A Venezuela está a um passo de entrar em seu momento Malvinas. Assim como os argentinos em 1982, o governo da Venezuela ensaia uma invasão a um território historicamente disputado. Para tanto, só depende do aval da população em um plebiscito, a ser realizado no próximo dia 3/12. E já sabemos como é o sistema eleitoral venezuelano, de modo que já é Guerra da Guiana na Austrália.
A Guiana, assim como o Suriname e a Guiana Francesa, fazem parte daqueles países que mal sabíamos que existiam. Mas existem. A Guiana é o único país da América do Sul cuja língua oficial é o inglês, dado que era uma possessão inglesa até 1970, quando conquistou sua independência. Metade da população é formada por descendentes de indianos e 30% de descendentes dos escravos africanos. Seu PIB é de US$ 4,5 bilhões, equivalente ao PIB de Ilhéus, na Bahia. A diferença é que Ilhéus tem 160 mil habitantes, enquanto a Guiana tem 750 mil.
A área reclamada pela Venezuela está a oeste do Rio Essequibo, que corresponde mais ou menos a essa área clara no mapa de densidade demográfica do país. Ou seja, trata-se de área pouquíssimo povoada.
Quem irá defender a Guiana em caso de agressão? Não sendo mais uma possessão inglesa, como era o caso das Malvinas, restam os EUA como força militar para cuidar de seu quintal. A dúvida é saber qual seria o seu grau de engajamento, em um momento em que os americanos já estão suficientemente enroscados na Ucrânia e no Oriente Médio. Aliás, o momento do desafio venezuelano não parece ser aleatório.
Por outro lado, o “momento Malvinas” de Maduro parece dizer muito sobre a atual situação do governo venezuelano. Um inimigo comum externo é sempre a arma utililizada por governos fracos. Foi assim na Argentina em 1982, parece ser o caso na Venezuela agora. Se a história se repetir, talvez estejamos testemunhando os estertores da ditadura venezuelana.
Tenho bons amigos que realmente acham que, se não estamos em uma ditadura, ao menos estamos caminhando firmemente para nos tornarmos uma, e a inelegibilidade de Bolsonaro seria mais um tijolo dessa construção. Será que é o caso?
Ninguém gosta de ser chamado de ditador. Outro dia, Joe Biden, na sua trocentésima gafe, deixou escorregar que a China é uma ditadura. Foi um Deus nos acuda, com o governo chinês pedindo explicações. Lula diz que Maduro não é ditador, que a Venezuela é até democrática demais. A ditadura militar teria sido uma “ditabranda”, com Supremo e Congresso funcionando normalmente (a não ser por “breves períodos”), rodízio de poder e até eleições! E, claro, as pessoas que acamparam em frente aos quarteis até outro dia estavam implorando intervenção militar de modo a evitar que uma ditadura assumisse o país…
Mas afinal, o que caracteriza uma ditadura? Talvez pudéssemos caracterizá-la como o oposto da democracia, mas daí teríamos que definir o que vem a ser democracia, o que nos deixa com um problema circular nas mãos.
Para fugir das impressões e vieses pessoais, talvez a forma mais objetiva de classificar um regime como mais ou menos demcorático seja através de métricas bem definidas na literatura da ciência política. A Economist Inteligence Unit procura fazer justamente isso, com o seu Democracy Index.
O Democracy Index é calculado anualmente, e se baseia em 5 pilares: 1) Processo eleitoral e pluralismo, 2) Funcionamento do governo, 3) Participação política, 4) Cultura política e 5) Liberdades civis. Cada um desses pilares recebe uma nota de 0 a 10, formando o índice total de cada país. Na última edição, de 2022, os 5 países mais democráticos foram Noruega, Nova Zelândia, Islândia, Suécia e Finlândia. Já os 5 menos democráticos foram Afeganistão, Myanmar, Coreia do Norte, Rep. Centro Africana e Síria. O Brasil ficou em 51o lugar (em um ranking de 167 países), com um score de 6,78 pontos (entre um máximo de 9,81 e um mínimo de 0,32 pontos). O Brasil, segundo este índice, não parece ser uma ditadura, ainda que não seja uma democracia perfeita.
