A natureza marca

Achei interessante essa tabela comparativa entre os principais países da América Latina, que tirei de um relatório do J P Morgan. Os números estão atualizados até 28/06.

Duas coisas me chamaram a atenção.

1. Vacinação: tirando o Chile, o Brasil não faz feio nesse grupo, ficando empatado em 2o lugar com a Argentina.

2. Vacinas: novamente tirando o Chile, o Brasil fica em 2o lugar em número de doses contratadas per capita, ficando pouco acima de México e Peru e bem acima de Argentina e Colômbia.

É claro que gostaríamos de ter a mesma eficiência de Europa, EUA e Canadá na vacinação. Ocorre que somos um país pobre e desorganizado. Não sei o que vem primeiro, a pobreza ou a desorganização, mas o fato é que uma coisa sempre acompanha a outra. Provavelmente não é coincidência que o país mais rico da região tem também as melhores marcas na vacinação.

Note também que não importa muito a orientação do governo: governos de esquerda ou direita, “negacionistas” ou “baseados na ciência”, acabam tendo mais ou menos a mesma performance, o que aparentemente demonstra que o fator determinante é, no final do dia, a riqueza e organização do país, ambos de mãos dadas.

O que me leva à conclusão de que se Bolsonaro tivesse um discurso e uma postura só um pouquinho mais razoável em relação às vacinas, se não tivesse comprado brigas bobas, se tivesse, como disse uma vez Gilberto Kassab, “montado seu gabinete dentro da Fiocruz”, com esses mesmos resultados talvez seu governo, hoje, estivesse sofrendo menos pressão.

Mas Bolsonaro tem a sua natureza. E, como dizemos no futebol, a natureza marca.

O preço do seu olhar

Se você está lendo este post, é porque você conta com uma plataforma chamada Facebook. Você é um dos responsáveis pelo fato de a empresa fundada por Mark Zuckerberg ter atingido, ontem, o valor de mercado de R$ 1 trilhão de dólares. Todas as empresas listadas na bolsa brasileira, incluindo Petrobras, valiam ontem, somadas, cerca de 1,15 trilhões de dólares.

Ontem, um juiz nos EUA indeferiu um processo anti-truste contra o Facebook. Sua justificativa: as aquisições do Instagram e do WhatsApp ocorreram há 9 e 7 anos atrás, respectivamente. Por que somente agora os promotores resolveram apresentar queixa? Os negócios, à época, passaram pelo escrutínio das autoridades concorrenciais, que deram o seu aval.

Das Big Techs, o Facebook talvez seja a empresa mais polêmica, pois o coração de sua operação é conteúdo. Por isso, precisa lidar com coisas como algoritmos e censura. Além disso, depois da morte de Steve Jobs e da aposentadoria de Bill Gates e de Jeff Bezos, Mike Zuckerberg está praticamente sozinho no posto de fundador controvertido de empresa de tecnologia, tendo como único concorrente Elon Musk.

Por mais que seja uma empresa no olho do furacão das disputas políticas globais e com um fundador controvertido, o Facebook atingiu o valor de mercado de U$ 1 trilhão. Por que? Destaquei um trecho de uma outra reportagem, sobre os influencers do mercado de finanças pessoais. O trecho é uma declaração de Gustavo Cerbasi, que afirma ser “obrigado” a investir em publicidade nas redes sociais, senão deixa de aparecer e não consegue crescer organicamente.

É isso. Você está lendo este post no Facebook, depois vai dar uma passeada no Instagram e trocar umas mensagens no WhatsApp. Sem perceber (ou percebendo), será alvo da publicidade paga por pessoas e empresas que “não podem deixar de aparecer nas timelines”. Pode-se questionar se isso vale 1 trilhão de dólares. Os investidores do Facebook acham que sim.

O efeito sobre a carga tributária do novo IR sobre empresas e dividendos

O governo mandou para o Congresso um projeto de lei para reformular o imposto de renda. Afirma que o projeto é neutro com relação à carga tributária, ou seja, não há aumento ou diminuição de imposto, somente uma redistribuição.

