O que têm em comum os primeiros ministros Viktor Orbán, Boris Johnson e Benjamin Netanyahu com o ex-presidente Jair Bolsonaro? Os quatro representam a direita em seus países. O que os distingue? Os líderes de Hungria, Inglaterra e Israel fizeram questão de liderar pelo exemplo as campanhas de vacinação em seus países. Bolsonaro, não.
De nada adiantou dizer que “quem quis se vacinar teve vacina”, o que é verdade. Disponibilizar vacinas é muito, mas longe de ser o suficiente. Um líder lidera pelo exemplo, e uma campanha de vacinação começa com o exemplo que vem de cima.
Ao jogar a vacinação para o campo ideológico (a direita que defende a liberdade contra a esquerda totalitária que quer impor o que você deve fazer), Bolsonaro se desligou do que queria a maioria da população, que era simplesmente se livrar o quanto antes do vírus. Líderes de direita do mundo inteiro entenderam isso. Bolsonaro, não.
Lula, obviamente, se deixou fotografar sendo vacinado durante a campanha nacional e, ontem, novamente. Não precisa ser muito esperto politicamente para sacar que esse é o contraponto por excelência em relação a Bolsonaro. O ex-presidente perdeu a eleição para um ex-presidiário por meros 1,8% dos votos. Não tenho dúvida de que, se Bolsonaro tivesse seguido o exemplo de seus pares Orbán, Johnson e Netanyahu, a história teria sido diferente. A Covid foi o grande eleitor dessas eleições.
Duas histórias opostas me chamaram a atenção para a questão da vacinação infantil. A primeira refere-se à morte por parada cardíaca de uma criança, supostamente causada pela vacina contra Covid-19.
A segunda, em matéria do Estadão do dia 04/02, apresenta a história de uma criança supostamente vítima da Covid-19.
Notem que coloquei a palavra “supostamente” nas duas causas de morte, o que já nos serve como porta de entrada para este artigo.
A palavra “supostamente” admite que um determinado fato seja possível, mas não se compromete com ele. Admite a possibilidade, mas relativamente remota, colocando uma sombra de suspeição sobre o fato. E cada um, desde o seu particular ponto de vista, ficará ou não revoltado com o uso da palavra. No exemplo acima, aqueles que acham que a vacina é um perigo, verão como um absurdo o uso da palavra “supostamente” para o óbvio fato de que a criança de Lençóis Paulistas morreu por causa da vacina, ao passo que avaliarão como adequado o uso da palavra ao qualificar a morte por Covid. Afinal, muitos morrem COM Covid e não DE Covid. E vice-versa, os que são favoráveis à vacina verão o “supostamente” bem colocado ao se referir à morte da criança de Lençóis Paulistas, pois o laudo médico garantiu que esta não foi a causa, ao passo que não aceitarão a palavra ao se referir à morte por Covid, pois esta também foi atestada pelo médico.
Não quero aqui, propositalmente, entrar na discussão científica deste ou daquele caso particular. Meu ponto é outro: essa discussão é irrelevante, ainda que ocupe o lugar principal no debate público. O que verdadeiramente importa é a estatística.
Os economistas geralmente são taxados de insensíveis e pouco empáticos, por teoricamente focarem-se somente nos grandes agregados e modelos gerais, e desprezarem as pessoas, suas histórias e sofrimentos particulares. E é verdade, ainda que isso não tenha nada a ver com empatia, mas somente com metodologia de trabalho.
É relativamente comum, em reportagens sobre grandes tragédias ou crimes, as vítimas reclamarem que não são cuidadas pelo governo, que viraram apenas uma estatística. Verdade. Cada ser humano importa e não deveria ser tratado como uma estatística fria. Mas a dura realidade é que se CADA ser humano é especial, segue-se que TODOS os seres humanos são especiais. E como não há recursos suficientes para tratar CADA ser humano de maneira especial, o que resta aos governos é tratar o CONJUNTO dos seres humanos da melhor maneira possível. E, para isso, não há outra maneira, a não ser tratar cada ser humano em particular como uma estatística. Quando isso não acontece, ocorre o que nós chamamos de PRIVILÉGIO. Como não há recursos para tratar a todos como especiais, alguns são escolhidos da multidão por critérios nem sempre transparentes.
