Números em queda?

Há alguns dias, o Estadão publicou um gráfico produzido pelo município de São Paulo, mostrando uma queda drástica do número de óbitos na cidade (abaixo).

Vi alguns comemorando o dado, mas trata-se do erro clássico de considerar o número de óbitos na data do óbito e não na data do registro. Por que um erro clássico? Porque os óbitos podem demorar até um mês para serem registrados. Então, aquele número que parece baixo no final do gráfico vai engordar nos dias seguintes.

É o que mostra o segundo gráfico que reproduzo abaixo, elaborado pelo Estadão e publicado hoje. Aquele mesmo número baixo se transformou em um número na média apenas 3 dias depois. Os óbitos “atrasados” foram contabilizados, mostrando que aquela tendência de queda tratava-se de uma miragem.

Isso significa que os números não estão em queda? Não. O site Observatório COVID Brasil faz uma estimativa do número de óbitos com base nas características da doença até hoje conhecidas e nos dados oficiais (abaixo). De fato, a tendência parece ser de queda, mas não tão intensa como sugere o site da prefeitura. Ou seja, dá até para comemorar, mas não muito.

Diagrama dos Partidos Políticos Brasileiros

Você fica muitas vezes confuso com a profusão de siglas partidárias no Brasil? Eu também.

Por isso, elaborei um diagrama com os Partidos Políticos Brasileiros.

Não sou o rei do layout, pelo contrário. O esquema está bem tosco. Mas foi o melhor que pude fazer dentro das minhas limitações.

O diagrama contém todos os partidos que pude encontrar desde o Império, passando por todas as fases da República. Na última fase, chamada de Nova República, só coloquei os partidos que tiveram alguma relevância.

Os partidos em azul já foram extintos, enquanto os partidos em cinza são os que existem atualmente.

As linhas cheias indicam fusão ou sucessão de partidos, enquanto as linhas pontilhadas indicam migração de integrantes de um partido para fundar outro. Caixinhas com mais de um nome de partido significa simplesmente mudança de nome do partido.

A distribuição espacial é mais ou menos por espectro ideológico, sendo que os partidos de esquerda ficam à direita (?!, sorry, só depois que comecei vi a burrada, mas aí ficou difícil consertar). Mas não levem essa distribuição muito a série, pois a geleia ideológica às vezes é difícil de definir.

Em cada caixinha coloquei a sigla do partido, o nome, uma ou duas lideranças de relevo (em itálico) e os anos de existência.

A fonte utilizada foi a confiável Wikipedia. Portanto, se encontrarem algum erro, por favor me avisem.

O arquivo está em um folder público do One Drive. Recomendo baixar e carregar em um leitor de PDF. Como está em um papel A4, as letras ficaram muito pequenas, então precisa aumentar bem para ver.

Espero que vocês se divirtam ao ler tanto quanto eu me diverti ao fazer esse diagrama.

Tudo é uma grande gambiarra

Sou cliente do Sem Parar. É um serviço bem útil.

Mudei de casa há coisa de um ano e meio e entrei no site do Sem Parar para mudar os dados do meu endereço. E esqueci esse assunto.

Hoje, recebendo a fatura, percebi que constava o endereço antigo. Fui ao site novamente para mudar o endereço e, para meu espanto, o endereço novo já estava lá, pois já havia mudado.

Liguei para a empresa para entender o que estava acontecendo. Depois de uns 10 minutos falando com a máquina, consegui ser atendido por um humano, muito simpático por sinal. Ele não escondeu o jogo: é que há um sistema de cobrança que gera a fatura e outro sistema (que não sei para que serve) ao qual o usuário tem acesso quando visita o site. Eu fiz a alteração nesse sistema que eu não sei para o que serve, mas o sistema de cobrança não foi atualizado!

Perguntei retoricamente ao atendente simpático se os dois sistemas não se falavam. Obviamente ele disse que não, caso se falassem eu não estaria perdendo meu tempo nessa ligação. Outras perguntas me ocorreram, como por exemplo pra que serve aquele endereço que eu digitei no site e como uma empresa de tecnologia tem dois sistemas que não se conversam. Mas não as fiz, pois fiquei com pena do coitado do atendente.

