Sim, é calote

Sim, renegociar dívidas é calote.

Sim, os governos estaduais e municipais são todos caloteiros.

Mais alguma pergunta?

Agora sério. Digamos que, amanhã, o governo anuncie que não conseguirá pagar os títulos públicos que vencem em 2021, e postergue o vencimento para 2031. No entendimento do senador, não há que se falar em calote, pois o governo estaria apenas “renegociando” suas dívidas.

Quando Collor confiscou a poupança dos brasileiros, ele não chamou de confisco. Chamou de “congelamento”, que seria devolvido depois de 18 meses em 12 suaves prestações. E de fato o foi.

Sim, o papel aceita todas as palavras, inclusive as mais desaforadas. Quem não aceita desaforo é o dinheiro.

Calote

O governo vai usar precatórios, uma dívida líquida e certa, para bancar suas despesas.

Qual a diferença disso para não pagar um título público, também uma dívida líquida e certa?

Na minha terra isso chama-se CALOTE.

O patriotismo do mercado

Ontem Bolsonaro fez uma longa live sobre o tema do momento: teto de gastos.

Mostrou consciência de que se trata de aumento de endividamento, o que é bom. Mas (e sempre tem um ‘mas’), mostrou também ignorância sobre um tema básico: como funciona o mercado financeiro.

Não vou culpá-lo. Afinal, trata-se de tema difícil, que a maioria dos brasileiros realmente desconhece. Claro, poderíamos dizer que do presidente da República se deve exigir que pelo menos tenha noções básicas de como funciona a economia. Afinal, são dele as decisões que, em última instância, influenciarão a vida de todos os brasileiros. Mas deixa prá lá. Aqui no meu humilde espaço, vou tentar explicar porque é uma imbecilidade pedir “patriotismo” para o mercado.

O que é o mercado financeiro? Se fizéssemos uma pesquisa com brasileiros comuns, leigos, a resposta seria provavelmente algo parecido com “os grandes bancos” ou “os especuladores” ou ainda “os operadores da bolsa”. Estes são os personagens que encarnam essa entidade etérea chamada genericamente de “mercado financeiro”.

Sim, o mercado é isso também. Mas é muito mais do que isso. Vamos nos ater apenas à questão da dívida pública, que é o que nos interessa aqui. Afinal, o teto de gastos só existe para controlar a dívida pública.

A dívida pública brasileira totalizou 4 trilhões, 389 bilhões e 940 milhões de reais no final de junho. Ou, R$ 4.389.940.000.000, em números redondos. Isso representa mais ou menos 85% do PIB. Devemos chegar no final do ano com uma dívida de aproximadamente 5 trilhões de reais.

Vira e mexe os partidos mais radicais de esquerda levantam a bandeira da “auditoria da dívida”. Mas não tem segredo nenhum. Esta montanha de dinheiro não surgiu do nada. Foi fruto de um trabalho perseverante, em que necessidades muito nobres foram sendo empurradas para dentro do orçamento ao longo de décadas. Como diz o presidente em outro trecho de sua fala de ontem, é dinheiro “para a água no Nordeste, revitalização de rios, Minha Casa Minha Vida”. É óbvio que nunca se pede mais dinheiro para pagar lagostas no STF ou para alimentar as emas do Alvorada, mas, por algum motivo ainda misterioso, este dinheiro de fim tão nobre acaba pagando por este tipo de coisa.

Mas meu ponto aqui é outro. Quem são os financiadores desta dívida? Afinal, se há um devedor, há também um credor. Aí é que entra o famigerado “mercado financeiro”. Este seria o pérfido credor, aquele que pensa antes em si do que no país. Um anti-patriota, por assim dizer.

Vamos analisar a questão mais de perto. O Tesouro Nacional publica um relatório mensal em que divulga os detentores da dívida pública. Em junho, estes detentores eram os seguintes:

  • Previdência: 24,5%
  • Instituições Financeiras: 27,5%
  • Fundos de Investimento: 25,8%
  • Estrangeiros: 9,1%
  • Governo: 3,9%
  • Seguradoras: 3,9%
  • Outros: 5,4%

Observe que apenas 27,5% da dívida pública está nas mãos dos bancos. E, mesmo estes, não são “donos” desse dinheiro. O dinheiro que os bancos investem em títulos públicos pertencem aos depositantes e poupadores. O banco é apenas o intermediário entre o cliente e a dívida pública. Quando você deposita dinheiro na caderneta de poupança, ou compra CDB de um banco, este usa o dinheiro para emprestar para outras pessoas, inclusive para o governo.