Mas acredito que a aplicação de estatísticas para a elaboração de políticas públicas seja algo bem aceito, de bom senso. O que eu gostaria de demonstrar neste artigo é que a estatística é também a melhor forma de tomar decisões em nossa vida particular. Deveríamos admitir que não somos assim tão especiais quando se trata de fenômenos aleatórios. Nesse sentido, somos sim uma estatística.
Quando os economistas projetam cenários econômicos, costumam atribuir-lhes probabilidades. O cenário X tem 40% de chance de se concretizar, o Y 35% e o Z, 25%. Ocorre que, passado o tempo, apenas um desses cenários se concretizará, quando então a sua probabilidade passa a ser de 100%, enquanto as probabilidades dos outros cenários tornam-se zero. Aquele cenário que se concretizou “virou estatística”, que vai alimentar a confecção de novos cenários.
É neste ponto que a nossa mente nos trai. Uma história concreta faz com que aquela estatística (a probabilidade que se tornou 100%) ganhe uma chance em nossa mente muito maior do que realmente tem. Não é à toa que qualquer reportagem sempre traz uma história concreta, tornando a tese do repórter muito mais crível. Afinal, estatísticas são frias, histórias são quentes. Ocorre que as histórias magnificam a probabilidade de aquele fenômeno ocorrer conosco.
É bem estabelecido pela literatura acadêmica que a nossa mente lida com probabilidades de acordo com o viés de cada um. Em geral, eventos positivos, como ganhar a Mega Sena, assumem uma probabilidade muito maior na nossa mente do que realmente têm, ao passo que damos a eventos negativos, como ter um ataque do coração ou ser atropelado, probabilidade muito menor do que realmente têm. O viés político também influencia: anti-vacinas darão muito maior peso a estatísticas de mortes por vacinas do que mortes por Covid, ao passo que “coronalovers” farão o inverso.
O que deveríamos fazer para minimizar o erro de avaliação é simplesmente esquecer as histórias concretas e focar nas estatísticas. Se temos um amigo que tomou três doses da vacina e, mesmo assim, morreu de Covid, deveríamos transmitir os nossos mais profundos sentimentos à família, mas esquecer essa história particular para tirar conclusões. A história pode ser tocante, mas qual a estatística por trás? Essa é a questão relevante.
O que a estatística nos diz, por exemplo, sobre a vacinação de crianças, o exemplo usado no início deste artigo? No geral, de acordo com este estudo, publicado na Nature, a chance de uma pessoa qualquer desenvolver miocardite relacionada com a vacina da Pfizer é de 0,3-5,0 por 100.000 pessoas vacinadas (como referência, há 1-10 casos/100.000 de miocardite globalmente por ano). E isso não é morte, somente uma fração desse número vem a óbito. Por outro lado, a incidência de miocardite associada à Covid é cerca de 100 vezes maior, 1.000-1.400 para cada 100 mil pessoas. Ou seja, segundo este estudo, é 100 vezes mais provável desenvolver miocardite por Covid do que pela vacina.
No entanto, para crianças as conclusões não são tão preto no branco, mesmo porque, ainda estamos muito no início da vacinação nesta faixa etária globalmente. Este estudo, por exemplo, conclui que meninos entre 12-15 anos de idade e sem comorbidades, têm mais chance de desenvolver miocardite com a vacina da Pfizer do que com a Covid. Já com comorbidades, a chance é maior com a Covid. Talvez por isso, alguns países (ex.: Reino Unido) tenham indicado a vacinação infantil com vacinas de tecnologia mRNA apenas para crianças com comorbidades. No entanto, outros países (ex.: EUA, Canadá) recomendam a mesma vacina para todas as crianças. Ou seja, não há ainda um consenso científico aqui, talvez por falta de estudos conclusivos. Não encontrei estudo que focasse especificamente em crianças (confesso que não gastei muito tempo procurando).