Pelo menos ele tinha meus dados no sistema dele, de modo que ele não precisou digitar, só confirmar. Ganhamos tempo. Em seguida, me informou que iria repassar os dados para o departamento de cobrança para que eles atualizassem o cadastro. Fiquei imaginando o rapaz anotando os dados em um pedaço de papel e colocando na mesa do colega do departamento ao lado. Mas foi só minha imaginação, certamente eles têm um sistema que faz a comunicação entre o departamento de anotação de dados e o departamento de cobrança.

Conto essa experiência porque só confirma uma convicção minha que só faz crescer: tecnologia é um troço que exige muito, mas muito, muito mesmo, investimento. Não se improvisa. Quando você tem um app que funciona direitinho, saiba que por trás tem um exército de programadores e analistas remendando coisas feitas em diferentes momentos, e que devem acompanhar a evolução do negócio. A função deles é fazer com que você não perceba que tudo é uma grande gambiarra, como aconteceu entre os dois sistemas “que não se conversam” do Sem Parar.

O mundo depende cada vez mais da Tecnologia da Informação. Deus nos proteja.

A “nova-política” está sepultada

No início do governo Bolsonaro, escrevi aqui alguns posts defendendo o diálogo político como forma de avançar a agenda do governo no Congresso. Em determinado momento, caiu-me a ficha ao ler o post de um bolsonarista-raiz: que raios afinal eu queria? Que o governo eleito com o discurso da anti-política, que defendia uma tal “nova política”, entrasse em conchavos típicos da “velha política”? De fato, aquilo não fazia sentido.

A “nova política” seria a política dos superiores morais: o bom, o belo e o justo se imporiam com a força do povo nas ruas. Todas as reformas, econômicas, políticas e morais, se fariam realidade pela liderança de um ser impoluto, a encarnação do bem, liderando uma verdadeira limpeza do ambiente político. O Congresso seria um mero detalhe, um coadjuvante nesse processo.

Na época concordei com esse ponto de vista, ainda que não visse muito futuro nessa linha. Afinal, por mais que a “verdade que liberta” estivesse ao lado do governante de plantão, o sistema político reflete a complexidade de um país multifacetado. Bolsonaro recebeu mais de 50 milhões de votos, mas não conseguiu sequer eleger a maior bancada do Congresso. Bancada essa que se esfacelou em poucos meses. Como ainda temos Congresso, e não parece que estejamos a ponto de fechá-lo, de alguma maneira haveria de haver uma composição.

Não acho estranho que a composição tenha acontecido. Afinal, Bolsonaro pode ser tudo, menos lunático. O que realmente me espanta é que os bolsonaristas, desde os parlamentares até os seus apoiadores aqui na rede, tenham perdoado Bolsonaro por ter “entrado no jogo” da velha política. Afinal, ficou claro que não se segue uma agenda, mas uma pessoa. Esta pessoa já abandonou a agenda anticorrupção e a agenda liberal. Falta a agenda de costumes, mas esta faz parte do núcleo anti-esquerda, então será mais difícil abandonar. E, convenhamos, ao contrário das outras duas, não é preciso abandoná-la para compor com uma parte relevante do Congresso.

A historinha da “nova política” está sepultada. E os bolsonaristas estão fazendo cara de paisagem.

O enigma da popularidade

Ontem e hoje li várias análises de um fenômeno que mesmerizou a oposição a Bolsonaro: a melhora de sua popularidade no DataFolha. Afinal, como pode o presidente do país que lidera mundialmente a lista de mortes por coronavírus, em meio à recessão mais brutal de toda a história (a recessão de Dilma foi maior, mas espalhada por 2 anos, não 2 meses), além de atacar a democracia, a Amazônia, a Ciência, as mulheres, os negros, os LGBTs, os ateus, o bom, o belo e o justo?

De todos esses assuntos, vou me ater às duas primeiras questões (doença e economia), pois são os elementos novos que, todos esperavam, iriam lançar Bolsonaro no 5o círculo do inferno da impopularidade.

Sobre a epidemia. Para analisar o fenômeno, precisamos procurar entender a percepção. Para que um governante de um país pobre pudesse ser irremediavelmente ligado às mortes, seria necessário ver gente morrendo nas ruas, nas casas, sem tratamento nos hospitais. Com exceção talvez de Manaus no início da pandemia, isso não aconteceu em lugar nenhum. Poucos devem ter morrido por falta de atendimento. Sendo assim, a única possível culpa do governante é não ter tomado medidas para evitar o contágio. E é disto que os a analistas mesmerizados acusam o governo.

