Não mexam no meu queijo

23:59: Empresários articulam pressão sobre o governo por reformas

00:00: Passa incentivo a montadoras do CO, NE e N

Estas duas manchetes estão na mesma página do Valor de ontem. Ilustram, de maneira didática, o problema da reforma tributária e, de maneira mais ampla, o do equilíbrio fiscal: todo mundo é a favor, desde que não mexa no seu.

Manchete incendiária

O Estadão estampa em sua manchete principal de hoje o aumento da carga tributária dos profissionais liberais embutida nos projetos de reforma tributária.

Haveria uma manchete alternativa: “Reforma tributária igualará imposto de profissionais liberais e assalariados”. Igualmente verdadeira, esta manchete trabalha a favor da reforma. A primeira trabalha contra.

Em sua página editorial, o Estadão tem sido firme defensor da reforma tributária. Vai ser mais difícil, no entanto, se a redação continuar com esse tipo de manchete incendiária.

Não mexam no meu queijo!

A Reforma Tributária ainda vai ocupar muito espaço por aqui.

Não é de hoje que o setor de serviços está chiando com a proposta de reforma que está sendo discutida no Congresso. Há algum tempo, cheguei a comentar um artigo do ex-secretário da Receita, Everardo Maciel, que foi um dos primeiros a erguer o tacape.

Sim, a exemplo da Confederação Nacional dos Serviços, que defendeu a CPMF para fugir da reforma, também a OAB está pintada para a guerra.

Não é à toa: como diz Pedro Fernando Nery em seu tuíte, os advogados pagam pouco imposto, assim como médicos e outros prestadores de serviços. A reação do presidente da OAB só corrobora o tuíte.

O presidente da OAB sabe do que está falando: a carga tributária sobre os advogados e profissionais liberais em geral vai aumentar com a reforma. Como a carga tributária geral deve continuar onde está, outros agentes vão pagar menos impostos. Estes outros agentes são a indústria e, em menor medida, o comércio. E adivinha quem consome os serviços de advogados e quem consome os produtos da indústria e comércio? Pois é.

Estamos novamente falando de distribuição de renda. O presidente da OAB é o primeiro a se alinhar a causas nobres e populares, sempre defendendo os fracos e oprimidos da sociedade. Desde que não mexam com o dele.

A desigualdade de renda é uma construção

Para você, que lamenta e não consegue entender porque o Brasil é um país tão desigual, preste atenção porque a história está se desenrolando diante dos seus olhos. Seus filhos e netos se farão a mesma pergunta, e você poderá contar um pequeno capítulo.

Estamos em meio às discussões sobre a Reforma Tributária, um dos dois palcos onde se define o papel do Estado na distribuição de renda do país (o outro é a discussão do orçamento).

Pois bem. O setor de serviços, por meio do seu lobby, se pintou para a guerra e afirmou que vai brigar pela nova CPMF para desonerar a folha.

Desonerar a folha parece algo nobre porque, em tese, fomenta empregos. Mas este é somente o lado bonito da história.

A CPMF é um imposto que “pega todo mundo”. E quando eu digo todo mundo, é todo mundo mesmo. Por ser um imposto em cascata, que incide em cada transação financeira, onera tanto mais os produtos produzidos quanto mais longa for a cadeia de produção/distribuição. Trata-se de um imposto concentrador de renda, e eu vou explicar porque.

Eu trabalho no setor de serviços. Minha alíquota de contribuição ao INSS vai diminuir, assim como a de meu empregador. Nem por isso vou deixar de receber a minha aposentadoria oficial. Quem vai financia-la?

Na outra ponta, temos os compradores de produtos onerados pela CPMF. Como cidadão da classe média, minha cesta de consumo é dominada por serviços. Quem compra preponderantemente produtos são os mais pobres. Produtos onerados pela CPMF. Estes, mais uma vez, pela zilionesima vez desde que Cabral aportou em nossas praias, estarão subsidiando os mais ricos. No caso, quem tem carteira assinada.

A desigualdade social não é um imperativo do capitalismo. É, antes de tudo, fruto do crony capitalism (capitalismo de compadres), onde governo e elites empresariais se unem para arrancar benefícios dos mais pobres, enquanto, com a outra mão, distribuem migalhas em forma de “bolsas” para tranquilizar suas consciências.