Onde o Brasil perde mais pontos? Vejamos:
– Processo eleitoral e pluralismo: 9,58 pontos (equivalente à Suécia)
– Funcionamento do governo: 5,00 pontos
– Participação política: 6,67 pontos
– Cultura política: 5,00 pontos
– Liberdades Civis: 7,65 pontos
Podemos observar que nossos maiores problemas estão no “funcionamento do governo” e na “cultura política”. O que vem a ser isso?
Para medir o “funcionamento do governo”, a Economist mede coisas como o poder de lobbies sobre o funcionamento do governo, se há “accountability” do governo em relação aos cidadãos, nível de corrupção e a confiança da população nos políticos e nos partidos. Bem, não é à toa que não nos saímos tão bem nesse quesito.
Já a “cultura política” é medida principalmente através de pesquisas de percepção da população em relação a quesitos como “desejo de um líder forte ou militar que se sobreponha às instituições”, ou “desejo de um governo de tecnocratas”, ou a percepção da democracia como insuficiente para manter a ordem. Em países onde governos democraticamente eleitos têm falhado em fazer entregas à população, é natural que desejos desse tipo aflorem na população.
De qualquer modo, parece claro que, de acordo com o índice, em quesitos como “eleições livres” e “liberdades civis” estamos longe de sermos uma ditadura. E é justamente a esses dois quesitos que esses meus amigos se apegam ao afirmar que estamos caminhando para uma ditadura. Essa percepção não encontra respaldo em uma medição imparcial.
Mas o problema não seria o estado atual da coisa, mas a tendência. Como esse índice tem se comportado no tempo? É o que podemos observar no gráfico abaixo.
De fato, houve uma deterioração do índice brasileiro a partir de 2015, com todos os eventos que se seguiram à Lava-Jato. Provavelmente tivemos uma piora significativa sobre a visão que a população tem sobre a classe política e a democracia em geral. Mas note como o índice cai de um pico de 7,4 para o atual 6,8, uma queda de 0,6 pontos. Muito diferente do que um país como a Venezuela (gráfico abaixo) sofreu, de aproximadamente 5 pontos para 2 pontos no mesmo período. Uma queda de 3 pontos, em um movimento de clara deterioração das condições democráticas.
Claro, nada garante que não sigamos o mesmo caminho da Venezuela, mas a magnitude da deterioração é de outra ordem de grandeza.
Minha particular percepção é a seguinte: o Brasil é uma roda-gigante, em que os que estão por baixo estarão por cima em algum momento, e vice-versa. Em cada fase, o lado que está por baixo acusa o lado que está por cima de “anti-democrático”. Foi assim durante o processo de impeachment, e está sendo assim agora, no inelegibilidade de Bolsonaro. Em ambos os casos, as instâncias competentes tomaram decisões que desagradaram uma parcela da população, minando a confiança nas instituições democráticas. Mas, bem ou mal, as instituições mambembes do Brasil estão aí, fazendo a roda gigante girar. O chavismo comanda a Venezuela há 24 anos, e não há a mínima perspectiva de que a coisa vai mudar. Aqui, o “centrão” da política acaba por cortar as asas de quem tem um projeto chavista para o país, seja à esquerda, seja à direita. O Brasil nunca será o suprassumo da democracia, mas é bem difícil que uma força política se torne hegemônica na geleia real que é a nossa democracia. In “centrão” we trust.
Gabriel Boric, nessa reportagem do Estadão, foi classificado como um político de “centro-esquerda”. Quem te viu e quem te vê! Quando foi eleito, Boric representava o radicalismo da esquerda que havia enchido as ruas em protestos contra Piñera e forçado a convocação de uma Constituinte. Passado o tempo, com uma derrota fragorosa no referendo da nova Constituição e outra na eleição da nova Constituinte, Boric tornou-se a Bachelet de calças. Seu discurso sobre Maduro, hoje, tem mais a ver com a busca de apoio interno em seu país do que propriamente uma posição de convicção. De qualquer modo, demonstra porque o Chile está várias casinhas à frente do Brasil quando se trata de instituições democráticas.
O discurso de Lula, condenado por Boric, é o discurso padrão da esquerda latino-americana, aquele consagrado no As Veias Abertas da América Latina, ou na sua versão sarcástica O Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano. Não tem absolutamente nenhuma novidade. A novidade é Boric, e seu posicionamento civilizado, mesmo que seja somente para agradar a opinião pública de seu país.
