Não contem comigo

A vantagem (ou desvantagem) de ser mais experiente (velho não!) é lembrar-se das coisas mais antigas. No final de 2012, o então governo Dilma fez uma mandracaria regulatória (a MP 579) misturada com redução de encargos, que conseguiu baixar o preço da energia elétrica em 20% em 2013. Faço a análise dessa MP no episódio 6 da série A Economia Brasileira na Era PT. Pois bem. Os petistas, a exemplo dos bolsonaristas de hoje, não se cansavam de repetir que o governo do PT havia conseguido reduzir as tarifas, e quem criticava estava só exercitando o seu direito ao choro.

Nada como a perspectiva do tempo. Aquela MP se mostrou um desastre de proporções bíblicas, desarrumando o setor elétrico e cavando um buraco orçamentário que estamos pagando até hoje. E as tarifas de energia elétrica voltaram a subir com força nos anos seguintes.

Fast forward para 2022. Bolsonaristas comemoram a queda dos preços dos combustíveis no melhor estilo petista de 2013. Seria como que a prova definitiva de que, graças a Bolsonaro, a vida do povo está melhorando, e todo e qualquer “mas” não seria mais do que mimimi ou choro de perdedor. O problema, como sempre, é o teste do tempo.

A queda do preço dos combustíveis se deu pelo corte de impostos arrecadados pelos estados. Alguém aí viu algum estado anunciando um ajuste fiscal através do corte de despesas? Não, você não perdeu nenhum anúncio. É que não aconteceu. As despesas continuam exatamente do mesmo tamanho. Não é muito difícil antecipar o que vai acontecer nos próximos anos: depois de acabar a gordura da arrecadação por conta da inflação, os estados vão começar a quebrar um atrás do outro. E adivinha quem vai ter que socorrer? Você, que está economizando algum dinheiro com o combustível mais barato agora, sugiro que guarde o montante economizado para pagar a conta do aumento de impostos e/ou aumento dos juros e/ou aumento da inflação no futuro para pagar a conta.

Alguns petistas, quando escrevi a série sobre a economia brasileira na era PT, se disseram, com uma ponta de ironia, ansiosos para ver outra série sobre o governo Bolsonaro. Expliquei que, em economia, é preciso ter a perspectiva do tempo. Decisões que parecem boas hoje só mostram todo o seu potencial destrutivo ao longo do tempo. Portanto, seria preciso aguardar alguns anos após o fim do governo Bolsonaro para julgar a sua obra.

Nesse sentido, ainda é muito cedo para dizer que o governo Bolsonaro é superior ao governo PT em termos de política econômica. Na verdade, os primeiros 4 anos do governo Lula foram exemplares nesse aspecto. Se alguém escrevesse uma análise da economia brasileira no final do primeiro governo Lula, a balança seria francamente positiva. Claro que o ambiente externo havia ajudado, ao contrário desses 4 primeiros anos do governo Bolsonaro, mas Lula se ajudou também: aprovou uma reforma da previdência dos funcionários públicos, manteve a estrita disciplina fiscal, respeitou a autonomia do BC, aprovou algumas reformas microeconômicas. Nada faria supor o que viria nos anos seguintes.

Quer dizer, nada não. No segundo episódio da minha série de artigos, chamo a atenção para os sinais que já se faziam presentes ainda no 1o mandato de Lula sobre o desastre que estava por vir. Claro, tenho o benefício do hindsight, de já saber o final da história. Na época, pouca gente, inclusive eu, deu a devida importância a esses sinais.

Tendo a experiência como guia, os sinais emitidos pelo governo Bolsonaro são preocupantes. O populismo fiscal virou a norma. Pode não haver o viés ideológico que orientou os passos dos governos PT na economia, mas o efeito final sobre as contas públicas é o mesmo. Nesse sentido, os quatro primeiros anos do governo Lula foram claramente superiores aos quatro primeiros anos do governo Bolsonaro. Claro, sempre se pode dizer que, se Lula tivesse o mesmo azar de Bolsonaro, teria feito a mesma coisa ou ainda pior. Pode até ser verdade, não temos o contrafactual. Mas o ponto é que, se nenhum governante seria capaz de fazer algo diferente do que Bolsonaro fez, dadas as suas condições concretas, então, na prática, tanto faz quem vai ser colocado lá na cadeira do presidente. Essa espécie de “fatalismo econômico”, traduzido na frase “não tinha como fazer algo diferente”, é o aval para o voto nulo, dado que tanto faz mesmo.