Tirando de um bolso para devolver para o outro

Estão aí 3 tabelas que resumem os encargos sobre a folha de pagamentos. Impostos (e vou considerar INSS e FGTS como impostos, pois são usados pelo governo) representam 58,65% dos encargos. O restante considero parte do salário.

Então, para um empregado registrado em carteira, o empresário gasta quase 60% do salário nominal com impostos. É disso que se trata. Aí, vem a brilhante ideia de instituir a CPMF para substituir essa carga tributária.

Economicamente não faz sentido. Pode até criar mais empregos registrados (não vai afetar, por óbvio, os informais), mas a massa salarial permanecerá a mesma, pois a carga tributária permanecerá a mesma. Em outras palavras, o que for ganho em termos de emprego, será perdido pela perda do poder de compra causada pela CPMF. Não há mágica: o governo estará confiscando o mesmo montante da sociedade, então a sociedade como um todo permanecerá pobre como sempre.

E a própria criação de novos empregos é incerta. O empresário pode simplesmente engordar seus lucros com a desoneração, sem contratar um mísero empregado a mais. Aliás, isso é o mais provável, dada a ainda muito lenta recuperação da atividade. Teríamos então um transferência de renda dos trabalhadores (via CPMF) para os empresários.

Então, na melhor das hipóteses, a criação da CPMF é neutra, pois mantém a carga tributária do mesmo tamanho. Mas essa é a melhor das hipóteses. Na pior, a CPMF vai introduzir ainda mais areia na engrenagem da já emperrada economia brasileira. A um sistema tributário caótico, introduziremos mais um imposto ruim, pois incide em cascata e serve de subsídio cruzado, no país dos subsídios cruzados que infernizam quem quer produzir e consumir. O governo deveria estar preocupado em encontrar formas de diminuir a carga tributária, ao invés de propor remendos que deixam a coisa ainda pior. Esta era, aliás, a promessa de campanha.

Manifestações para quê?

Soube que há uma convocação para uma manifestação de apoio ao governo, para pressionar o Congresso a votar pautas importantes para o País.

No ano passado, manifestações também foram convocadas. Tinham como objetivo pressionar o Congresso a votar a Reforma da Previdência, recém enviada pelo governo, e o pacote anti-crime do Moro. Duas pautas importantíssimas para o futuro do País.

Este ano, as manifestações servirão para pressionar o Congresso a votar a Reforma Administrativa, de modo a controlar o segundo maior item de gasto da União. Não, acho que não é isso, o governo não enviou nenhuma proposta de reforma administrativa até o momento.

Então, as manifestações servirão para pressionar o Congresso a votar a Reforma Tributária, diminuindo o pesadelo de empresas e cidadãos diante de um sistema tributário dantesco. Não, não é isso, o governo também não enviou nenhuma proposta de reforma tributária para o Congresso até agora.

Então, devem ser manifestações para pressionar o Congresso a votar a Reforma Política, que finalmente vai fazer do Congresso uma Casa do Povo, representando fielmente a vontade popular. Não, o governo nem sequer está pensando em uma reforma política.

Ah, então devem ser manifestações para pressionar o Congresso a autorizar a venda de grandes estatais, abrindo caminho para um aumento brutal de produtividade da economia. Não, o governo não enviou ao Congresso nenhum pedido de autorização para privatizar uma estatalzinha sequer. (A Eletrobras está no Congresso, mas quem enviou foi o Temer).

Parece que essas manifestações têm algo a ver com emendas parlamentares ou algo do gênero, se não estou enganado. Não sei se vale a pena sujar minha camisa amarela.

Quem paga a conta

Tenho criticado aqui duramente o corporativismo do funcionalismo público, que se aproveita de sua proximidade com o poder para arrancar privilégios negados ao restante do país. Mas o funcionalismo não é o único grupo que só olha para o seu umbigo. Os empresários que contam com capacidade de mobilização também se defendem.