O fato é que o cenário de óbito ou de sequela grave é muito raro em crianças sem comorbidades, tanto naquelas vacinadas (por causa da vacina) quanto nas não vacinadas (por causa da Covid). Por isso, qualquer evento, em si muito raro, é tratado como “o” caso que demonstra a tese.
Note que não estou negando que existam crianças que morram por causa da vacina ou de Covid. O que estou afirmando é que estes eventos não deveriam importar nada para a nossa decisão. O que importa é a estatística, o resto é narrativa.
“O número de crianças mortas por Covid é insignificante”. Com essa frase, o presidente Jair Bolsonaro procurou diminuir a importância da vacinação de crianças contra a Covid.
Há basicamente três motivos levantados por aqueles que minimizam a importância da vacinação de crianças:
Trata-se de uma doença de velhos, não de jovens, e muito menos de crianças. É neste contexto que se encaixa a frase do presidente.
A vacina não serviria como inibidor de transmissão, e a avalanche da ômicron provaria a tese. Portanto, o argumento da imunidade de rebanho, que poderia ser usado para justificar a vacinação de crianças, não se aplicaria.
Trata-se de uma vacina “experimental”, em que pouco se conhece seus efeitos de longo prazo.
Neste post, vou me ater ao primeiro ponto. O terceiro ponto foi competentemente abordado pelo meu amigo Paulo Buchsbaum no post Histórias movem as pessoas. Já em relação ao segundo, até onde eu saiba, não há evidências nem para um lado, nem para o outro. E, como diz meu amigo e companheiro de blog Marcelo Porto, não parece ser muito ético usar as crianças como escudo protetor para uma doença que é mais letal em outras faixas etárias. Claro, se os pontos 1 e 3 não puderem ser contestados adequadamente. Se o forem, a vacinação de crianças se justifica por si mesma.
Particularmente prefiro os dados do SIM, e o gráfico abaixo mostra por quê.
O SIM disponibiliza dados desde 2009 até 2019, enquanto o Portal da Transparência começa a sua série em 2015, terminando agora em 2022. As barras representam o crescimento de ano para ano nas duas séries. Observe como o crescimento de óbitos pelo SIM é muito mais constante e próximo do crescimento populacional, que é o que se poderia esperar. Já o crescimento do número de óbitos registrados em cartório é muito mais errático e, principalmente, não guarda relação com o crescimento populacional. Em 2016, por exemplo, o número de óbitos, segundo o Portal da Transparência, aumentou cerca de 13% em relação a 2015 e, em 2018, quase 11%, números pouco confiáveis. Em 2020 e 2021 o crescimento do número de óbitos é maior por conta da Covid, mas é difícil tirar uma regra, considerando o comportamento errático anterior.
Infelizmente, os dados do SIM terminam em 2019. Portanto, não temos ainda os dados dos óbitos em 2020 e 2021 de acordo com este sistema. No entanto, há um outro sistema, específico para SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que tem dados mais atualizados. Trata-se da Vigilância de SRAG dentro do DataSus. São bases de dados gigantes, pois agregam informações das mais diversas sobre SRAG. Com isso, podemos conferir os dados do post abaixo, publicado pelo site Poder 360:
Explorando os dados da Vigilância de SRAG, cheguei em 279 e 270 óbitos por Covid em 2020 e 2021 respectivamente, para crianças entre 5 e 11 anos de idade. Portanto, compatível com o número apresentado no post.
Já para a média de mortes de crianças entre 5 e 11 anos de idade, precisamos lançar mão do SIM. O post diz que este cálculo foi feito entre 2016 e 2020, mas o ano de 2020 não está disponível neste site. Fiz a conta com os anos de 2016 a 2019. Além disso, a estratificação do SIM é de 5 a 9 anos e 10 a 14 anos. Não há, portanto, a estratificação de 5 a 11 anos. Assumi, então, uma regra de linearidade, e considerei que os óbitos entre 10 e 11 anos representam 2/5 dos óbitos entre 10 a 14 anos. Fazendo estes cálculos, cheguei a uma média de óbitos nessa faixa etária de 5.005 por ano. Com essa base, os óbitos por Covid em 2020 representam 5,4% da média de óbitos nessa faixa etária. Um número, portanto, menor do que os 7% do post.