Você vai a um banco e toma um empréstimo. Para tanto, assina um contrato onde estão definidos o montante emprestado, a taxa de juros cobrada e o prazo para a devolução. A partir daí, é só matemática financeira básica: PMT, dados PV, i e n. Atrasou? Não pagou? Não tem problema matemático, basta calcular os juros sobre as parcelas vencidas, além de eventuais multas previstas no contrato.
Mas na Venezuela não é assim. No maravilhoso mundo do socialismo moreno, a matemática financeira tem outras leis, ditada por uma Comissão da Verdade, que estabelecerá o real montante devido. Note que não estamos falando de simples negociações de desconto de dívida, uma espécie de Desenrola para Maduro. Não. Trata-se de estabelecer a “verdade” sobre a dívida, uma espécie de “auditoria cidadã”. O objetivo é que, no fim do processo, quando e se a Venezuela pagar, que pareça que não houve calote algum. Afinal, o montante pago era exatamente o devido.
Mas o ponto mais divertido desse imbróglio todo é o ar de festa de quatrocentões decadentes, como se os personagens ainda contassem com a riqueza de outrora. Em sua primeira passagem pelo Planalto, Lula podia se dar ao luxo de fazer política chinesa para conquistar e manter aliados, financiando obras de infraestrutura em países amigos. A Venezuela, por sua vez, surfava nos preços altos do petróleo, um período em que tudo parecia possível. 15 anos depois, Maduro depende do escambo com Cuba, enquanto Lula cata moedinhas onde pode para fechar as contas. Alberto Fernández que o diga.
O encontro de Lula com Maduro e a ressurreição da Unasul fazem parte de um teatro ideológico que arranca suspiros dos intelectuais da Vila Madalena, mas tem pouco efeito prático. A região ainda vive a ressaca da esbórnia dos loucos anos 2000, e não tem dinheiro nem para as necessidades básicas, quanto mais para grandes projetos megalomaníacos. Lamento apenas a perda de tempo com tudo isso.
Eu já estava convencido de que a Venezuela não tinha dado calote. Pelo menos, foi isso que disse o ministro da Secon, Paulo Pimenta, que explicou direitinho que o BNDES não financia países, financia as empresas brasileiras. E, se o país não paga a dívida com a empresa, “o seguro cobre”, tudo certo.
Agora, vem o Maduro e diz que vai pagar a dívida! Que é isso, Maduro, não se preocupa não amigo, o “seguro já cobriu”, a dívida já foi quitada, você não deve mais nada não, fica tranquilo, pode se dedicar a criar as suas narrativas em paz, sem stress.
E o Maduro ainda vai criar uma “comissão” pra determinar o tamanho da dívida. É muito boa vontade, olha, se todo mundo fosse igual ao Maduro, assim, honesto, o mundo seria muito melhor. Bem fez o Lula de trazê-lo aqui para o Brasil, é de exemplos assim que precisamos.
Hoje, mais uma reportagem sobre as péssimas condições de vida na Venezuela.
No entanto, ontem, uma pequena nota nos trouxe a informação de que Chávez ainda tem 56% de aprovação pelo povo venezuelano, muito mais do que qualquer outro líder atual. Como se explica? Fácil: Chávez está morto.
Poucos se lembram, mas no último dia 5 de março completaram-se 10 anos da morte do comandante. Chávez saiu prematuramente do mundo da luta política para o plano dos mitos. Sua morte foi anterior à debacle dos preços do petróleo, que acabou com a fonte do bem-estar para todos os venezuelanos. Sobrou uma carcaça oca de economia, que os abutres do regime disputam sofregamente.
Na mesma pesquisa, Maduro aparece com apenas 22% de aprovação. Poderíamos questionar como Maduro consegue se reeleger com tão reduzida taxa de aprovação. A resposta, além da conhecida falta de lisura nas eleições, pode ser encontrada em uma pesquisa de um ano atrás, feita pelo mesmo instituto. Naquela pesquisa, Maduro também aparecia com uma avaliação péssima, mas não significativamente pior do que a de outros políticos venezuelanos de oposição. Ou seja, a situação é tão ruim, que basta estar vivo para ser mal avaliado. Chávez leva uma grande vantagem sobre seus concorrentes: está morto.