Analisei o projeto. Podemos dividir as iniciativas em duas categorias: aquelas que aumentam o imposto e aquelas que diminuem o imposto. Vamos listá-las:

Iniciativas que aumentam imposto:

  • Tributação de 20% sobre dividendos de empresas e fundos imobiliários
  • Limitação do uso do formulário simplificado para declaração do IR
  • Pagamento de bonificação em ações não poderão ser deduzidos pelas empresas- Vedação de dedução de juros sobre capital próprio para cálculo do imposto
  • Novas regras de tributação de ganho de capital em venda de empresas
  • Tributação sobre a rentabilidade de fundos exclusivos

Iniciativas que diminuem imposto:

  • Redução da alíquota das empresas de 34% para 29%
  • Aumento da faixa de isenção do IR para pessoa física
  • Unificação das alíquotas sobre investimentos, em 15%
  • Atualização de valor dos imóveis (alíquota cai de 15% para 5%)
  • Come-cotas anual ao invés de semestral
  • Compensação de resultados negativos entre investimentos de naturezas diferentes

Realmente, é difícil afirmar que este conjunto de iniciativas vai aumentar ou diminuir a carga tributária. O governo não forneceu o memorial de cálculo dessa estimativa.

Uma estimativa relativamente fácil de fazer é o efeito sobre a arrecadação da pessoa jurídica, considerando somente a mudança de alíquota e sobre o pagamento de dividendos. Hoje, temos o seguinte (o exemplo a seguir assume distribuição de 100% do lucro como dividendos):

  • Lucro: 1.000
  • IR (25%): (250)
  • Lucro líquido: 750

Depois da reforma, teríamos o seguinte:

  • Lucro: 1.000
  • IR (20%): (200)
  • Lucro líquido: 800
  • IR sobre dividendos (20%): (160)
  • Dividendos depois do IR: 640

Então, antes da reforma, o acionista receberia 750 e, depois da reforma, 640. Uma redução de 14% sobre a receita do acionista.

Já o governo arrecadava antes 250, e passou a arrecadar 200+160=360, um aumento de 44%. A arrecadação do IR da pessoa jurídica totalizou R$ 157 bi nos últimos 12 meses, até abril. Portanto, temos um aumento potencial da arrecadação, pelo conjunto dessas duas medidas, de aproximadamente 70 bi (44%x157), ou quase 1% do PIB. O conjunto das outras medidas deveria significar uma redução de arrecadação nessa mesma magnitude, para que o projeto fosse neutro para a carga tributária.

Uma coisa é certa: o governo não mandaria um projeto que significasse diminuição da carga tributária. Deve ter alguma gordura, para que possa haver negociação. Minha aposta é que a carga tributária vai aumentar. Não tem outro jeito de colocar a dívida pública em trajetória declinante sem aumentar impostos, dado que não queremos cortar despesas. A não ser que contemos com inflação mais alta, como ocorreu neste ano.

Uma ditadura ao gosto do freguês

Lula deu uma entrevista estupefaciente ao jornal chinês Guancha.

Não leio chinês, por óbvio, então tasquei um Google Translator. A entrevista é longa e repleta das mistificações próprias do demiurgo de Garanhuns. Vou destacar apenas três trechos, somente corrigindo a gramática em algumas passagens. Se alguém souber chinês a ponto de ler no original, poderá eventualmente corrigir algumas imprecisões. Mas o sentido, vocês verão, é absolutamente claro. Faço comentários às respostas de Lula ao longo da entrevista.

A primeira pergunta do entrevistador refere-se à sua prisão:

– É uma história incrível e perturbadora. O que aconteceu com o judiciário em seu país? Na sua opinião, seu caso sofreu interferência de países estrangeiros?