O mesmo acontece com os Fundos de Investimento. Você aplica o seu rico dinheirinho em um fundo, e o fundo compra títulos públicos.

No caso da Previdência, os títulos públicos servem como lastro das aposentadorias a serem pagas. Os credores da dívida pública, neste caso, são os aposentados atuais e futuros.

Em resumo: os detentores da dívida pública somos todos nós que poupamos. A nossa poupança, de uma maneira ou de outra, acaba por financiar a dívida do governo. Ou seja, o mercado financeiro somos todos nós.

Esta noção é muito importante. O mercado financeiro, entendido de maneira estrita como o conjunto dos seus operadores, é apenas a ponta do iceberg. Os operadores do mercado são empregados daqueles que poupam e investem, e fazem o que estes desejam.

Tenho certeza que o presidente tem lá os seus investimentos. Será que ele seria patriota o suficiente para abrir mão de seus rendimentos? Ou, até melhor, doar o seu dinheiro para abater a dívida pública? Pois é disso que se trata. Os operadores do mercado são pagos pelos investidores para maximizar os ganhos e evitar perdas. Quando se diz que “o mercado não vai gostar disso ou daquilo”, o que se quer dizer é que os operadores vão tentar proteger os seus clientes de perdas. E os clientes somos todos nós que investimos.

Portanto, nada contra fazer as coisas por patriotismo. Trata-se de um sentimento muito nobre. Só tome o cuidado de saber quem é o patriota que vai colocar a mão no bolso pelo país.

Tadinho!

Eu era o garoto sentado nesta charge de Ziraldo, de agosto de 1974. Obviamente, só vi esta charge muitos anos depois, já jovem adulto, em um livro de coletâneas das charge do autor. Quando a vi, fiquei impressionado com a presciência do cartunista. Afinal, eu estava saindo da faculdade no fim da chamada “década perdida”, quando o país ainda pagava a conta da dívida irresponsavelmente assumida na década anterior.

Lembrei-me dessa charge durante grande parte do governo Dilma e voltei a lembrar agora, ao ler as inúmeras ideias do que fazer com o dinheiro surgido da “licença para gastar” dada pela epidemia. Nessas horas, olho para os meus filhos e falo: “tadinhos!”.

A rolagem da dívida pública

Quem tem menos de 40 anos de idade não vai se lembrar de uma expressão que era tristemente popular antes do Plano Real: overnight.

Antes do Plano Real, o mercado financeiro era assim: os pobres investiam na caderneta de poupança e os ricos, no overnight. Overnight, como o próprio nome diz, é uma aplicação que tem um dia de prazo. No dia seguinte, se você não fizesse nada, o dinheiro voltava para a sua conta. Claro que havia um mecanismo de reaplicação automática, de modo que não era necessário voltar a aplicar todo dia. Mas o importante é que a remuneração era definida diariamente. O Tesouro Selic é uma reminiscência daqueles tempos, pois, apesar de ser um título que vence daqui a alguns anos, sua remuneração é definida diariamente, de acordo com a taxa Selic do dia.

Depois do Plano Real, com o controle da inflação, começou a surgir um mercado de títulos com remuneração prefixada. Hoje, esse mercado representa cerca de 60% da dívida pública. Os outros 40% são o Tesouro Selic, a reminiscência do overnight. Em mercados de países desenvolvidos com economia estabilizada, 100% da dívida é prefixada.

Por que é importante o Tesouro poder emitir dívida prefixada? Por dois motivos: 1) Desvincular a política fiscal da política monetária. Quando se tem títulos públicos que dependem da taxa Selic (overnight), sempre que o BC precisa aumentar essa taxa, a dívida pública fica mais cara. Ou seja, uma decisão de política monetária (aumentar os juros) afeta a política fiscal (custo da dívida). 2) o mais importante, previsibilidade. Com taxas prefixadas não só o governo, mas todos os agentes econômicos, conseguem se planejar a longo prazo. E, como sabemos, os investimentos feitos pelas empresas, que são a base do crescimento econômico, precisam de algum grau de previsibilidade anos à frente, que o título com remuneração prefixada proporciona.

Este longo preâmbulo serve para explicar o alerta que o Tesouro fez ontem: está difícil de rolar a dívida prefixada mais longa.

Todos enxergam no Tesouro aquele baú sem fundo, de onde podemos sacar sobre o nosso futuro de maneira infinita. Afinal, os agentes econômicos são escravos dos títulos públicos. Se não comprarem títulos públicos vão comprar o quê? Assim, o Tesouro teria financiamento infinito, permitindo-lhe se endividar ad infinitum.