Ora, em um país pobre (reitero o adjetivo) as pessoas simplesmente não têm poupança para ficar em casa sem trabalhar. O discurso do presidente, para grande parte da população faz mais sentido. Não estou aqui entrando na seara do certo ou do errado, estou tratando de percepções. Mesmo entre aqueles que tiveram entes queridos morrendo por conta da doença, isso vai ser colocado na conta de Deus, não de Bolsonaro. Afinal, o que o presidente tem a ver com a vida e a morte?

Ainda no campo das percepções, a cobertura jornalística de qualquer fenômeno vai cansando com o tempo. No início, é tudo novidade, os fatores surpresa, espanto, indignação, trabalham a todo vapor. Com o tempo, no entanto, aquele “produto” jornalístico vai perdendo relevância. Quando 1.000 mortes por dia são reportadas por dois, três meses seguidos, começa a ser um novo normal. Li em algum lugar que a população se acostumou com a tragédia. Sim, assim como se acostumou com as 50 mil mortes violentas por ano, também um recorde mundial. O ser humano tem uma incrível capacidade de se adaptar à realidade.

(Abre parênteses: nesse quesito de “acostumar-se”, entram também as notícias da rachadinha e dos cheques na conta da primeira dama. Me faz lembrar um cartoon em que um mágico, no seu primeiro truque da noite, tira uma baleia azul de dentro da cartola. Aquilo deixa todos os espectadores extasiados. No truque seguinte ele tira um coelho, depois faz um truque com cartas, e os espectadores começam a vaiar e ir embora. A baleia azul é o Petrolão – aliás, essa semana o “doleiro dos doleiros” assinou um acordo com o MP se comprometendo a devolver 1 bilhão (!!!). 72 mil na conta da primeira-dama? Sério? Querem que o brasileiro médio preste atenção nisso? Fecha parênteses)

O segundo aspecto é a economia. Sim, a recessão é brutal. Mas os 600 reais do corona voucher foram mais que suficientes para compensar a perda de renda agregada da população. Por mais que suficiente quero dizer que a renda SUBIU ao invés de cair. Que impopularidade resiste a isso? Pode-se perguntar porque então, se a renda subiu, as pessoas não ficaram em casa. A resposta me parece simples: porque a renda continua baixa. Somos um país pobre, lembra?

Uma pandemia que é só mais uma desgraça no mar de desgraças que é a vida do brasileiro pobre, um programa do governo que enche o bolso desse mesmo brasileiro. Não me parece tão difícil assim entender a recuperação de popularidade do presidente. Mas a reação dos “analistas” e “especialistas” tem sido raivosa. Em praticamente todo lugar, acusam o brasileiro de ser imoral. Isso mesmo, imoral. Li em algum lugar que o percentual de pessoas que acham o governo ótimo/bom/regular é o mesmo percentual que não obedeceu às normas de distanciamento social, sugerindo que coincidem no desprezo pela vida humana. Bela forma de analisar a realidade. Assumir superioridade moral certamente não leva a bom porto, como pode experimentar o PT e como agora está experimentando o bolsonarismo, que está tendo que engolir o centrão. Mas isso é tema para outro post.

Futebol não é somente uma atividade econômica

Os que leem essa página já devem ter percebido que sou da classe dos capitalistas selvagens. Para mim, a atividade econômica se resume a oferta e demanda, o que você recebe pelo que você paga, valor adicionado, produtividade, essas coisas.

Mas dentro desse coração duro feito pedra mora uma exceção: o futebol.

O futebol não pode ser classificado como uma atividade econômica como as outras. Seria o mesmo que tentar classificar o amor de uma mãe pelo seu filho de acordo com relações de trocas econômicas. Simplesmente não dá.

Futebol é paixão irracional. Seu time de coração é isso mesmo: o time de coração. E o coração tem razões que a própria razão desconhece, diz o ditado.

