Devedores eternos

Assisti ao jogo na companhia de meu filho e seus amigos, todos na faixa de 21-22 anos. Ainda não viram o Brasil levantar o caneco. Eu, com meus quilômetros rodados, não estava dando tanta importância para a derrota, até que vi meu filho e seus amigos realmente, profundamente transtornados.

Lembrei da minha primeira grande frustração em copa do mundo. Foi em 1982. Tinha então 16 anos, que é a idade em que o garoto que gosta de futebol se entrega de corpo e alma à sua paixão. Lembro como se fosse hoje do gol de Falcão, a porta de saída de um labirinto de angústia e sofrimento que foi aquele jogo contra a Itália. E lembro do gosto amargo da macarronada que minha mãe preparou para o almoço daquele dia.

O gol de Neymar deve ter tido o mesmo efeito para o meu filho e seus amigos que o gol de Falcão em 1982. Transportei-me no tempo e consegui entender os seus sentimentos.

Tentei consolá-los, dizendo que eu mesmo só vi o Brasil campeão com 28 anos de idade. O que foi uma pena. Não deve haver sensação melhor no mundo do que ver a seleção campeã quando se é adolescente ou muito jovem. Na medida em que ficamos mais velhos, a experiência da vida nos impede cada vez mais de nos entregarmos de corpo e alma a uma paixão, ainda mais esportiva. Curtimos, vibramos, mas é muito diferente.

Neymar é um devedor eterno desta geração de garotos, assim como Zico é um devedor da minha geração. São gênios do futebol, mas devedores. A sua dívida é impagável, pois o tempo passa e não volta.

O verdadeiro problema do futebol brasileiro

Neymar, em um desabafo pouco comum, diz que não entende porque a seleção brasileira não desperta mais o interesse do brasileiro médio. Segundo o craque do PSG, os jogos são pouco comentados, as pessoas nem sabem quando vai ser. Ele reconhece que não sabe porque isso está acontecendo e nem quando começou.

Eu tenho uma hipótese. E, como toda a hipótese, pode estar certa, parcialmente certa ou totalmente errada. Ei-la.

Tirando os aficcionados por um esporte, o brasileiro médio (não sei se isso acontece em outros países) vive de ídolos. Acompanhamos um esporte quando há um ídolo brasileiro se destacando. As corridas de F1 são uma sombra do que eram, em termos de audiência, de quando podiam contar com Nelson Piquet e Ayrton Senna. Felipe Massa foi o último suspiro. Desde então, só os aficcionados acompanham. O mesmo com o tênis depois de Guga. Precisamos de ídolos para nos interessar por esportes.

Alguém dirá que no futebol é diferente. Sendo o país do futebol, a seleção deveria chamar a atenção por si só. Mas não é bem assim. O futebol também é um esporte de aficcionados. No Brasil, claro, há muito mais aficcionados por futebol do que por todos os outros esportes juntos. Mas não deixa de ser um esporte de aficcionados. E estes, até por serem aficcionados, costumam prestar muito mais atenção aos seus clubes de coração do que na seleção brasileira. A seleção precisa atrair a atenção dos não-aficcionados pelo esporte, senão não funciona. E estes dependem de ídolos. E é aqui que chegamos ao problema.

A última bola de ouro que um jogador brasileiro recebeu foi no longínquo ano de 2007, com Kaká. Antes dele, uma geração de ouro do futebol brasileiro foi agraciada com o prêmio: Ronaldo em 1997 e 2002, Rivaldo em 1999 e Ronaldinho Gaúcho em 2005. Desde então, apenas Neymar chegou na lista final e, mesmo assim, ficou longe de ser eleito.

Vivemos uma longa entressafra de craques. Quando, em 2020, Marinho foi cogitado pela imprensa esportiva para compor a seleção, pensei com meus botões: é, estamos realmente precisando de craques. O que vemos na seleção é uma sucessão de nomes pouco conhecidos, que, como Marinho, brilham durante uma temporada para depois voltar ao ostracismo. As convocações de Tite nos últimos quatro anos são de chorar. E o pior: não haveria nomes melhores mesmo.

A distância de nossos jogadores do país (alguns deles quase não jogaram por aqui) só piora a situação. Não que seja imprescindível. Os craques citados acima jogavam, todos, na Europa. Mas eram craques, o que facilita tudo. Quando se é um jogador mediano, estar distante o torna um ilustre desconhecido para a parte não aficcionada da torcida brasileira.

E, como cereja do bolo, chegamos a Neymar. Depois da temporada no Santos em 2010/2011, Neymar pouco fez para justificar sua fama de craque, essa é a dura realidade. Um acidente o tirou do vexame contra a Alemanha, em 2014, fazendo-nos crer que, com ele em campo, as coisas seriam diferentes. Esquecemos do angustiante jogo contra o Chile, nas oitavas, em que a trave nos salvou da desclassificação humilhante, e o sofrível jogo contra a Colômbia nas quartas. Em 2018, um apagado Neymar não foi suficiente para nos livrar da desclassificação contra uma Bélgica aplicada. Enfim, o nosso fora de série, aquele que deveria ser o atrativo dos não aficcionados, além de tudo, tem uma imagem pública questionável, parecendo mais interessado em marketing do que em jogar bola.

