Organizando o capitalismo

“…acho que temos que organizar o capitalismo brasileiro, e o BNDES é o grande instrumento para essa organização.”

FHC – Diários da Presidência – Maio 1996

Em um blind test, juraria que era a Dilma dizendo isso.

Curioso notar que esse pensamento vem relatado como consequência de uma reunião com ninguém menos que Emílio Odebrecht, considerado por FHC como “muito competente em termos empresariais”, apesar “da firma Odebrecht ter ficada marcada pela corrupção na CPI dos Anões do Orçamento”.

E esse era FHC, o presidente mais lúcido que o Brasil já teve. Depois nos perguntamos porque o Brasil avança com essa lentidão exasperante.

Raciocínio lógico

Se Renan Calheiros for mantido na presidência do Senado mas retirado da linha sucessória da presidência da República, poderemos concluir que um réu pode ser presidente do Senado, mas não presidente da República. De onde se conclui que, para o STF, o Poder Executivo é mais digno do que o Poder Legislativo. Assim, o STF estará, na prática, acabando com a igualdade entre os Poderes da República.

Evento institucional grave

O documento assinado pela mesa do Senado invoca a independência dos poderes para justificar a desobediência à liminar do ministro Marco Aurélio Melo, que decidiu monocraticamente afastar da presidência do Senado o senador Renan Calheiros. Entendo que há ao menos duas incongruências combinadas aqui:

1) Ao dizer que não acataria a decisão do Supremo por esta ter sido monocrática, o Senado concorda implicitamente que o colegiado do Supremo tem o poder de afastar o seu presidente. Ora, se o colegiado tem este poder, também o tem um ministro que toma uma decisão monocrática, ainda que incorreta. Se assim não fosse, as decisões monocráticas deveriam ser abandonadas de todo, pois nada valeriam.

Mas o segundo ponto é o mais importante.

2) A decisão de Marco Aurélio Melo afrontou a independência entre os Poderes? Ora, quando o Supremo afastou Eduardo Cunha da presidência da Câmara, discutiu-se este ponto, e aparentemente não houve dúvida de que o Supremo poderia ter tomado aquela decisão. Naquele caso, entendeu-se que o Supremo não invadiu as atribuições da Câmara, pois entre estas não está a de julgar os seus pares por crime, sendo esta uma atribuição exclusiva do Supremo. A diferença entre um caso e outro não pode ser decisão monocrática versus decisão colegiada pois, como vimos no ponto acima, as duas têm o mesmo enforcement. Portanto, a decisão, por mais estapafúrdia que seja, deveria ter sido cumprida. Ao não ser que, e este é o ponto crucial no meu entender, O SENADO TENHA INVADIDO A COMPETÊNCIA DO SUPREMO. Se houve desrespeito à separação de poderes, foi do Senado em relação ao Supremo, e não vice-versa.

Como este imbroglio poderia ter sido resolvido pelo Senado? Simples: Renan acataria a decisão, o Senado faria pressão para que o Supremo julgasse rapidamente a liminar, que poderia ser derrubada, desmoralizando (mais uma vez) Marco Aurélio Melo, dado que a decisão foi mesmo estapafúrdia.

Como este imbroglio será resolvido agora, em que o Senado liderou uma desobediência civil? Sinceramente, não sei. O Supremo será obrigado a confirmar a liminar de Marco Aurélio, que de outra forma poderia ser rejeitada, mas ir adiante com qualquer outra penalização é institucionalmente inviável.

Este é um evento grave. De agora em diante, o Congresso decide quais decisões do Supremo sobre seus membros vai ou não acatar, e em que condições.

Compungidos

Milhões de cubanos acompanham, compungidos, o féretro de Fidel.

O problema de todo sistema totalitário é que não dá pra saber quantos desses milhões estão compungidos sinceramente.

A garotinha que não envelhece

Já ouvi gente boa e honesta colocando reparos à operação Lava-Jato. Que haveria prisões arbitrárias. Que os procuradores se colocariam como “salvadores da Pátria”. Que o Moro atuaria na zona cinzenta da lei.

A Lava-Jato veio desafiar as estruturas de poder baseadas no crime? Ou não passam de um bando de Savonarolas, que atropelam o Estado de Direito sob o pretexto puritano de “purificar” o país?

