.
2. Menor flexibilidade para os motoristas. Como patrão, o Uber poderia determinar os horários em que os motoristas devem trabalhar. Hoje, os motoristas determinam seus próprios horários.
3. Menos oportunidades para motoristas “eventuais”. Cansei de pegar motorista de Uber que dirige “de vez em quando”, “nas horas vagas”. Este tipo de “empregado” não será mais interessante para o Uber, pois seu custo fixo será alto.
4. O item 3 acima levará a uma diminuição da oferta de Ubers.
No mínimo, esta nova legislação torna o serviço mais caro. No limite, pode inviabilizar o negócio. Voltaríamos aos táxis, caros e ineficientes. E sem aplicativo, pois o negócio de aplicativo terá se tornado inviável. Voltaríamos a chamar táxis fazendo sinal na rua.
Não se trata de “tomar partido” da empresa contra os seus “funcionários”. Existe uma realidade econômica que se impõe. Seria ótimo se fosse possível pagar direitos trabalhistas para os motoristas. Mas desconfio que não seja.
Os legisladores da Califórnia devem estar satisfeitos consigo mesmos por terem aumentado a rede de proteção dos motoristas. No entanto, o que provavelmente fizeram foi acabar com esses empregos. Não me admiraria se o Uber descontinuasse seus serviços na Califórnia em algum momento no futuro.
E no Brasil? Bem, os custos trabalhistas nos EUA são bem mais limitados. Aqui, um empregado registrado custa 100% do seu salário. Obviamente, o Uber se inviabilizaria no Brasil como negócio se uma legislação semelhante fosse aprovada.