Outra coisa: futebol é estádio. Acho graça da molecada hoje em dia torcendo para o Barça ou Real Madrid, sem nunca terem ido a um estádio ver um jogo desses times. É quase como um vídeo game. Aliás, faz sentido. Para uma geração formada por Felipe Neto no youtube e viciada em vídeo games, o futebol virtual é até melhor. Mas isso não cria paixão. O estádio é o lugar onde se vive e se morre por um time. Onde estão as lembranças dos entes queridos que nos transmitiram seu amor pelos seus times, e onde comungamos o mesmo destino e a mesma paixão com desconhecidos que se tornam nossos irmãos na tristeza e na alegria. O futebol sem a torcida no estádio não é futebol, que me desculpem. Sim, sim, eu sei que o futebol é também uma atividade econômica. Quanto mais torcedores o time tiver, quanto mais bem organizado for o “time-empresa”, mais condições terá de ganhar títulos e novos torcedores, em um círculo virtuoso. E o contrário também é verdadeiro.

Mas um time de futebol transcende a esfera puramente econômica. Não me perguntem porquê, mas é assim. Por isso, seria preciso pensar em algum arranjo que sustente os times com torcidas menores, que têm mais dificuldade de montar equipes competitivas. Claro, é preciso que a administração seja profissional, esta é uma condição sine qua non que precisa estar garantida. Mas o poderio de um time não pode ser somente função do tamanho de sua torcida. Se assim for, terminaremos com 1 ou 2 times dominando o futebol, como aliás acontece na Europa.

Entendo perfeitamente a lógica de uma Globo, que quer a máxima audiência possível, o que a faz pagar mais para os times com maior torcida. Mas uma competição dominada por um time só perde a graça e, no limite, a audiência. Esta lógica econômica também precisa ser incorporada no processo de decisão.

Essas reflexões me vieram à mente quando li o post do meu amigo José Mauro Delella, a respeito dos 100 anos da Portuguesa de Desportos, que tive o prazer de ver jogar contra o meu Santos, em um 3 x 3 épico, com apresentação de gala de Eneas, que fez os 3 gols da Lusa.

Não se preocupe Zema. A Portuguesa nunca vai morrer enquanto você estiver vivo. Porque um time vive de verdade é no coração dos seus torcedores.


Da página de José Mauro Delella:

Há exatos 100 anos, 5 portugueses que representavam seus times espalhados por São Paulo se uniram para formar um maior e deram a ele o nome de Associação Portuguesa de Desportos. Um desses times se chamava Portugal Marinhense, time de meu bisavô, José Rodrigo, e de seus filhos.

Mesmo bem antes de saber essa história eu já amava a Portuguesa completamente. Amor pouquíssimo correspondido, a propósito. Mais sofrimento que alegria. Mas amor puro. O amor pela Portuguesa tem muito a ver com as nossas ligações familiares. É o meu caso e da maior parte dos torcedores. Sou um sobrevivente de tardes e noites passadas no Canindé com pessoas que já se foram. Minha avó, a mais fanática de todas, meu nonno, italiano convertido, seus três filhos, Antonio, Anibal e José Nicola. Este, meu pai e referência de vida. Descendentes daquele José Rodrigo.

Sempre foi difícil torcer pra Portuguesa. Mesmo em tempos bem melhores, ser o único da classe era regra. Mas os últimos 20 anos foram cruéis. Uma derrocada terrível a partir de 2002 e a morte “de morte matada” em 2013. Muitos jogadores indignos de vestir o manto que já vestiu Djalma Santos, Julinho, Dener, Enéas, Felix, Pinga, carregaram as cores rubroverdes e isso me fez um pouco mais triste.

Talvez haja alguma forma de ressurreição, talvez não. Mas esse amor vai me acompanhar até o fim. Junto com aqueles que já se foram e a quem eu represento.

Se eu torcesse para outro time, eu seria outra pessoa. Parabéns Associação Portuguesa de Desportos.

O patriotismo do mercado

Ontem Bolsonaro fez uma longa live sobre o tema do momento: teto de gastos.

Mostrou consciência de que se trata de aumento de endividamento, o que é bom. Mas (e sempre tem um ‘mas’), mostrou também ignorância sobre um tema básico: como funciona o mercado financeiro.

Não vou culpá-lo. Afinal, trata-se de tema difícil, que a maioria dos brasileiros realmente desconhece. Claro, poderíamos dizer que do presidente da República se deve exigir que pelo menos tenha noções básicas de como funciona a economia. Afinal, são dele as decisões que, em última instância, influenciarão a vida de todos os brasileiros. Mas deixa prá lá. Aqui no meu humilde espaço, vou tentar explicar porque é uma imbecilidade pedir “patriotismo” para o mercado.