Este “choque de narrativas” me faz lembrar do filme Mente Brilhante, que conta a história do matemático e prêmio Nobel John Nash. Nash (atenção: spoiler!) sofria de esquizofrenia, e vivia, desde a juventude, uma vida dupla: a real e a imaginária. Na imaginária, havia alguns personagens com os quais Nash convivia, entre as quais uma garotinha. No ápice do filme, quando Nash desespera-se por não saber distinguir a realidade de suas alucinações, de repente se depara com a evidência que vai definir a distinção entre uma coisa e outra: a garotinha não envelhece. Ele nota isso, e descobre o seu mundo de alucinações.

A narrativa construída, em primeiro lugar, pelo PT, e abraçada gostosamente por baluartes da moralidade como Renan Calheiros, é de que o Ministério Público e o juiz Sérgio Moro estão destruindo o Estado de Direito no Brasil, achacando testemunhas, prendendo sem provas, liberando escutas, espetacularizando a justiça, imiscuindo-se nos assuntos “interna corporis” de outros poderes da república.

Segundo esta narrativa, as 10 medidas contra a corrupção seriam, na verdade, o instrumento final da Ditadura do Ministério Público. Pior que a ditadura militar, como várias vezes ouvimos dos “defensores do Estado de Direito”.

Articulistas influentes, como Reinaldo Azevedo, e fontes insuspeitas, como o editorial do Estadão, já alinharam-se, em maior ou menor grau, a esta leitura da realidade. Não é à toa que se produziu, como definiu Deltan Dalagnol outro dia, uma “fissura” entre a opinião pública e a operação Lava-Jato. E os procuradores da operação sabem que esta fissura é a morte da operação. Sem a opinião pública a seu lado, os procuradores e os juízes são nada perto dos interesses poderosos que estão sendo desafiados.

Mas, afinal, como distinguir alucinação de realidade? Onde está a “garotinha que não envelhece”, que nos dará a certeza de que a Operação Lava-Jato está agindo dentro da lei, ou, ao contrário, está destruindo o Estado de Direito no Brasil?

Poderia aqui entrar nas tecnicalidades. Por exemplo, a de que a essência do trabalho dos procuradores é acusar, e os empreiteiros/políticos acusados exercem plenamente o seu direito de defesa, pagando os melhores advogados do Brasil. Ou que Sérgio Moro pode ter as suas decisões reformadas pelas instâncias superiores, até o STF. Ou seja, há pesos e contrapesos, de modo que a história de “justiceiros” sem lei parece fora de lugar.

Mas, para mim, a “garotinha que não envelhece” fica evidente quando vejo, de um lado, Moro e Delagnol, e do outro, Lula, Renan, Temer, e toda a cambada do Congresso. Lula, Renan, Temer, são “a velha política que não morre”. Tem algo de muito estranho, mas muito mesmo, quando vemos um baluarte da moralidade como Renan defendendo o “Estado de Direito”. A “garotinha que não envelhece” é evidente.

Não se deixe enganar por alucinações. Temos uma oportunidade única de avançar no patamar civilizatório brasileiro.

Dia 4, nos encontramos na Paulista.

Construtores de utopias

“Na década de 90, aceitou algo do capitalismo mas, à diferença dos chineses, preservou o máximo de conquistas sociais. Sempre acreditou no “homem novo”, na vida sem egoísmo. Este, o seu maior mérito: não repudiou o que havia de ideais no comunismo. Sua meta estava na independência de Cuba e na justiça social; para isso incorporou o comunismo.”

Este é Renato Janine Ribeiro, hoje, no Valor Econômico. Entre ontem e hoje, li algumas análises sobre Fidel escritas por intelectuais de esquerda, para tentar entender a cabeça desse pessoal. Acho que esse trecho resume bem a coisa toda.

Eles simplesmente não ligam a miséria econômica e a ditadura feroz com a ideologia comunista. Todas as análises (e incluo aqui FHC) ressalvam o “grande ideal de Fidel”, e colocam o Estado policial e a perseguição política quase como acidentes de percurso, que não são suficientes para tisnar a Grande Obra do Homem, do Mito, do Herói.

Renato Janine e seus companheiros de ideologia não veem, ou não conseguem admitir, que a “construção do Homem Novo, solidário, sem egoísmo”, tem como instrumento necessário o estabelecimento de um Estado Totalitário. Sobre isto, recomendo a entrevista de Natan Sharansky, ontem, no Estadão. O dissidente soviético descreve com rara precisão o controle do pensamento em Estados Totalitários, único modo conhecido de implantar a Revolução do Homem Novo.