Talvez Neymar pudesse encontrar a resposta para a sua angustiante pergunta no deserto em que se tornou o futebol brasileiro, em que ele mesmo é o símbolo máximo.

Cuidado com o seu ponto de vista

O tal do”bônus ético” pago pelo PSG aos seus jogadores tem causado polêmica no mundo do futebol. Segundo uma reportagem publicado ontem no Estadão, Neymar e companhia ganhariam o tal bônus por não criticarem o técnico em público, não serem expulsos, não chegarem atrasados aos treinos e até por aplaudirem a torcida após o jogo. Afinal, é ético que os atletas sejam pagos para fazer aquilo que não passa de uma obrigação de qualquer ser humano, que é agir bem?

A polêmica é indevida e mostrarei porque.

É muito comum e estamos todos acostumados a que os clubes multem seus atletas por mau comportamento. Chegou atrasado no treino? Multa. Foi expulso? Multa. Criou confusão? Multa. Isso está previsto no contrato e a ninguém ocorre que seja estranho ou injusto. Pelo contrário, a quem quer que se pergunte, todos acharão muito justo e razoável.

Do ponto de vista estritamente econômico, não faz a mínima diferença uma multa por mau comportamento ou um bônus por bom comportamento. Levar uma multa por chegar atrasado ou um bônus por chegar na hora terá exatamente o mesmo efeito no bolso do atleta, correspondente a exatamente o mesmo ato. Por que então aceitamos naturalmente a multa e torcemos o nariz para o bônus? Esta pergunta foi respondida por dois psicólogos israelenses, Daniel Kahneman e Amos Tversky, que criaram o que se convencionou chamar de Finanças Comportamentais. Kahneman ganhou o prêmio Nobel de economia em 2002 (Tversky já havia falecido) por este trabalho, publicado em 1979.

O artigo de Kahneman e Tversky que mereceu o Nobel chama-se The Prospect Theory, o que, em uma tradução livre, seria algo como A Teoria da Perspectiva. Segundo os dois psicólogos, as pessoas tomam decisões diferentes para o mesmo problema conforme o problema lhes é apresentado.

Um exemplo clássico (vou citar de memória, os números podem não ser estes), é a decisão sobre adotar uma vacina em uma comunidade. A um grupo de pessoas, o problema foi apresentado da seguinte forma: “uma comunidade de 600 pessoas vai receber a vacina. Destas, estima-se que 400 se salvarão. Você adotaria esta vacina?” Para um segundo grupo, o enunciado era diferente: “uma comunidade de 600 pessoas vai receber a vacina. Destas, estima-se que 200 irão morrer. Você adotaria esta vacina?”

A maioria (cerca de 70%) dos que leram a pergunta em sua primeira forma respondeu que adotaria a vacina. Já no segundo grupo, surpreendentemente ocorreu o inverso: 70% das pessoas disse que NÃO adotaria a vacina! Note novamente que o problema é estritamente o mesmo. Mas a forma de apresentá-lo leva a respostas completamente diferentes.

A isto os dois psicólogos deram o nome de Prospect Theory, ou seja, a decisão de um agente depende da sua perspectiva em relação ao problema. Isto tem muitas implicações práticas.

Por exemplo, se o governo quiser aprovar a reforma da Previdência, precisa apresentá-la como o fim dos privilégios e não como uma retirada de direitos. No fim, o efeito financeiro é absolutamente o mesmo. Mas a aceitação pública é totalmente diferente.

Outro exemplo foram as eleições: Bolsonaro somente se tornou uma opção palatável para uma parcela da população porque foi quem melhor encarnou o anti-petismo. Assim como o PT se tornou palatável para uma parcela da população porque era a alternativa anti-Bolsonaro. A pergunta respondida por esses eleitores não foi “você vota no Bolsonaro?” ou “você vota no PT?”, mas sim “você vota contra o PT?” ou “você vota contra o Bolsonaro?”. O efeito final é o mesmo, mas a mudança de perspectiva faz com que a escolha fique muito mais palatável.

Portanto, antes de criticar Neymar por ganhar um bônus por bom comportamento, preste atenção na forma como você pensa no problema. Pode estar aí o verdadeiro problema.

Uma frase fora de contexto

“Confissão de Neymar divide opiniões”

Verdade. Alguns acharam ridícula, outros acharam estapafúrdia e outros ainda acharam que foi um tiro no pé.

Às vezes eu acho que os jornalistas aprendem uma série de frases feitas na faculdade, mas têm dificuldade de usá-las no contexto correto.

Entressafra

Este infográfico do Estadão mostra tudo e não esconde nada. Mostra a entressafra de craques que o futebol brasileiro atravessa desde meados da década passada. O último a receber a bola de ouro foi Kaká, em 2007, e desde 2011, com exceção do ano passado, apenas Neymar aparece entre os 10 primeiros. Apenas como comparação, entre 1994 e 1998 e entre 2002 e 2007, sempre mais de um jogador brasileiro apareceu entre os 10 primeiros. Cinco diferentes jogadores (Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká) receberam a bola de ouro em um espaço de 14 anos. Não coincidentemente, o período em que chegamos à final da Copa em três vezes seguidas.

O futebol depende de organização, disciplina, planejamento. Mas, mais do que qualquer outro esporte, o fora de série pode compensar a falta desses atributos. O Brasil virou o Egito, que depende de um craque apenas. Se este falha, torna-se um time comum.