O que é o mercado financeiro? Se fizéssemos uma pesquisa com brasileiros comuns, leigos, a resposta seria provavelmente algo parecido com “os grandes bancos” ou “os especuladores” ou ainda “os operadores da bolsa”. Estes são os personagens que encarnam essa entidade etérea chamada genericamente de “mercado financeiro”.

Sim, o mercado é isso também. Mas é muito mais do que isso. Vamos nos ater apenas à questão da dívida pública, que é o que nos interessa aqui. Afinal, o teto de gastos só existe para controlar a dívida pública.

A dívida pública brasileira totalizou 4 trilhões, 389 bilhões e 940 milhões de reais no final de junho. Ou, R$ 4.389.940.000.000, em números redondos. Isso representa mais ou menos 85% do PIB. Devemos chegar no final do ano com uma dívida de aproximadamente 5 trilhões de reais.

Vira e mexe os partidos mais radicais de esquerda levantam a bandeira da “auditoria da dívida”. Mas não tem segredo nenhum. Esta montanha de dinheiro não surgiu do nada. Foi fruto de um trabalho perseverante, em que necessidades muito nobres foram sendo empurradas para dentro do orçamento ao longo de décadas. Como diz o presidente em outro trecho de sua fala de ontem, é dinheiro “para a água no Nordeste, revitalização de rios, Minha Casa Minha Vida”. É óbvio que nunca se pede mais dinheiro para pagar lagostas no STF ou para alimentar as emas do Alvorada, mas, por algum motivo ainda misterioso, este dinheiro de fim tão nobre acaba pagando por este tipo de coisa.

Mas meu ponto aqui é outro. Quem são os financiadores desta dívida? Afinal, se há um devedor, há também um credor. Aí é que entra o famigerado “mercado financeiro”. Este seria o pérfido credor, aquele que pensa antes em si do que no país. Um anti-patriota, por assim dizer.

Vamos analisar a questão mais de perto. O Tesouro Nacional publica um relatório mensal em que divulga os detentores da dívida pública. Em junho, estes detentores eram os seguintes:

  • Previdência: 24,5%
  • Instituições Financeiras: 27,5%
  • Fundos de Investimento: 25,8%
  • Estrangeiros: 9,1%
  • Governo: 3,9%
  • Seguradoras: 3,9%
  • Outros: 5,4%

Observe que apenas 27,5% da dívida pública está nas mãos dos bancos. E, mesmo estes, não são “donos” desse dinheiro. O dinheiro que os bancos investem em títulos públicos pertencem aos depositantes e poupadores. O banco é apenas o intermediário entre o cliente e a dívida pública. Quando você deposita dinheiro na caderneta de poupança, ou compra CDB de um banco, este usa o dinheiro para emprestar para outras pessoas, inclusive para o governo.

O mesmo acontece com os Fundos de Investimento. Você aplica o seu rico dinheirinho em um fundo, e o fundo compra títulos públicos.

No caso da Previdência, os títulos públicos servem como lastro das aposentadorias a serem pagas. Os credores da dívida pública, neste caso, são os aposentados atuais e futuros.

Em resumo: os detentores da dívida pública somos todos nós que poupamos. A nossa poupança, de uma maneira ou de outra, acaba por financiar a dívida do governo. Ou seja, o mercado financeiro somos todos nós.

Esta noção é muito importante. O mercado financeiro, entendido de maneira estrita como o conjunto dos seus operadores, é apenas a ponta do iceberg. Os operadores do mercado são empregados daqueles que poupam e investem, e fazem o que estes desejam.

Tenho certeza que o presidente tem lá os seus investimentos. Será que ele seria patriota o suficiente para abrir mão de seus rendimentos? Ou, até melhor, doar o seu dinheiro para abater a dívida pública? Pois é disso que se trata. Os operadores do mercado são pagos pelos investidores para maximizar os ganhos e evitar perdas. Quando se diz que “o mercado não vai gostar disso ou daquilo”, o que se quer dizer é que os operadores vão tentar proteger os seus clientes de perdas. E os clientes somos todos nós que investimos.

Portanto, nada contra fazer as coisas por patriotismo. Trata-se de um sentimento muito nobre. Só tome o cuidado de saber quem é o patriota que vai colocar a mão no bolso pelo país.

A angústia de Eugênio Bucci

Eugênio Bucci está angustiado com o valor das Big Techs americanas. Afinal, são necessários 3 anos de tudo o que o país produz para comprar essas empresas (pelo menos ele não cometeu o erro básico de comparar “riquezas”).