É curioso como esses intelectuais não conseguem (ou não querem) ver a contradição entre a comemoração das supostas “conquistas sociais” do regime cubano e a necessidade de “aceitar algo do capitalismo”. Ora, se as tais conquistas sociais são tudo o que o povo quer e precisa, pra que capitalismo? De onde essa necessidade de comércio e de livre iniciativa, na Sociedade do Homem Novo? Renato Janine termina seu texto perguntando se a figura de Fidel continuará inspirando aqueles que “lutam contra a miséria”! Caramba, então pra que capitalismo, se está tudo bem na ilha?

Renato Janine condena o regime chinês, “um capitalismo selvagem somado a uma ditadura, que se diz comunista mas é selvagem”. Ou seja, apesar de se dizer comunista, o regime chinês é selvagem. Aqui está, me parece, a grande desonestidade intelectual desse pessoal: se é selvagem, não é comunismo. O comunismo é virtude, e quem é contra não passa de um egoísta. A realidade das coisas é um mero detalhe para esses construtores de utopias.

A cor da ditadura

Tarso Genro: “um dos promotores da paz”

Franklin Martins: “Fidel simbolizava a ideia de que era possível lutar e vencer”

Cristovam Buarque: “Ele foi o herói da minha geração de latino-americanos, sobretudo como líder de um governo comprometido com a justiça social”.

PT: “a Revolução Cubana que conduziu junto com outros dirigentes de seu país foi uma realização do direito à autodeterminação dos povos, da busca da igualdade e justiça social”

Lula: “Será eterno seu legado de dignidade e compromisso por um mundo mais justo”

Dilma: “Fidel foi […] um visionário que acreditou na construção de uma sociedade fraterna e justa, sem fome nem exploração, numa América latina unida e forte”

Por que a ditadura militar no Brasil foi considerada criminosa e a ditadura cubana é considerada virtuosa? Aliás, a ditadura militar se auto-denominava “Revolução”, assim como a ditadura cubana e seus acólitos a chamam de Revolução Cubana. Muda a cor, o vício é o mesmo. Voltando à questão: por que a ditadura militar no Brasil foi considerada criminosa e a ditadura cubana é considerada virtuosa? Simples: porque o comunismo é um ideal que está acima da moral. Todo e qualquer meio é válido, desde que seja para a implantação da “justiça social”.

A ditadura militar no Brasil produziu, em seus primeiros 10 anos, um crescimento espetacular com inflação controlada. Ou seja, crescimento de renda real. Lembro, quando criança, em 1972, o carro de Garrastazu Médici passando em frente ao meu colégio na Av. Tiradentes, e o povo todo na calçada saldando entusiasmado. Era um governo popular. Mas, na visão da esquerda, mantinha as “estruturas” que perpetuavam a “dominação das elites” e a “subserviência ao império norte-americano”. Portanto, a ditadura militar não era ruim por ser uma ditadura, mas por não ser de esquerda. E o mais curioso é que Dilma Rousseff reproduziu muito da política econômica da ditadura militar, principalmente do governo Geisel, com seu nacionalismo tosco e seu gosto pelo endividamento.

Fidel Castro foi mais um ditadorzinho como tantos outros que infelicitaram e infelicitam a América Latina e a África. A sua aura vem do fato de que foi o único que conseguiu estatizar todos os meios de produção, e implantar de fato o comunismo, a meros 500km de Miami, desafiando a maior potência capitalista. Fez isso calando qualquer oposição, a qualquer preço, como faz qualquer ditador. Mas isso pouco importa: não se faz omelete sem quebrar os ovos, como dizia Stálin. Se é para implantar a “justiça social”, vale qualquer meio. Inclusive, recontar a história, chamando “ditadura” de “Revolução”, no melhor estilo da ditadura militar brasileira.

Brincando com fogo

Michel Temer está brincando com fogo. A economia vai demorar a se recuperar e os empregos vão demorar a voltar. O único apoio possível da opinião pública, neste momento, está ligado à ética. Temer privilegia a interlocução no Congresso em detrimento da opinião pública. Até que à tensão social causada pela recessão se junte a indignação pela conivência com a corrupção. Os malucos que invadiram o Congresso outro dia não estão sozinhos. Eles são só mais malucos. Temer está provocando os menos doidos, enchendo o potinho da indignação.