Mas este não é o ponto principal do post. 7% ou 5,4% são números igualmente pequenos, não chamam muito a atenção. O que realmente chama a atenção no post é a Covid estar em 2º lugar como a principal causa mortis nessa faixa etária.
Usando a base de dados do SIM entre 2016 e 2019, e fazendo o cálculo descrito acima para inferir os óbitos na faixa de 5-11 anos, eu chego no seguinte ranking:
Para fazer esse ranking, usei como critério as CIDs (código internacional de doenças). Ou seja, o óbito precisa ter uma CID concreta. No post do Poder360, por exemplo, é incluído “doença circulatória”, que engloba vários CIDs. Por isso, não entra no meu ranking.
Agora, a interpretação.
Podemos ler este gráfico de duas maneiras: maximizando ou minimizando o problema da Covid. A leitura que maximiza o problema da Covid vai dizer que a doença já se encontra entre as principais causas de morte de crianças. Podemos dizer que é a segunda causa, estatisticamente empatada com agressões, afogamento e leucemia. A leitura que minimiza a importância da doença vai nos dizer que a Covid se perde no meio de uma série de outras causas, representando apenas 5,4% dos óbitos nessa faixa etária.
Antes de passar para a parte opinativa do post, apenas um adendo metodológico, envolvendo os dados dos cartórios. Infelizmente, o Portal da Transparência estratifica os óbitos somente em menores de 9 anos. Essa estratificação inclui a mortalidade infantil dos bebês até 1 ano de idade, que representaram, em 2019, segundo o SIM, 79,7% das mortes de crianças menores de 9 anos. Por outro lado, segundo os dados da Vigilância SRAG, os óbitos por Covid de bebês de menores de 1 ano totalizaram cerca de 11% dos óbitos nessa faixa etária nos anos de 2020 e 2021. Portanto, a estratificação do Portal da Transparência é inútil para inferir qualquer informação sobre a incidência da Covid nessa faixa etária, pois os óbitos de bebês menores de 1 ano distorcem os dados.
A ilusão da objetividade
A figura abaixo é clássica na ilusão de ótica: o que você vê, uma moça ou uma velha? O desenho é único, mas está sujeito à interpretação de quem vê.
A matemática tem uma aura de objetividade. Números são números, não há como argumentar que 2 + 2 = 5. No entanto, como vimos acima, os mesmíssimos números podem ser usados para se construir a narrativa que se queira. Afinal, a Covid é uma doença importante ou insignificante na faixa etária de 5 a 11 anos de idade? Estamos vendo uma moça ou uma velha?
Esta discussão, na verdade, somente seria relevante se a vacinação fosse obrigatória. Neste caso, haveria uma interpretação única, imposta, a de que a letalidade da Covid em crianças merece uma resposta dura das autoridades sanitárias. Mas não é o caso, pelo menos por enquanto. O que se tem, como sempre se teve, são campanhas de vacinação.
A interpretação fica a cargo dos pais. Se os pais entendem que este número é “insignificante”, podem optar por não vacinar, assumindo o mesmo risco de óbito por leucemia, por exemplo, conforme vimos no gráfico acima. Imagine que houvesse uma vacina que diminuísse a probabilidade de se desenvolver leucemia: será que esses mesmos pais jogariam com a sorte?
Por outro lado, pais que interpretam esses números de maneira alarmante, gostariam de poder contar com a vacina para os seus filhos. E é neste ponto que o governo Bolsonaro pisou na bola. Ao propositalmente postergar o início da vacinação nessa faixa etária, o governo atrasou a opção que muitos pais queriam para os seus filhos. Para um político que gosta de dizer que respeita a liberdade das pessoas, neste caso Bolsonaro não respeitou a liberdade dos pais de vacinarem seus filhos, ao adotar chicanas que atrasaram o processo.
