A rolagem da dívida pública

Quem tem menos de 40 anos de idade não vai se lembrar de uma expressão que era tristemente popular antes do Plano Real: overnight.

Antes do Plano Real, o mercado financeiro era assim: os pobres investiam na caderneta de poupança e os ricos, no overnight. Overnight, como o próprio nome diz, é uma aplicação que tem um dia de prazo. No dia seguinte, se você não fizesse nada, o dinheiro voltava para a sua conta. Claro que havia um mecanismo de reaplicação automática, de modo que não era necessário voltar a aplicar todo dia. Mas o importante é que a remuneração era definida diariamente. O Tesouro Selic é uma reminiscência daqueles tempos, pois, apesar de ser um título que vence daqui a alguns anos, sua remuneração é definida diariamente, de acordo com a taxa Selic do dia.

Depois do Plano Real, com o controle da inflação, começou a surgir um mercado de títulos com remuneração prefixada. Hoje, esse mercado representa cerca de 60% da dívida pública. Os outros 40% são o Tesouro Selic, a reminiscência do overnight. Em mercados de países desenvolvidos com economia estabilizada, 100% da dívida é prefixada.

Por que é importante o Tesouro poder emitir dívida prefixada? Por dois motivos: 1) Desvincular a política fiscal da política monetária. Quando se tem títulos públicos que dependem da taxa Selic (overnight), sempre que o BC precisa aumentar essa taxa, a dívida pública fica mais cara. Ou seja, uma decisão de política monetária (aumentar os juros) afeta a política fiscal (custo da dívida). 2) o mais importante, previsibilidade. Com taxas prefixadas não só o governo, mas todos os agentes econômicos, conseguem se planejar a longo prazo. E, como sabemos, os investimentos feitos pelas empresas, que são a base do crescimento econômico, precisam de algum grau de previsibilidade anos à frente, que o título com remuneração prefixada proporciona.

Este longo preâmbulo serve para explicar o alerta que o Tesouro fez ontem: está difícil de rolar a dívida prefixada mais longa.

Todos enxergam no Tesouro aquele baú sem fundo, de onde podemos sacar sobre o nosso futuro de maneira infinita. Afinal, os agentes econômicos são escravos dos títulos públicos. Se não comprarem títulos públicos vão comprar o quê? Assim, o Tesouro teria financiamento infinito, permitindo-lhe se endividar ad infinitum.

O alerta do Tesouro é o seguinte: os investidores compram os títulos sim, mas não os prefixados de longo prazo. Eles não querem mais esse risco. Eles querem financiar a dívida do governo cada vez mais no overnight. E por que? Porque o risco de calote aumentou.

Um país pode dar o calote na sua dívida de duas formas: 1) não pagando a dívida. Isso aconteceu na Argentina, mas nunca aconteceu no Brasil com a sua dívida doméstica e 2) inflação. A inflação “come” o valor da dívida prefixada, tornando-a mais barata para o governo e impondo prejuízo aos investidores. Por isso, estes preferem rolar a dívida no overnight em ambiente de inflação, como ocorria antes do Plano Real, ou cobrar taxas de juros prefixadas mais altas, para compensar o risco de inflação.

Este alerta do Tesouro vem em boa hora, quando há uma competição para ver quem é mais pródigo com os recursos públicos. Não, não é hora de austeridade. Estamos em emergência nacional, precisamos lançar mão de nossa poupança. Mas o Brasil não tem poupança, tem dívida. E a dívida vai aumentar uns 10% do PIB depois da crise. O que o Tesouro está alertando é que o custo para pagar essa dívida está aumentando. Só isso.

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