O alerta do Tesouro é o seguinte: os investidores compram os títulos sim, mas não os prefixados de longo prazo. Eles não querem mais esse risco. Eles querem financiar a dívida do governo cada vez mais no overnight. E por que? Porque o risco de calote aumentou.

Um país pode dar o calote na sua dívida de duas formas: 1) não pagando a dívida. Isso aconteceu na Argentina, mas nunca aconteceu no Brasil com a sua dívida doméstica e 2) inflação. A inflação “come” o valor da dívida prefixada, tornando-a mais barata para o governo e impondo prejuízo aos investidores. Por isso, estes preferem rolar a dívida no overnight em ambiente de inflação, como ocorria antes do Plano Real, ou cobrar taxas de juros prefixadas mais altas, para compensar o risco de inflação.

Este alerta do Tesouro vem em boa hora, quando há uma competição para ver quem é mais pródigo com os recursos públicos. Não, não é hora de austeridade. Estamos em emergência nacional, precisamos lançar mão de nossa poupança. Mas o Brasil não tem poupança, tem dívida. E a dívida vai aumentar uns 10% do PIB depois da crise. O que o Tesouro está alertando é que o custo para pagar essa dívida está aumentando. Só isso.

Lições de macroeconomia

Nesses 3 tuítes, talvez tenhamos o conjunto da obra mais bem acabado dos equívocos mais comuns em macroeconomia, e que levam a políticas públicas desastrosas. Vejamos:

1) O governo NÃO TEM capacidade de definir o quanto arrecada. O tamanho da arrecadação depende de dois fatores: crescimento econômico e capacidade de aumentar carga tributária. O crescimento econômico não depende da vontade do governo (voltaremos a este ponto no item 2) e a capacidade de aumentar impostos existe mas só até certo ponto. Basta ver a imensa repulsa da sociedade brasileira, hoje, ao aumento de QUALQUER imposto. Portanto, assumir que o governo pode arrecadar o quanto quiser é uma premissa temerária, para dizer o mínimo.

2) Quando o governo gasta, está DESTRUINDO VALOR, não criando valor. Para gastar, o governo precisa arrecadar ou endividar-se. Ao fazer isso, está transferindo renda de uma parte da sociedade para a outra, com o pedágio da máquina governamental no meio. O resto é ilusão de ótica. Se o tal “multiplicador keynesiano” existisse, não existiria país pobre no mundo, era só o governo gastar como se não houvesse amanhã. Incentivos de curto prazo cobram o seu preço a longo prazo, não existe crescimento econômico “de graça”. Os anos Dilma deveriam servir como exemplo.

3) O governo emite títulos em sua própria moeda fiduciária, é verdade. Mas a moeda deixa de ser fiduciária (confiável) se o governo abusa desse poder. Não à toa, a moeda passa a ser um mero papel pintado em países que não respeitam regras macroeconômicas básicas.

4) O governo NÃO DEFINE as taxas de juros de sua dívida. Este talvez seja o erro mais primário de todo o raciocínio. A taxa de juros é definida pelo credor. Se este não quiser rolar a dívida por aquela taxa, vai sair do País. Existem efetivamente agentes econômicos que não têm essa prerrogativa, e são reféns da dívida pública. Mas mesmo estes vão preferir rolar sua dívida no overnight do que prefixar a uma taxa que considerem baixa demais. E nenhum governo consegue se sustentar rolando sua dívida no overnight, a não ser em ambientes hiperinflacionários. Mas ninguém quer hiperinflação, confere? A esse propósito, a Argentina acabou de dar calote na sua dívida emitida em sua própria moeda. A Rússia fez o mesmo em 1998. Por que? Onde estão os “financiadores na taxa determinada pelo governo”?

Acho que o denominador comum de todos esses erros está na confusão entre curto e longo prazo. O governo tem, de fato, capacidade de se endividar, criar dinheiro, criar impostos e estimular a economia no curto prazo. Mas essas coisas todas têm um custo, a ser pago no longo prazo. O problema é que um dia o longo prazo chega. E, como diria o conselheiro Acácio, as consequências vêm depois.

Enxugando gelo

Mansueto faz um apanhado abrangente de todos os socorros concedidos aos Estados desde 1996. E os Estados continuam quebrados.

Existe uma lógica inescapável da psiquê humana, e que vale tanto para os governos quanto para as famílias: você sempre vai gastar o dinheiro disponível, qualquer que seja o montante, e sempre vai sobrar mês no final do seu salário.

