Refém do Covid-zero

Lembro de uma reportagem, bem no início da pandemia, que descrevia a visita de um oficial de saúde chinês à Itália. O oficial escarnecia das medidas tomadas pelo governo italiano, afirmando que aquele nível de restrição ao movimento das pessoas estava muito longe de ser o suficiente. Era um momento em que assistíamos, estupefatos, um vídeo mostrando cidades inteiras fechadas e a construção de um gigantesco hospital de campanha em poucos dias, e nos perguntávamos, no Ocidente, se seria possível alcançar a eficiência chinesa para combater a doença vivendo sob regras democráticas.

Olhando friamente os números, o sucesso da China é incontestável. Com meros 3,6 óbitos por 100 mil habitantes, e mesmo considerando alguma manipulação dos números, a China fica a anos-luz dos principais países da Europa Ocidental e Américas (entre 2.500 e 3.000 óbitos por 100 mil) e da Europa Oriental (acima de 5.000 óbitos por 100 mil). O seu sucesso contrasta, inclusive, com o de países asiáticos, como Japão (400 óbitos por 100 mil) e Coreia do Sul (600 óbitos por 100 mil).

O problema é que o governo chinês está em uma sinuca de bico. Sem imunidade de rebanho e recusando-se a usar as vacinas desenvolvidas no Ocidente, que têm eficácia e tempo de proteção maiores, os chineses se tornaram presa fácil das variantes mais transmissíveis do vírus. Assim, não há outra estratégia possível, no momento, do que a continuidade das restrições draconianas ao movimento. Na hipótese de algum abrandamento, é perfeitamente possível que a China alcance, em alguns meses, os números, por exemplo, do Japão, o que significaria 5,5 milhões de óbitos.

O massacre da praça da Paz Celestial, em 1989, demonstrou como o governo chinês lida com protestos. Desse modo, não parece provável que protestos esparsos sejam capazes de fazer o governo chinês mudar de rumo. Aliás, pelo contrário, esses protestos fazem diminuir a probabilidade de que Xi volte atrás. Se antes, um abrandamento das medidas significaria reconhecer um erro de condução da estratégia anti Covid, agora soma-se a impressão de que o presidente chinês cede a protestos populares. Seria abrir uma caixa de Pandora no país. Isso sem contar os prováveis 5,5 milhões de óbitos.

Xi Jinping tornou-se refém de sua própria política anti Covid.

Queremos imitar Xi Jiping?

Thomas Friedman, colunista do NYT, está preocupado com a China. Xi Jiping estaria indo longe demais em sua intervenção contra os capitalistas de empresas de tecnologia. Por exemplo: Jack Ma, o fundador do Alibaba, o maior site de e-commerce do mundo, estaria desaparecido. Realmente, uma coisa muito extrema.

Mas o que me chama a atenção é a justificativa para as ações do premiê chinês: Xi Jiping não quer para o seu país “a exacerbação de tensões sociais, o aumento da desigualdade e o estabelecimento de monopólios que dominem governos”, tudo isso fruto da ação das empresas de tecnologia. Em seu momento Eugênio Bucci, Friedman concorda que Xi Jiping está fazendo, em geral, a coisa certa. Só exagerou um pouco ao fazer Jack Ma “desaparecer”. Uau!

Xi Jiping está intervindo nas empresas de tecnologia porque é chefe de um estado autoritário e vê nessas empresas uma ameaça ao seu poder. Pelo visto, Friedman concorda com Lula, que afirmou, em uma antológica entrevista a um jornal chinês, que a China só chegou onde chegou porque tem um Estado forte. E põe forte nisso! Jack Ma que o diga.

Friedman e todos os seus colegas estão preocupados com a ameaça que os monopólios de tecnologia representam para a democracia. A intervenção de um governo autoritário para “resolver o problema” deveria ser suficiente para mostrar o quão delicado é este assunto de intervir na livre iniciativa e na liberdade de expressão. Não por outro motivo, os governos ocidentais estão patinando no controle dos tais “monopólios de tecnologia”. Afinal, fazer Zuckerberg “desaparecer” não é tão fácil, mas talvez seja a única solução, como demonstrado por Xi Jiping.

Todos sonham com um mundo bom, belo, justo e democrático, onde não haja “tensões sociais, desigualdade e pressão nos governos por parte de monopólios de tecnologia”. Xi Jiping resolveu esse problema. Queremos imitá-lo?