Infelizmente não tenho mais filhos nessa faixa etária (que saudades!). Se eu tivesse, entendo que a probabilidade joga pela vacinação. Portanto, eu iria vaciná-los. Afinal, cresci em um mundo em que as vacinas, assim como os remédios de maneira geral, eram consideradas um grande avanço da humanidade, e que permitiram uma vida mais longa e saudável. Não mudei de ideia.
O NYT acaba de publicar uma matéria em que os conselheiros para a área de saúde do então candidato Joe Biden pedem ao presidente dos EUA, em vários artigos, uma estratégia nova de enfrentamento ao Covid-19. Textualmente: “… eles estão pedindo a Mr. Biden que adote uma estratégia totalmente nova para a pandemia – uma que se adapte ao “novo normal” de viver com o vírus indefinidamente, não eliminá-lo”.
No final de 2020, a grande esperança da humanidade era a vacinação. Com uma parcela relevante da população vacinada, poderíamos esperar voltar à vida normal, como sempre vivemos antes dessa praga.
Pois bem, passamos o ano de 2021 vacinando toda a população dos países desenvolvidos e de boa parte dos países de renda média. Hoje, segundo o Our World in Data, países que ora enfrentam picos inéditos de contaminação, como França, Itália e Canadá, têm mais de 75% da população TOTAL já tendo recebido a 2a dose da vacina, o que significa quase 100% da população endereçável. Portanto, não existe mais a desculpa de que somente países com “baixa” cobertura vacinal, como EUA (62%) ou Alemanha (70%) é que estavam sofrendo com essa nova onda.
Dizer que está faltando um “booster” não me parece satisfatório. Quando as vacinas foram aprovadas, os testes mostravam uma eficácia não menos que espetacular, acima de 70% para a AstraZeneca, acima de 90% para Pfizer/Moderna. Falar que somente depois do “booster” poderemos voltar a ter vida normal faz lembrar o tempo em que ouvíamos que era só tomar as duas doses e poderíamos voltar a ter vida normal. Quem garante que não precisaremos tomar mais “boosters”? Teremos que tomar vacinas de 4 em 4 meses para termos vida normal?
É nesse contexto, depois de dois anos de pandemia, e com a ômicron causando recordes em cima de recordes de casos (sem aumento de óbitos) MESMO COM UMA PARTE RELEVANTE DA POPULAÇÃO JÁ TENDO SIDO VACINADA, esse grupo de médicos acima de qualquer suspeita propõe uma nova estratégia: conviver com o vírus.
Este debate encontra-se interditado por razões políticas. No Brasil, Bolsonaro vem defendendo essa tese desde praticamente o início da pandemia. Ele estava errado há dois anos, ou mesmo há um ano, pois tratava-se de uma doença sem cura, sem método confiável de prevenção e com altíssimo grau de letalidade. Hoje, essa discussão faz total sentido: uma doença respiratória, para a qual há vacinas e não causa mortes em nível acima de outras doenças, não deveria receber atenção diferente de, por exemplo, a influenza.
Cabe perguntar: se com vacinas e óbitos em níveis relativamente baixos não podemos retomar a normalidade, qual o contexto em que isso será possível? Queremos eliminar a doença como fizemos com a poliomielite? A nova onda da ômicron, com, repito, boa parte da população já vacinada, parece indicar que isso será virtualmente impossível. Estaremos, então, condenados a viver em um “perpétuo estado de emergência”, na expressão utilizada pelos médicos que aconselharam Joe Biden?
Os médicos que aconselharam Joe Biden durante a campanha sugerem vacinação de crianças, distribuição de máscaras N95 para a população e disponibilização de testagem de baixo custo. Todas medidas com o objetivo de permitir que as pessoas possam continuar indo ao trabalho, aos locais de lazer ou se reunirem sem precisar interromper essas atividades porque se identificou alguém com o vírus. Os cruzeiros que foram interrompidos, por exemplo, não o seriam nesse novo contexto, da mesma forma como não haveria interrupção se se descobrisse alguém com influenza dentro do navio.