Enfim, não contem comigo na comemoração de medidas econômicas populistas.

Cristal trincado

A primeira medida de impacto do governo Temer foi a aprovação da PEC do teto de gastos, no final de 2016. Os credores da dívida olharam aquilo e pensaram: “Puxa, agora é pra valer! A disciplina fiscal está inscrita na Constituição! É muito difícil mudar isso, precisa de um quórum muito alto”.

De fato, o saldo positivo nas contas públicas durante 15 anos seguidos foi obtido sem que houvesse uma lei do “superávit primário”. O 2o governo FHC elevou a carga tributária, o governo Lula navegou uma onda de crescimento global e o governo Dilma, até 2014, varreu pra debaixo do tapete despesas (as famosas “pedaladas”), mas todos tinham um compromisso não escrito de manter o superávit primário, compromisso este crível, pois suportado por um track record de vários anos. Tanto era assim que, em 2015, quando o governo mandou pela primeira vez um orçamento prevendo déficit primário, foi um rebuliço tal que tiveram que mandar outro, prevendo superávit. Mas o cristal já estava trincado, principalmente porque começava a vir à tona os truques usados para obter os superávits nos anos anteriores.

Com o fim da era dos superávits primários, era necessário um movimento forte, que recuperasse a credibilidade do governo junto aos seus financiadores. Este movimento foi a PEC do teto de gastos. Inscrito na Constituição, o teto dava a garantia de que os superávits voltariam a ser produzidos no futuro. Era uma questão matemática: com as despesas aumentando somente com a inflação e as receitas aumentando com o PIB nominal, em algum momento estas ultrapassariam aquelas.

Bolsonaro, uma vez eleito, trouxe Paulo Guedes, um fiscalista de quatro costados, para comandar a economia. O ministro até cunhou um termo, os “fura-teto”, para se referir àqueles que, dentro do governo, tramavam despesas além do teto. Até que chegou o mês de outubro de 2021. Pressionado politicamente a encontrar solução para o aumento de gastos no ano seguinte, ano eleitoral, o governo patrocinou a PEC dos precatórios, que, além de postergar o pagamento dessas dívidas, espertamente mudava a data para a medição da inflação usada para o cálculo do teto. Essa mudança abriu um espaço adicional no teto, uma espécie de claraboia.

Guedes jurou que não se tratava de abandonar o teto, mas o estrago já estava feito. Ficou claro para os credores que o fato de ter uma PEC do teto não trazia segurança alguma. Uma outra PEC poderia modificá-la, e não era assim tão difícil obter quórum, se Executivo e Legislativo estivessem irmanados no mesmo objetivo de gastar além dos limites. Ali se quebrou um cristal, assim como havia acontecido em 2015.

O anúncio de uma nova PEC para subsidiar os combustíveis é apenas a confirmação dessa suspeita, a de que a PEC do teto não é um compromisso sério só pelo fato de ser uma PEC. O compromisso fiscal, no final do dia, depende da credibilidade do governo, não de uma lei.

O programa de governo do PT, recém divulgado, afirma, com todas as letras, que vai acabar com o teto de gastos, pois a regra “perdeu credibilidade”. É com dor no coração que falo isso, mas o PT está certo neste caso. O regime fiscal brasileiro perdeu credibilidade, porque fabricamos PECs ao gosto da necessidade do momento. Quem deveria guardar a chave do cofre, se presta a encenar óperas bufas, como o anúncio de ontem. Depois não entendem porque o mercado não vê muita diferença entre Lula e Bolsonaro.

Populismo tarifário

A nova fórmula de cálculo do ICMS, proposta pelo presidente da Câmara, é a seguinte: o imposto incidiria sobre a média de preços dos combustíveis nos últimos dois anos, e permaneceria fixo durante um ano. Essa fórmula retiraria permanentemente receitas dos estados somente na implausível hipótese de que o preço do petróleo subisse para sempre. Caso o preço do petróleo caísse (o que um dia vai acontecer, como sempre aconteceu), os estados vão travar um preço mais alto do petróleo durante algum tempo.

O efeito sobre os preços dos combustíveis é que o repasse tanto da alta quanto da baixa do preço do petróleo será mais lento. Quando o preço do petróleo baixar no mercado internacional, é bem provável que subamos vários lugares no ranking dos combustíveis mais caros do mundo.

Do ponto de vista de arrecadação de longo prazo, dá na mesma: o que não for arrecadado agora será compensado no futuro, com bases de cálculo mais altas do que aquelas que seriam justificadas pelos preços correntes do petróleo.

