A Fox News entrou em acordo com a Dominion, fabricante de urnas eletrônicas, e vai pagar uma indenização por difamação de 787 milhões de dólares. Sim, é isso mesmo que você leu: quase 1 bilhão de dólares. Isso porque a pedida da Dominion era de US$ 1,6 bilhão, mas Fox e Dominion chegaram a um acordo antes de iniciar a sessão do júri.
Para quem não se lembra, a Dominion foi acusada de manipular os resultados das eleições americanas em 2020. A história rocambolesca envolvia, inclusive, conexões com a Venezuela chavista. Enfim, era daquelas teorias da conspiração clássicas, em que “pontos suspeitos” eram ligados aleatoriamente para construir a tese desejada. A empresa foi alvo de várias reportagens com esse teor pela Fox News, que repercutia as teorias de Donald Trump e seus aliados, os quais, por sinal, também são objeto de processo de difamação por parte da Dominion.
No final do dia, teorias da conspiração não sobrevivem ao escrutínio da vida real.
Essa eleição está me fazendo lembrar do filme Carrie, a Estranha. Depois do banho de sangue que é o filme, o final parece calmo, até idílico, quando, de repente, a personagem central ressurge, dando um dos sustos mais assustadores do cinema. Por aqui, as eleições acabaram, Bolsonaro autorizou a transição, tudo parecia correr dentro dos conformes, quando, de repente, teorias de fraudes ressurgem para assombrar o cenário político.
A teoria da fraude foi levantada por um estudo de um argentino amigo dos Bolsonaros, que elaborou um extenso material para provar que os resultados das urnas anteriores a 2020 têm resultados consistentemente a favor de Lula se comparadas com as urnas de 2020. O estudo, na superfície, tem uma aparência bastante técnica, inclusive com o cálculo do p-value de uma regressão dos resultados das urnas contra o seu modelo (2020 ou anterior), concluindo ser virtualmente impossível que as diferenças encontradas sejam aleatórias. Ou seja, as urnas anteriores a 2020, supostamente não auditadas, teriam sido manipuladas para dar a vitória ao candidato 13.
O problema é que o argentino calcula médias e faz regressões considerando que as urnas foram distribuídas de maneira aleatória pelo país. O problema é que não foram! Por algum motivo logístico, as urnas de modelo mais recente foram distribuídas para a capital e adjacências. E, no Nordeste (foco principal do trabalho), as capitais votaram mais em Bolsonaro do que em Lula em relação ao interior, levando a uma correlação espúria entre modelo de urna e resultado da votação.
Vejamos o caso de Alagoas, por exemplo. Nesse estado, apenas 15 cidades, de 165, receberam urnas 2020. Já por este número pequeno de cidades já dá para perceber que qualquer estudo estatístico tem sérias limitações. Mas, sigamos. As cidades que receberam essas urnas foram a capital, Maceió, e outras 14 que estão em um raio de, no máximo, 60 km da capital: Jequiá da Praia, Atalaia, Barra de São Miguel, Capela, Coqueiro Seco, Marechal Deodoro, Pilar, Roteiro, Santa Luzia do Norte, São Miguel dos Campos, Satuba e Rio Largo. Dessas 15 cidades, Bolsonaro ganhou em 5 e teve votação acima da média alagoana em outras 5. A inclusão de Maceió na regressão, onde Bolsonaro teve 57,18% dos votos, e que representa 40% das seções eleitorais do estado, por si só já distorce a estatística, dado que a cidade contou com 100% de urnas 2020.
Mas o autor do estudo, supostamente, quis tirar o efeito “capital”, computando os votos somente das cidades com menos de 50.000 eleitores. No caso, somente Maceió e Rio Largo ficaram de fora. O problema é que esse corte não resolve nada, dado que ainda temos o problema geográfico. Ou seja, a região deu mais votos a Bolsonaro, na média, em relação ao restante do estado, e isso acontece também, em média, nos outros municípios limítrofes a Maceió, que são pequenos. Ao fazer o cálculo para “cidades com menos de 50.000 eleitores”, o autor quer passar a impressão de que isso vale para TODO o estado, o que não é verdade, pois somente os municípios listados acima receberam as urnas 2020.
Uma outra forma de ver o problema é comparar a votação nesses municípios em 2022 e 2018. Na tabela abaixo, podemos observar que, grosso modo, o padrão de votação por município se repete nas duas eleições, o que parece de monstrar uma coerência geográfica intertemporal independentemente do modelo de urna utilizado.
Cidades 2022 2018
Jequiá da Praia 50.19% 45.28%
Atalaia 36.12% 31.73%
Barra de São Miguel 51.54% 50.57%
Capela 40.26% 38.29%
Coqueiro Seco 38.91% 38.56%
Marechal Deodoro 55.52% 56.66%
Pilar 44.34% 46.77%
Roteiro 39.39% 33.55%
Santa Luzia do Norte 38.01% 38.73%
São Miguel dos Campos 49.14% 51.13%
Satuba 51.70% 51.04%
Rio Largo 47.98% 49.72%
Maceió 57.18% 61.63%
ALAGOAS 41.32% 40.08%
Não tive tempo de repetir o mesmo estudo acima para os outros estados do Nordeste, onde a diferença entre urnas se repete, mas creio que o resultado deve ser semelhante, uma vez que as capitais tendem a votar mais em Bolsonaro do que o interior nesses estados.
Enfim, dá a impressão de que o argentino foi contratado para torturar os números e encontrar algum padrão que pudesse demonstrar algum tipo de viés. O problema é que como as urnas não foram distribuídas de maneira aleatória, qualquer estudo precisa considerar o padrão de distribuição das urnas, o que não foi feito.
Na tabela abaixo, mostro as diferenças entre os votos recebidos por Bolsonaro em “urnas 2020” e nas outras. Podemos observar que o “problema” concentra-se na região Nordeste e no Amazonas, onde somente a capital, Manaus, recebeu “urnas 2020”. E, como sabemos, Bolsonaro ganhou em Manaus e perdeu nas outras cidades. Podemos inferir que esta questão geográfica se repete em todos os estados da região Nordeste. Aliás, há vários estados onde ocorre o inverso, ou seja, há mais votos para Bolsonaro em urnas anteriores a 2020. Fica a questão: por que a manipulação se daria somente em alguns estados, principalmente no Nordeste?