Já é chegada a hora de discutir seriamente esse “novo normal”, sem rótulos como “negacionista” ou “coronalover”. Se isso não for feito pelas autoridades de maneira ordenada, será irremediavelmente feito pela própria população de maneira desordenada, que não vai suportar um terceiro ano de restrições para as quais não veem sentido.
Protestos tomam conta da Áustria e outros países da Europa contra novas medidas de contenção do coronavírus. As restrições aos não vacinados fizeram surgir um tipo de paralelo comum quando se quer jogar uma bomba de fumaça sobre a real natureza do que está em jogo: a comparação com o Holocausto.
Os anti-vacinas não estão sendo originais. Aqui mesmo no Brasil, há pouco tempo, Weintraub comparou os bolsonaristas presos com os judeus perseguidos pelo nazismo. E, na campanha eleitoral de 2014, Lula comparou os petistas com os judeus, perseguidos pelos nazistas do PSDB.A diferença fundamental entre essas situações e a dos judeus europeus na década de 30 (na verdade, a dos judeus europeus de qualquer década), é que estes pagaram com a vida pelo simples fato de terem nascido judeus. Não foi uma escolha política, como ser petista, bolsonarista ou anti-vacina.
Nesses casos, há um entendimento torto do conceito de liberdade de escolha, em que a escolha não traz consequências. Quer dizer, reivindicam o direito de serem petistas, bolsonaristas ou anti-vacina sem qualquer tipo de resistência. Se há oposição à escolha (natural, porque há outros elementos da vida em sociedade que vão além da liberdade pessoal), já se colocam como vítimas de perseguição.
Alguns estranharão o fato de classificar o movimento anti-vacina como político. Pois é, não tem nada mais político do que sair protestando nas ruas. Os protestos pretendem imputar aos governos uma intenção política na decisão de restringir os direitos dos não-vacinados, como se quisessem separá-los do resto da sociedade, atribuindo-lhes um status infra-humano. Daí as estrelas amarelas, um símbolo político forte. Não por coincidência, os movimentos anti-vacina se identificam com uma determinada corrente política.
Meus avós maternos escaparam de campos de concentração. Por isso, para mim, ver a estrela amarela ser usada como símbolo político é revoltante. Comparar essa situação com a dos judeus perseguidos pelo regime nazista é de uma canalhice sem limites. Não quer tomar vacina, ok, direito seu. Mas deixe a memória do Holocausto em paz.
A regra para assistir a jogos de futebol é ter tomado as duas doses da vacina. Essa é a regra, concordando com ela ou não.
Bolsonaro conhecia a regra. Portanto, foi à Vila Belmiro com o objetivo de ser barrado e criar um fato político.
O não ter ainda se vacinado já é, em si, um fato político. Tentar forçar a entrada em eventos é só a sua continuidade. Fica a questão: o que Bolsonaro pensa que ganha com isso?
Hoje, aproximadamente 149,5 milhões de pessoas já tomaram a 1a dose da vacina. O eleitorado brasileiro deve estar em mais ou menos 151,5 milhões de eleitores, o que nos leva à conclusão de que praticamente 100% do eleitorado se vacinou. Portanto, Bolsonaro, em sua posição anti-vacina, está representando praticamente ninguém.
Além disso, é nada menos que óbvio que é a vacina que está permitindo a reabertura das atividades econômicas no mundo inteiro. Reabertura que um político que precisa desesperadamente de boas notícias no front econômico deveria desejar acima de tudo. Portanto, Bolsonaro deveria estar liderando a campanha pela vacinação, não fosse por outro motivo, por interesse eleitoral.