É óbvio que, em uma reforma tributária, alguns sairão perdendo e outros sairão ganhando. A questão não é essa. A questão é se o status atual é eficiente ou não. Esses grupos de empresários que se unem contra a reforma tributária, na verdade conquistaram o direito de pagar menos impostos do que a média porque sempre tiveram proximidade com o poder. Seus lobbies tiveram muito sucesso, ao longo do tempo, em emplacar suas reivindicações. Agora, a reforma tributaria ameaça todas essas “conquistas”.

Quando vejo um Flavio Rocha defendendo a volta da CPMF para “desonerar a folha de pagamento”, chego à conclusão de que merecemos este país de loucos, com um sistema tributário repleto desses subsídios cruzados, penduricalhos que tornam um inferno a vida de quem empreende. Flávio Rocha, o rei do liberalismo, defendendo esse tipo de arranjo, é porque não há saída mesmo.

É simplesmente uma falácia dizer que a mensalidade da escola vai aumentar em 50% e, portanto, a reforma proposta é ruim. Não que seja mentira, mas é uma meia verdade, o que é pior. Na cesta de consumo de qualquer cidadão, consome-se escola, mas também se consome produtos que ficarão mais baratos. Para quem consome mais serviços, a cesta de consumo realmente ficará mais cara. Para quem consome mais alimentos e produtos industriais, ficará mais barata. Os mais pobres consomem proporcionalmente mais produtos, enquanto os mais ricos consomem proporcionalmente mais serviços. Uma reforma que nivele a cobrança de impostos entre os diversos setores fará justiça social. Ou é melhor os mais pobres pagarem proporcionalmente mais impostos, como ocorre hoje?

Ao contrário da reforma da Previdência, dessa vez certos empresários são contra a reforma tributária. Por que, ao contrário da Previdência, agora quem paga a conta são eles.

Briga de rua

É realmente inacreditável a capacidade de Bolsonaro arrumar briga que, no final, só vai prejudicá-lo. O último caso é o dos preços dos combustíveis.

O preço do petróleo no mercado internacional está despencando por conta do coronavírus, refletindo uma queda pontual do consumo chinês. A Petrobras está aproveitando para diminui os preços da gasolina em suas refinarias. Seria uma ótima notícia, que seria surfada por qualquer governo. Mas não, Bolsonaro arrumou um jeito de transformar uma boa notícia em uma briga de rua.

Ocorre que a diminuição dos preços nas refinarias não está chegando nas bombas. Alguém soprou para o presidente que o problema é a forma de cálculo do ICMS: como os Estados consideram a base de cálculo fazendo uma média de 15 dias, a queda dos preços demora um pouco para afetar essa média. O resultado é o aumento da incidência do imposto, pois a base de cálculo é maior do que o preço na ponta. O efeito inverso também ocorre: quando há um aumento dos preços nas refinarias, a base de cálculo demora um pouco a ser recalculada, e a incidência do imposto fica proporcionalmente menor. Não sei porque existe essa metodologia de cálculo, suponho que seja para facilitar a administração dos impostos.

Enfim, seria apenas uma questão de dias para que os preços começassem a diminuir nas bombas, como sempre. Mas Bolsonaro viu aí uma oportunidade de estocar os que ele vê como inimigos políticos: os governadores, principalmente Doria e Witzel. Começou uma discussão extemporânea sobre impostos, justamente às vésperas de começar a tramitação pra valer da reforma tributária.

Como sabemos, essa reforma é complicadíssima, e não sai se não houver um alinhamento com os Estados. Qual o objetivo de Bolsonaro ao arrumar briga com os governadores? Arrumar uma desculpa para o eventual fracasso da reforma? Enfraquecer seus adversários políticos de 2022? Posar de defensor dos caminhoneiros às custas dos governadores? Ou se trata apenas de um ato irrefletido de um presidente que não está preparado para enfrentar questões desta complexidade? Qualquer que seja a explicação, nenhuma justifica esse bate-boca ginasial.

Estamos todos ansiosamente aguardando a proposta de reforma tributária do governo desde a aprovação da reforma da previdência. Já lá se vão 6 meses. O máximo que saiu do Planalto foram ensaios de uma CPMF natimorta e agora o “imposto sobre o pecado”. E, além de não ter proposta, Bolsonaro destrói as pontes que vai precisar para aprovar uma reforma digna do nome. Vamos depender, mais uma vez, do Congresso para fazer a lição de casa.