Temer, por favor, não me obrigue a escrever #foraTemer

Derrubando a mesa do jogo

Todas essas manobras no Congresso para melar a Lava-Jato, as chicanas de Lula e seus advogados, a “corrente de solidariedade” aos presos da Lava-Jato por parte de jornalistas “isentos” contra a “espetacularização” da justiça, enfim, todo esse movimento, me fez lembrar de uma cena que presenciei quando adolescente.

Estava eu no centro da cidade, quando me deparo com uma figura carimbada desses lugares: o “ilusionista dos três copinhos e uma bolinha”. O truque é velho: o golpista esconde uma bolinha debaixo de um dos três copinhos, mistura os copinhos rapidamente, e desafia alguém a encontrá-la, apostando algum dinheiro. Há sempre um comparsa, que aposta e ganha, ou que aposta e perde em uma ocasião em que ficou óbvio onde estava a bolinha. A ideia sempre é incentivar os incautos a apostarem.

Pois bem, estava eu observando o golpista, quando um sujeito resolveu arriscar, e apostou. Perdeu, como é óbvio. Mas percebeu o truque do golpista, que trocou a bolinha de lugar na última hora. Sim, porque o golpe está em diminuir a chance de ganhar de 33% para zero. O golpista aproveita alguma distração, muitas vezes causada pelo comparsa, para trocar a bolinha de lugar.

Pois o sujeito não desistiu. Apostou novamente, e dessa vez um bom dinheiro. Só que não ficou passivo. Assim que o golpista parou de mexer os copinhos, o apostador colocou a mão sobre o copinho onde estava a bolinha, segurando-a com firmeza.

Isto não estava na regra do jogo! O golpista não poderia agora mudar a bolinha de lugar! O que fez então? Segurou a mão do apostador, ambos segurando firmemente o copinho onde estava bolinha. Começaram então a discutir cada vez com mais violência, até que o golpista conseguiu derrubar a mesa, melando o jogo.

A PF descobriu o copinho com a bolinha, que os procuradores da Lava-Jato estão segurando com uma firmeza admirável. Cabe à sociedade não permitir que o mundo político e as viúvas de Lula derrubem a mesa.

Diálogo e aplicação da lei

Se tem uma palavra que vem me irritando profundamente nos últimos tempos é “diálogo”. Em si virtuosa, a palavra vem sendo usada completamente fora do seu significado, igualando desiguais.

Hoje mesmo ouvi a palavrinha em três ocasiões, dita por jornalistas da Globo News ao se referirem à situação na Venezuela, à tentativa de invasão da Alerj e à invasão propriamente dita da Câmara dos Deputados. “Falta diálogo”, é o mantra repetido, colocando nos ombros de todos os agentes o ônus da culpa pela situação. “Falta aplicação da lei”, eu diria.

Imagine sua casa sendo invadida por um ladrão. Você é assaltado, e o ladrão foge com seus pertences. No dia seguinte, a cobertura da Globo News enfatiza a “falta de diálogo” entre você e o ladrão, sem o qual a situação fugiu do controle, o que não interessa a ninguém. Absurdo, não?

Pois é. É exatamente isto que o uso da palavra diálogo usada fora de seu significado faz: igualar desiguais. Diálogo supõe duas partes iguais com interesses divergentes, e que têm legitimidade para dialogar. O que temos?

Na Venezuela, temos um chefe de poder executivo que vem interditando todas as formas de contestação ao seu mandato. Diálogo? Boa sorte Papa Francisco.

Na Alerj e na Câmara, grupos invadiram o recinto onde deputados fazem o diálogo de acordo com regras democráticas, pactuadas pela sociedade. Se qualquer grupo se achar no direito de invadir o parlamento, será a lei da selva, onde o mais forte fisicamente se impõe. Como dialogar com a truculência?

Nos episódios de invasão das escolas, a palavra diálogo também foi muito usada. Diálogo com quem? Com os invasores? Quem os fez representantes da sociedade para dialogar com as autoridades constituídas? Por que os interesses dos invasores são melhores ou mais representativos do que os de outros atores sociais, incluindo os pagadores de impostos que sustentam as escolas?

Antes do diálogo, a aplicação da lei. Depois, conversamos.