Destaquei os últimos 3 parágrafos do seu artigo de hoje. Em grande parte, o artigo descreve as explicações usuais para o valor absurdo dessas empresas. Seria basicamente porque dominam a tecnologia do futuro e manipulam bases de dados gigantescas sobre as pessoas a seu favor (esta última explicação é da The Economist). Bucci concorda com essas explicações, mas acha que estão longe de explicar tudo. Ele guarda os últimos parágrafos para descrever a sua explicação do fenômeno. E é essa que nos interessa, pois traduz uma visão comum a muitos.

Segundo Bucci, essas empresas se aproveitam de uma mutação do capitalismo que vem ocorrendo desde meados do século passado: os bens (“coisas úteis”, segundo Bucci) deram lugar aos “signos”. Por signos ele quer dizer marcas, mensagens. Para Bucci, “o capital virou um narrador, um contador de histórias”. E, segundo ele, isso passou a valer mais do que “as coisas úteis”. As Big Techs teriam se apropriado dessa “industrialização da linguagem” que manipula as pessoas, fazendo-as comprar seus “desejos” e não mais suas “necessidades”.

Bem, é difícil até escolher por onde começar. Mas vamos lá.

Bucci se refere a um fenômeno comezinho: o triunfo da publicidade. As pessoas não compram bens, compram marcas. Marcas estas construídas às custas de muito, muito esforço de propaganda ao longo de anos. Sem contar, claro, a qualidade do produto. Mas enfim, a questão é que não se trata de um fenômeno novo. Bucci mesmo diz que vem de meados do século passado. E porque isso aconteceu? Para tanto, precisamos voltar um pouco mais no tempo.

Na década de 20 do século passado, o PIB/capita americano era de cerca de 500 dólares. Hoje, um século depois, é de quase 60 mil dólares. E estamos falando de PIB real, já descontada a inflação do período. O americano médio enriqueceu mais de 100 vezes em um século. Guarde essa informação.

O psicólogo americano Abraham Maslow elaborou uma teoria sobre as necessidades humanas, que ficou conhecida como “pirâmide de Maslow”. A ideia é simples: as pessoas procuram satisfazer primeiramente as suas necessidades básicas, para depois caminharem para o consumo mais sofisticado. Na base da pirâmide de Maslow temos as necessidades fisiológicas (comer, vestir-se, dormir, fazer sexo) e em seguida caminhamos para outras necessidades: segurança, amor e relacionamentos, autoestima e realização pessoal, nessa ordem. Obviamente, o consumo dos mais pobres se limita à base da pirâmide e, à medida que vai enriquecendo, a pessoa vai galgando a pirâmide.

Voltemos ao enriquecimento do cidadão médio americano (e o mesmo vale para todos os países do mundo, em maior ou menor grau). Somos hoje muito, mas muito mais ricos do que éramos há um século. Pessoas pobres em países emergentes hoje têm uma renda e uma qualidade de vida (em termos materiais) superior aos ricos de um século atrás. A renda per capita brasileira hoje é de cerca de 10 mil dólares, cerca de 20 superior à renda nos EUA há um século.

Nesse processo de enriquecimento, galgamos a pirâmide de Maslow. As necessidades das pessoas mudaram com o tempo. Bucci lamenta que o “capitalismo” excite nas pessoas os seus desejos, deixando de lado suas necessidades. Não lhe ocorre que as pessoas já tenham satisfeitas as suas necessidades, e agora querem mais. Todas essas coisas “não úteis” são, na verdade, bem úteis. Aliás, este não é um processo novo.

Quando surgiu a indústria automobilística, carros não eram uma necessidade, eram um luxo. A humanidade poderia viver sem carros, como viveu durante milênios. Mas, uma vez incorporado ao rol de bens que podem ser comprados, o automóvel passou a ser uma “necessidade”. Isso pode ser aplicado a todas as inovações tecnológicas, desde a invenção da roda. Necessário mesmo não é. Afinal, a humanidade viveu sem isso (qualquer inovação) durante milênios.