A cerca de 3 meses de sua morte, já em estado terminal, o ditador venezuelano disse: “Chávez não é um ser humano somente. Chávez é um grande coletivo. Chávez é o coração do povo, e o povo está no coração de Chávez”. Quem não se lembra das palavras de Lula em seu discurso no dia de sua prisão, em São Bernardo, também em terceira pessoa? “Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia, misturada com as ideias de vocês”. Lula proferiu essas palavras às vésperas de sua morte política.
A vantagem de Chávez, como dissemos, é estar morto. Lula, por outro lado, ressuscitou, como afirmou a um mesmerizado Reinaldo Azevedo. Portanto, voltou ao mundo dos vivos, e isso faz toda a diferença. Chávez, assim como Lula, navegou o grande ciclo das commodities da primeira década do século, e morreu antes de ver o seu castelo de cartas ruir. Lula saiu da presidência como uma quase unanimidade. Se tivesse acompanhado seu companheiro venezuelano em sua viagem ao além, teríamos hoje um mito lulista imbatível. Mas Lula voltou do mundo dos mortos, e terá que lidar com a realidade dos recursos escassos e da falta de margem de manobra. Aquela mesma realidade que faz com que todos os políticos sejam mal avaliados. Nesse mundo, é bem mais difícil a construção de mitos. A longevidade de Lula, afinal, talvez seja uma benção para o país.
Ontem, durante a sabatina (melhor seria dizer briga de rua) de Paulo Guedes na CCJ, um deputado do PDT mencionou uma medida que, vira e mexe, aparece como a solução dos problemas fiscais do Brasil: a “auditoria da dívida”.
Bem, não precisa ir longe: o BNDES chegou a representar cerca de 1/6 da dívida pública, no auge da insanidade petista. Parte desse dinheiro já voltou aos cofres públicos, mas outra parte é de difícil recuperação.
Sempre que você ouvir alguém que simpatizava com o governo anterior defender uma “auditoria da dívida”, convide o sujeito a tentar cobrar a dívida de Cuba e Venezuela. Já é um bom começo.
Podemos aqui desfiar uma infinidade de hipóteses. Mas, se você quiser mesmo saber o que aconteceu com a Venezuela, leia Atlas Schrugged, de Ayn Rand.
Na obra dessa russa naturalizada norte-americana, a sociedade vai aos poucos perdendo o seu ímpeto empreendedor. A “preocupação social” domina, e o Estado solapa a iniciativa privada com leis e mais leis com o objetivo de fazer “justiça social”. Lobbies em Washington passam a ser mais importantes do que ter uma boa ideia de produto ou serviço. No final, o país simplesmente para, como a Venezuela parou.
Os que veem o Estado como o grande indutor de “justiça social” costumam apontar como exemplos os países escandinavos, com sua grande rede de proteção social. Seriam uma espécie de Nirvana da igualdade.
O problema desse tipo de comparação é que países como Venezuela e Brasil não são nórdicos. Não somos homogêneos, não somos educados e, principalmente, não somos ricos. A “preocupação social” tende a nos transformar em uma Venezuela, não em uma Suécia.
PS.: para os corações mais sensíveis, informo aqui que não sou contra o Bolsa Família. Pelo contrário. Acho que deveríamos eliminar uma boa parte do aparato estatal e transformar o dinheiro poupado em auxílio para as famílias mais pobres. Dinheiro nas mãos das famílias é mais produtivo do que dinheiro na mãos do Estado. Mas receio que não seja esse o entendimento, no Brasil e na Venezuela, do que seja “justiça social”.
Agora, imagine o preço que a Venezuela vai conseguir pela sua sucata. Sabendo-se, inclusive, que a chance de uma reestatização hostil mais à frente não é desprezível.
A parte mais interessante, no entanto, é a tela azul no sistema da esquerda. Quero ver alguém defendendo a Petrobrás estatal depois que a PDVSA for vendida.
A página Inflacionistas descobriu essa relíquia, uma matéria com a visita de Joseph Stiglitz à Venezuela nos idos de 2007. Destaquei o trecho acima, em que Stiglitz defende que o BC não pode ter “autonomia excessiva”. A Venezuela implementou os ensinamentos de Stiglitz, e hoje, como sabemos, tem a maior inflação do mundo.