O único ganho visível dessa postura é marcar posição por um mal-entendido conceito de “liberdade”, como se ameaças à saúde pública estivessem no rol das liberdades individuais. Neste quesito, Bolsonaro fala a um pequeno grupo, longe, muito longe, de garantir-lhe maioria eleitoral. E, por outro lado, afasta um grupo bem maior, que entende a importância da vacinação em massa. Enfim, cada um sabe o que faz com sua estratégia eleitoral.
Apenas para registro: ontem conseguimos aplicar 3 milhões de doses da vacina, sendo 1,8 milhões da primeira dose e 1,2 milhões da 2a dose. Esse novo recorde diário nos leva a uma média móvel nos últimos 7 dias de 1,9 milhões de doses aplicadas por dia.
Neste ritmo, o país pode terminar de aplicar a 1a dose da vacina para 100% da população acima de 12 anos no final de setembro, daqui a 6 semanas. O que significa que toda essa população pode estar completamente vacinada até meados de dezembro.
Estamos vacinando 0,57% da população por dia com a primeira dose (média móvel de 7 dias), número compatível com os picos atingidos por países como França (0,61%), Espanha (0,59%) e EUA (0,60%), mas ainda abaixo de países como Inglaterra (0,75%), Alemanha (0,70%), Itália (0,80%) e Chile (0,97%).
O copo meio vazio é que estamos defasados em relação a esses países de 1 a 2 meses em termos de cobertura de vacinação. O copo meio cheio é que, agora, falta pouco tempo para alcançá-los, se mantivermos o atual ritmo.
Ontem participei da “virada da vacina” aqui em São Paulo. Meus filhos de 21 e 18 anos insistiram muito, pois queriam a vacina o quanto antes. Achei aquilo meio sem sentido, porque poderíamos ir no dia seguinte. Mas, como diz aquele velho comercial, não basta ser pai, tem que participar. Então, fomos. Foi uma experiência antropológica e comportamental inesquecível.
Chegamos à fila do Drive Thru às 9 da noite. Na verdade, era uma das filas. O posto que escolhemos era nos Jardins, em que várias vielas chegavam ao destino. E era este o problema: cada viela representava um cruzamento. E, como sabemos, cruzamentos sem semáforos e sem agentes de trânsito mostram o melhor e o pior de nós.
Um amigo meu que morou nos EUA conta que lá, quando um farol pifa, automaticamente os motoristas adotam a regra “um lá, um cá”. Ou seja, passa um carro (ou uma fila de carros, se há mais de uma faixa) de uma rua, e então o carro de trás aguarda o carro da outra rua passar. Desse modo, não ocorre o travamento do cruzamento e todos andam. Não sei se é verdade, mas a história é bem contada.
No Brasil, um farol pifado significa cruzamento travado. Não porque as pessoas todas queiram levar vantagem. A grande maioria somos cumpridores da lei e das regras e gostaríamos de viver em um mundo onde todos fossem assim. O problema é a desconfiança mútua: achando que o outro vai querer levar vantagem, eu é que não vou ficar pra trás. Em uma sociedade assim, todos batem no peito e se dizem cumpridores das regras mas, mesmo assim, o cruzamento trava.
Foi o que aconteceu. Alguns mínimos avanços eram seguidos de longas esperas parados. Em um dos cruzamentos, aconteceu a segunda experiência antropológica da noite, já madrugada. Na medida em que nos aproximávamos de um cruzamento, vimos uma senhora e uma moça organizando o trânsito. Achei, em princípio, que eram funcionárias da prefeitura. Chegando lá, descobrimos que eram cidadãs, que haviam descido do carro em que o pai era motorista e estava bem atrás de nós na fila, para, voluntariamente, fazer alguma coisa. Elas contaram que aquele cruzamento estava um caos, com filas duplas e triplas, e elas conseguiram organizar. Aprendi: alguns ficam reclamando ou aceitam passivamente uma situação, enquanto outros arregaçam as mangas para tentar resolver, arriscando a própria integridade física. E digo arriscando a própria integridade para falar da terceira experiência antropológica da noite.
