Uma sólida minoria

O Boca Livre se desfez. Motivo: divergências políticas.

Não vou aqui julgar se divergências políticas (ou de qualquer outra natureza) deveriam servir de motivo para envenenar relações pessoais, familiares ou profissionais. Cada um sabe onde o calo aperta. Meu ponto é outro.

Dos quatro integrantes do grupo, três querem se vacinar, enquanto o quarto, não. Este quarto componente se alinha claramente ao, digamos, modo de pensar bolsonarista. Para ele, as mortes por Covid fazem parte da natureza das coisas, há outros problemas além da Covid e tomar vacinas deveria ser uma escolha, não uma obrigação. Separei abaixo um trecho de seus, digamos, pensamentos.

Por mais que se possa achar absurdo esses posicionamentos, não se pode negar que seja preponderante em uma parcela da população. Quanto? Um em quatro, no caso do ex-grupo Boca Livre. 30%, se considerarmos o nível de aprovação do governo Bolsonaro neste momento.

Resta ocioso discutir qual o papel do próprio Bolsonaro nesta corrente de pensamento, se ele lidera ou se ele traduz uma forma de pensar. O fato é que entre 25% e 30% da população não está minimamente convencida de que a tragédia da Covid no Brasil seja culpa do atual ocupante da cadeira presidencial. Não se trata de uma maioria que garanta uma eleição, mas é uma robusta minoria que evita um impeachment.

Por isso, se depender somente da Covid, difícil um impeachment avançar. Continuo achando que é a economia que vai ditar o futuro deste governo.

Se não fosse o Dória…

Então, é isso: não fosse a vachina do Doria, estaríamos assistindo o mundo inteiro vacinando, esperando a nossa vez em março. Se não chovesse.

Nem acho que seja uma questão ideológica anti-vacina. Parece-me mais incompetência mesmo. Falta de foco e de gestão de prioridades.

Pode até ser que a ideologia tenha levado à incompetência. Mas pouco importa a existência e a ordem dos fatores. O fato é que estamos nas mãos de amadores na gestão da vacinação.

Bola na cara do gol

Abaixo, reportagem de hoje na The Economist, sobre a aprovação emergencial da vacina da Astra Zeneca/Oxford por parte da MHRA, a Anvisa britânica. Segundo a revista, um game changer, pois a vacina é mais barata e tem logística muito mais simples.

Os primeiros resultados publicados sobre esta vacina não foram nada animadores. Havia ocorrido um erro de dosagem que produziu resultados esquisitos (meia dose era mais efetiva do que uma dose) e não havia comprovação de eficácia para pessoas acima de 59 anos de idade.

A reportagem da Economist, no entanto, não cita esses problemas. Na verdade, coloca a questão da meia dose como uma vantagem. Como respeito o jornalismo praticado pela Economist, e como a MHRA não ia colocar seu stamp em algo não confiável, acho que temos uma vacina.

O governo brasileiro, através da Fiocruz, fez um acordo de produção local com a AstraZeneca. Convenhamos, um laboratório britânico, em associação com a grife Oxford, transmite muuuuuuito mais confiança do que um laboratório chinês. As duas vacinas podem ser ótimas, mas entre um Bentley e um Chery, você compraria qual?

Por isso, a essa altura do campeonato, era para o Bolsonaro estar sambando sobre o cadáver político do Doria. “Sua” aposta foi aprovada pelos britânicos (e deve ser aprovada por vários outros países a partir de agora), enquanto o Butantan já adiou duas vezes o anúncio da eficácia da “vacina chinesa”.

Mas não. Bolsonaro continua com seu ar blazé, fazendo campanha contra vacinas (quaisquer vacinas, todas elas foram desenvolvidas em tempo recorde, portanto não são confiáveis), inclusive dizendo que não vai tomar. Bolsonaro não perde uma chance de perder uma chance. E olha que, nessa, a bola sobrou na cara do gol, era só empurrar para a rede, mais fácil do que aquele gol sofrido em Santos.

Sim, a Anvisa vai acabar aprovando a vacina da Astra Zeneca. E até acho que vai ser mais cedo do que mais tarde. Vamos ver se o discurso muda.

Playing games

Hoje, Bolsonaro seguiu com seu plano de encontrar um bode expiatório para o atraso na adoção de um plano de vacinação. No caso, os laboratórios. Ontem foi um post no Facebook. Hoje foi um papo reto com admiradores.

De fato, são os laboratórios que devem pedir o registro da vacina em um determinado país onde mantiveram testes clínicos. No caso do Brasil são quatro: AstraZeneca/Fiocruz, Pfizer, Janssen e Sinovac/Butantan.

Até o momento, nenhum desses laboratórios pediu o registro no Brasil, está certo. No entanto, o que está devidamente escondido na argumentação é: por quê?

Até o momento, os países que começaram a vacinar o fizeram com a Pfizer, com a Moderna ou com a Sputinik. Dessas, apenas a Pfizer fez testes clínicos no Brasil. A pergunta que não quer calar é: por que raios a Pfizer pediu registro em dezenas de outros países e não pediu no Brasil-sil-sil?

Será porque os outros países se esforçaram, chegaram na frente, mostraram interesse, enfim, não fizeram campanha contra a vacina? Bolsonaro pergunta se a Pfizer não tem interesse no nosso grande mercado. Claro que tem! Só que se trata de um bem escasso com uma imensa procura. A Pfizer prefere perder o seu tempo com outros países mais interessados, que ocuparão a sua capacidade de produção por anos.

O Brasil é aquela prima-dona que fica sentada no baile desdenhando de todos os rapazes, e depois culpa os próprios rapazes pelo fato de ter ficado sem ninguém para dançar.

Bolsonaro, mais uma vez, insulta a inteligência alheia, em um assunto extremamente sério. Até quando vai ficar playing games com a saúde da população?

Linha vermelha

Bolsonaro pode dizer que a vacina não será obrigatória.

Bolsonaro pode dizer que não se responsabiliza se quem tomar a vacina virar jacaré.

Bolsonaro pode exigir termo de compromisso de quem tomar a vacina.

Bolsonaro pode dizer que não vai tomar a vacina e não recomenda que tomem.

Bolsonaro pode ignorar seu próprio Posto Ipiranga, que afirmou que somente a vacinação em massa poderá trazer a economia de volta para a normalidade.

Bolsonaro pode tudo isso. Só não pode dizer que não tem pressa, com ar blazé, fazendo pouco da ansiedade de uma parcela significativa da população.

Bolsonaro cruzou uma linha vermelha.

Começa a corrida

A foto da senhorinha inglesa tomando a primeira dose da vacina da Pfizer ganhou a primeira capa dos principais jornais do mundo.

Não importa se, como estão alertando quem entende do assunto, as campanhas de vacinação ainda levarão meses (provavelmente mais de um ano) para surtirem efeito e nos permitirem voltar a uma vida normal. Como diz um velho provérbio chinês (todo velho provérbio é chinês ou árabe), um longo caminho começa com o primeiro passo.

Todos os países com um mínimo de organização estão anunciando o início de suas campanhas de vacinação para este mês ou, no mais tardar, janeiro. Aqui, será em março, se não chover.

A foto de uma senhora de 90 anos tomando a vacina vale mais do que mil jogos de palavras. Escancara aquilo que poderíamos ter e não temos. Nas próximas semanas, campanhas de vacinação começarão ao redor do mundo, piorando a percepção dos brasileiros a respeito do seu próprio governo.

Run, Pazuello, run.