Isso acontece porque as necessidades humanas são infinitas. Nunca estamos satisfeitos com o que temos, sempre queremos mais. Quando ganhamos um pouco mais, temos um alívio temporário, para voltar a sofrer dentro de pouco tempo.

A solução é apontada por Mansueto no artigo: gastar menos, controlar as despesas. Senão, estaremos enxugando gelo, como já estamos fazendo nos últimos 25 anos.

Regra de ouro

A chamada “regra de ouro” determina que o governo não pode emitir dívida para pagar despesas correntes. Somente pode assumir novas dívidas para investimentos e pagamento de juros das dívidas atuais.

Comparando-se com uma família, é o mesmo que dizer que a família não pode tomar empréstimos para pagar comida, roupa e escola. Só pode assumir novas dívidas para comprar casa ou para pagar os juros das dívidas atuais.

Trata-se de uma regra prudencial. Imagine uma família que não consegue pagar comida, roupas, escola, saúde com o seu próprio salário, e precisa tomar empréstimos. Está claro que é uma questão de tempo para esta família quebrar. Mais cedo ou mais tarde, vai precisar apertar os cintos. Com um agravante: os gastos com os juros da dívida tornarão a tarefa muito mais difícil.

Chegou a hora dolorosa da família Brasil apertar os cintos. Todos os que dependem do Estado para a sua sobrevivência (educação pública, saúde pública, subsídios, aposentadorias, funcionários públicos), todos serão cortados. Não há alternativa para esta família.

Há os que dizem que comparar um país com uma família não é totalmente adequado, pois um país pode emitir seu próprio dinheiro, seja via emissão de novas dívidas, seja impressão de papel moeda mesmo. Só que não.

Imagine que não existisse a “regra de ouro”. Assim, o Tesouro poderia emitir dívida quanto quisesse, mesmo que fosse para pagar escolas, saúde e aposentadorias. Faltaria combinar com os russos que financiam a dívida. Estes precisam confiar que a dívida eventualmente será paga sem precisar lançar mão da emissão de moeda. Claro, podemos acreditar que os credores estarão sempre dispostos a rolar as dívidas, bastando, para isso, pagar uma taxa de juros compatível com o risco. Obviamente, esta taxa de juros será crescente, na medida em que o risco aumenta.

O Japão parece desmentir a tese acima. Com mais de 250% do PIB em dívida doméstica, o Japão paga taxa de juros próxima de zero para os seus credores. Existe, no entanto, uma diferença fundamental: a poupança japonesa é gigantesca, enquanto a poupança brasileira é bem ridícula. Assim, faltariam financiadores locais (que o Japão tem de monte), e precisaríamos de financiadores estrangeiros. Que podem não acreditar que o governo não vai dar calote na dívida. Se nem os locais acreditam…

Voltando ao leito. Só existem duas alternativas à austeridade: calote ou inflação, o que vem a dar no mesmo. Não, não existe a alternativa de uma infinita paciência dos credores a juros módicos.

A necessidade de que o Congresso aprove verba suplementar de R$250 bi (na verdade, permissão para aumentar a dívida nesse montante) para pagar despesas básicas é apenas o primeiro sinal de que realmente acabou o dinheiro do governo. A coisa só vai piorar.

Sentar para negociar com quem?

De maneira geral, boa entrevista do Mourão hoje no Valor. Diagnóstico correto sobre o que impede o crescimento do PIB. Mas quando desce aos detalhes…

Mourão ainda vive na década de 80 quando fala da dívida pública. Como se o governo devesse pra meia dúzia de bancos e fosse possível sentar em uma mesa e renegociar a divida…

A dívida pública está nas mãos dos investidores em geral, através principalmente de fundos de investimento e fundos de pensão. Os administradores profissionais desses fundos, no final do dia, fazem o que os donos do dinheiro querem. E o que queremos? Rentabilidade com segurança.

O Brasil paga muito juros porque os juros são altos e a dívida é gigante. As duas coisas estão interligadas: se a dívida fosse menor, os credores teriam mais confiança e cobrariam juros menores. Além disso, quanto menos dívida no mercado, mais sobra dinheiro, diminuindo a pressão sobre os juros. Uma questão de oferta e demanda.

Não tem isso de “negociação”. O que existe é o mercado de dívida. Se o governo fizer a lição de casa, os juros exigidos pelos credores (repito, todos os que temos investimentos no mercado) será menor. Isso se dará de maneira natural. Isso de “sentar pra negociar” é uma rematada bobagem. Ainda bem que Mourão, ao que parece até o momento, será uma figura decorativa no novo governo.