Do ponto de vista de sinalização para o consumidor, trata-se de medida distorsiva: o preço alto do petróleo sinaliza escassez, o que deveria ser acompanhado por redução do consumo. O preço mais baixo artificialmente leva a uma demanda incompatível com a oferta do produto. E vice-versa: quando o preço do petróleo cair, a demanda ficará aquém da oferta, pois o preço do combustível estará artificialmente alto.

Finalmente, do ponto de vista da inflação, essa metodologia representará um alívio imediato, mas ao custo de uma queda da inflação mais lenta ao longo do tempo, quando o preço do petróleo cair. Particularmente, acho que essas fórmulas ad hoc introduzem mais distorções que benefícios. Mas o populismo tarifário sempre fala mais alto.

O Brasil tá lascado!

“Os governadores têm de se sensibilizar, têm que dar sua cota de sacrifício”.

Falou em redução de impostos, eu sou o primeiro na fila a aplaudir. O problema é quando essa redução de impostos não vem acompanhada de redução de gastos. Então, a redução de impostos se transforma em aumento de dívida.

A maior parte dos estados está quebrada. O que Lira está sugerindo é que os estados se endividem ainda mais. Tenho uma outra sugestão: que tal o governo federal subsidiar a gasolina, devolvendo para os estados uma eventual renúncia fiscal do ICMS? Ah, não tem dinheiro? Pois é…

Lira estava falando desde a sua base eleitoral, em Alagoas, estado governado pelo seu desafeto Renan Filho, do clã Calheiros. Não por outro motivo, Fernando Collor o estava acompanhando no palanque. Ao pedir “sensibilidade” aos governadores, Lira estava fazendo política paroquial com um assunto nacional de extrema importância. É desse nível de “estadista” que dependem os destinos da nação. Como dizia o Gil do Vigor, o Brasil tá lascado.

Briga de rua

É realmente inacreditável a capacidade de Bolsonaro arrumar briga que, no final, só vai prejudicá-lo. O último caso é o dos preços dos combustíveis.

O preço do petróleo no mercado internacional está despencando por conta do coronavírus, refletindo uma queda pontual do consumo chinês. A Petrobras está aproveitando para diminui os preços da gasolina em suas refinarias. Seria uma ótima notícia, que seria surfada por qualquer governo. Mas não, Bolsonaro arrumou um jeito de transformar uma boa notícia em uma briga de rua.

Ocorre que a diminuição dos preços nas refinarias não está chegando nas bombas. Alguém soprou para o presidente que o problema é a forma de cálculo do ICMS: como os Estados consideram a base de cálculo fazendo uma média de 15 dias, a queda dos preços demora um pouco para afetar essa média. O resultado é o aumento da incidência do imposto, pois a base de cálculo é maior do que o preço na ponta. O efeito inverso também ocorre: quando há um aumento dos preços nas refinarias, a base de cálculo demora um pouco a ser recalculada, e a incidência do imposto fica proporcionalmente menor. Não sei porque existe essa metodologia de cálculo, suponho que seja para facilitar a administração dos impostos.

Enfim, seria apenas uma questão de dias para que os preços começassem a diminuir nas bombas, como sempre. Mas Bolsonaro viu aí uma oportunidade de estocar os que ele vê como inimigos políticos: os governadores, principalmente Doria e Witzel. Começou uma discussão extemporânea sobre impostos, justamente às vésperas de começar a tramitação pra valer da reforma tributária.

Como sabemos, essa reforma é complicadíssima, e não sai se não houver um alinhamento com os Estados. Qual o objetivo de Bolsonaro ao arrumar briga com os governadores? Arrumar uma desculpa para o eventual fracasso da reforma? Enfraquecer seus adversários políticos de 2022? Posar de defensor dos caminhoneiros às custas dos governadores? Ou se trata apenas de um ato irrefletido de um presidente que não está preparado para enfrentar questões desta complexidade? Qualquer que seja a explicação, nenhuma justifica esse bate-boca ginasial.

Estamos todos ansiosamente aguardando a proposta de reforma tributária do governo desde a aprovação da reforma da previdência. Já lá se vão 6 meses. O máximo que saiu do Planalto foram ensaios de uma CPMF natimorta e agora o “imposto sobre o pecado”. E, além de não ter proposta, Bolsonaro destrói as pontes que vai precisar para aprovar uma reforma digna do nome. Vamos depender, mais uma vez, do Congresso para fazer a lição de casa.