Mas Bucci, na verdade, contrapõe a mercadoria em si à “ideia de mercadoria”. Ele dá o exemplo do fabricante de tênis que cuida mais da marca do que do próprio tênis. Claro: tênis é uma commodity, qualquer um pode fabricar. Está ali, na base da pirâmide de Maslow (a necessidade de vestir-se). O que as pessoas querem é subir na pirâmide. Não basta um tênis. É preciso comprar o tênis de tal marca, que tem tal qualidade, que é usado por tal atleta. Pode-se criticar essa atitude, mas não se pode negar que exista, e que faz parte da constituição mesma das pessoas. Queremos sempre mais, somos insaciáveis. Essa é a lógica.

O capitalismo não impôs essa lógica, como sugere Bucci. O capitalismo apenas serviu a essa lógica, por isso o seu sucesso. Na verdade, o capitalismo permitiu multiplicar a renda da população global em dezenas de vezes, e esse enriquecimento fez com que as pessoas passassem a exigir coisas mais sofisticadas do que simplesmente “coisas úteis”. Aliás, como dissemos acima, as “coisas inúteis” se tornam úteis e imprescindíveis com o passar do tempo.

Então, a resposta à pergunta angustiada do jornalista (o que afinal produzem essas empresas para valerem tanto) é simples: essas empresas estão no centro da revolução que está levando a humanidade a subir mais um degrau na pirâmide de Maslow. Isso não é novidade. Foi assim com as ferrovias, com o petróleo, com os automóveis. Todas indústrias que estavam no centro de uma revolução. As Big Techs são apenas mais um capítulo dessa história.

E, para finalizar, chamo a atenção para o último parágrafo, em que o autor diz que “o mundo distanciou-se da razão e do espírito”. Bem, há um século o mundo se envolveu em duas guerras mundiais que resultaram em milhões de mortos, inclusive em campos de concentração. E, não muito antes disso, ainda tínhamos escravidão de seres humanos. Não consigo pensar em nada mais longe “da razão e do espírito”. Ao contrário, ao tornar o mundo mais rico, as novas tecnologias permitem que mais pessoas se dediquem “à razão e ao espírito”. Se você acha que vivemos em um mundo brutal, é porque não conhece o que os nossos antepassados viveram.

Privatizar é duro pra quem é mole

Hoje, Salim Mattar publicou um artigo no Brazil Journal, onde expõe as dificuldades do processo de privatização no Brasil, e afirma que saiu do governo porque o que foi realizado não compensou o esforço dispendido.

Lembrei-me de um artigo de Elena Landau, publicado no último dia 31/07.

Dentro do BNDES, Landau foi a diretora do programa de privatização do governo FHC. Era, por assim dizer, o Salim Mattar do FHC.

Landau descreve, neste artigo, o processo necessário para privatizar. Fala com conhecimento de causa: foi no governo FHC que se deram as mais importantes privatizações da década de 90, entre as quais Vale e o Sistema Telebrás. Trata-se de um processo difícil, complicado, como descrito por Salim Mattar.

Uma defesa que se faz do governo Bolsonaro nesta área é que é exigir demais grandes privatizações em menos de dois anos de governo. É verdade. Ocorre que, como todo processo, é preciso dar um primeiro passo, depois o segundo, e assim por diante, até completar. A crítica de Landau é que não foi dado sequer o primeiro passo. Muito discurso e pouca ação efetiva.

Critica-se também o Congresso, por não se alinhar com as supostas ideias liberais do governo, e interpor dificuldades insanáveis. Landau também endereça este ponto: como exigir do Congresso algo que sequer foi enviado para lá? FHC, assim como Sarney, Collor e Itamar Franco, privatizaram também com um Congresso hostil. Aliás, Congresso hostil é quase uma redundância. Cabe ao presidente construir a sua base para lidar com o Congresso.

Bolsonaro hoje publicou um post aqui no FB. Destaco o seguinte trecho: “Para agravar, o STF decidiu, em 2019, que as privatizações das empresas “mães” devem passar pelo crivo do Congresso”. Ora, isso é óbvio. Afinal, como diz Landau, trata-se de patrimônio público. Todas as privatizações foram objeto de lei, que passaram pelo Congresso. O STF só fez confirmar o entendimento. Culpar o STF e o Congresso não vai resolver o problema. A questão levantada por Landau continua válida: que projeto de privatização do governo está parado no Congresso? (A Eletrobrás não vale, esta foi enviada por Temer).

Então, ao ver o que outros governos fizeram e o que este fez em termos de programa de privatização, a única conclusão possível é a de que se trata de incompetência ou de falta de convicção. Eu prefiro esta última.