Um dos motoristas sai do carro e vai tirar satisfações com a senhora. Aos berros, diz que ela não tem autoridade para estar ali, que ele estava há horas naquela fila (como se os outros não estivessem igualmente) e que ele iria atropela-la se ela ficasse na frente do carro dele. Há pessoas que entendem o mundo como uma grande conspiração contra os seus direitos e tem pouco senso do que seja viver em sociedade. Ainda bem que é uma minoria. Outros motoristas saíram de seus carros para defendê-la.
Por fim, minha quarta experiência da noite não foi antropológica, mas se refere somente ao bom e velho Brasil: a “grande ideia” de promover a virada da vacina não foi acompanhada do mínimo necessário em estrutura. Havia agentes de trânsito somente no último cruzamento antes de chegar ao posto, deixando ao Deus dará todos os cruzamentos anteriores. A partir dali, tudo muito bem organizado, até com soldados para fazer a triagem inicial. O suficiente para que o prefeito possa bater no peito e dizer que estava tudo “muito bem organizado”. Assim é se assim lhe parece.
Depois de 6 horas na fila e uma temporada inteira de Lupin (recomendo!) assistida no celular, chegamos na mesa para a vacinação. No final, foi uma noite de convivência com os filhos, muitas risadas e aprendizado sobre a natureza humana. E, o que é melhor, estão vacinados. Valeu a pena!
Hoje, nota política no Estadão traz a reclamação de alguns governadores, de que seus estados estariam sendo prejudicados pela distribuição das entregas de doses pelo Ministério da Saúde. São citados especificamente os governadores do Pará, Bahia, Piauí e São Paulo. Será que esses governadores têm razão em reclamar? Vejamos.
Fiz três gráficos para tentar analisar a questão. O gráfico 1 mostra o percentual da população de cada estado já vacinado. São Paulo lidera, com 67% da população tendo recebido pelo menos a 1a dose (ou a dose única). Bahia, Piauí e Pará cobriram, até o momento, 49%, 46% e 39% das suas populações, respectivamente. O Pará está em último lugar entre os estados brasileiros. Será que isso aconteceu porque esses estados receberam menos doses?
O gráfico 2 mostra quantas doses cada estado recebeu em relação às suas respectivas populações. Podemos observar que, de fato, Bahia, Piauí e Pará receberam bem menos doses em relação à média nacional, respectivamente 85%, 83% e 77% em relação às suas populações. São Paulo recebeu 97%, enquanto a média nacional foi de 91%. Mas, nem tudo é como parece.
Fiz uma outra conta: qual o percentual de doses que está em estoque em cada estado? Se a falta de doses fosse um gargalo para a vacinação, era de se esperar que os estados que receberam menos doses tivessem um estoque menor, enquanto os estados que receberam mais doses teriam que ter um estoque maior.
O gráfico 3 mostra o estoque de doses em relação ao total de doses recebidas pelos estados. Podemos observar que justamente os estados que lideram a vacinação, MS e SP, têm os menores estoques. Quer dizer, mesmo estes estados tendo recebido mais doses proporcionalmente (98% e 97% de suas populações, respectivamente), os seus estoques estão baixos (5% e 6% das doses recebidas, respectivamente). Por outro lado, Bahia, Piauí e Pará têm ainda em estoque 19%, 24% e 25% de todas as doses recebidas até o momento. Ou seja, ainda que tenham recebido menos doses, os estoques estão altos, demostrando que estes estados não conseguem dar vazão na mesma velocidade dos que recebem mais. Tomei como exemplo esses 3 estados porque foram os citados pela reportagem, mas o raciocínio vale para todos os outros.
Então, minha hipótese é a seguinte: o MS está distribuindo doses de acordo com a capacidade de vacinação de cada estado, e não proporcionalmente às suas respectivas populações. Nesse caso, os governadores de SP e MS seriam os únicos que poderiam reclamar, pois seus estoques estão muito baixos. Cabe perguntar a cada governador porque não conseguem vacinar mais rapidamente suas populações. Falta de doses, como vimos, não é.