– Lula: O Departamento de Justiça dos EUA orientou os procuradores dos EUA a participar do processo contra mim. Eles vieram ao Brasil para se reunir com o Ministério Público brasileiro, e os juízes e promotores foram aos EUA para discutir minha condenação. Gravamos um depoimento que mostrou promotores dos EUA comemorando minha prisão. A única explicação que encontro é que o Brasil está se tornando um importante player internacional.

Essa acusação aos EUA não é nova. Tudo sempre é interferência duzamericano. O que me chama a atenção é que a Lava-Jato começa em 2014, ainda no governo Obama. Ou seja, Lula acusa o ministério da Justiça de Obama (e, depois, de Trump) pela sua prisão. Como alguém quer ser presidente da República fazendo esse tipo de acusação a um país dito amigo? Qual será a sua relação com os EUA durante o seu governo? É o mesmo que querer aliados no Congresso depois de chamar os congressistas de golpistas. Criticamos Bolsonaro por ser ofensivo em relação a um grande parceiro comercial como a China. Onde estão as críticas a Lula por fazer acusações tão sérias aos EUA?

A entrevista continua:

– Quando a globalização começou nos anos 1990 e início dos anos 2000, todos esperávamos que se seguíssemos uma prescrição específica de desenvolvimento, todos os países em desenvolvimento se tornariam países desenvolvidos. Mas, décadas depois, é claro que a China conseguiu muito mais. A maioria dos outros países em desenvolvimento e a maioria dos países do BRIC, incluindo o Brasil, estagnaram e não conseguiram progredir. Então, o que há de errado com os países em desenvolvimento? Por que só existe uma China? Como podemos mudar isso?

– Lula: […] Mas por que a China pode fazer isso? Porque a China tem um partido político. A China foi o produto de uma revolução liderada pelo presidente Mao em 1949, e seu partido político tem o poder e um governo forte que o povo respeita quando toma decisões. Isso é algo que não temos no Brasil, e tivemos o impeachment da nossa presidente, Dilma Rousseff, por uma mentira. Indiscutivelmente, a elite financeira do nosso país muitas vezes se intromete na política, e precisamos enfrentá-los para mostrar-lhes o importante papel que o governo deve desempenhar. Muitas das políticas sociais que o povo precisa só podem ser alcançadas quando o governo é forte, e somente quando o governo tem o comando. Foi lamentável que o papel dos governos tenha se enfraquecido nos países latino-americanos e do terceiro mundo, com cada vez mais empresas estatais privatizadas e cada vez mais funções governamentais privatizadas. A China, por exemplo, é capaz de combater o coronavírus tão rapidamente porque tem um partido político forte e um governo forte porque tem controle e comando. O Brasil não tem isso, assim como outros países. […] Portanto, acho que a China deu um exemplo de desenvolvimento para o mundo inteiro e é um modelo para o mundo inteiro. Espero que outros países possam aprender com a China, para que todos possamos ser ricos, fortes, distribuindo mais riqueza, mas também ter um mundo mais humano.

Bem, Lula elogia nada mais, nada menos, que a ditadura mais bem sucedida do planeta. Alô, FHC. Alô, Eugênio Bucci. Alô, intelectuais democratas do Brasil. Este é Lula, aquele que vai salvar a democracia brasileira. Um partido forte. Um estado forte. Uma ditadura do bem. Precisa dizer mais alguma coisa?

Continuando:

– Muita coisa aconteceu na América Latina, Colômbia e Peru, e agora há algo incomum no Brasil. A situação está mudando, como você acha que você, seu partido e as “forças do sul” devem influenciar essas mudanças?

– Lula: Venho dizendo que a mídia teve um grande papel na América Latina, especialmente no Brasil, nos golpes no Brasil, na derrota eleitoral da argentina Cristina Kirchner há quatro anos, e na Bolívia contra Evo Morales.

A mídia! O que “a mídia” está fazendo nessa resposta? O que Lula pretende fazer com “a mídia”? Bolsonaro agride jornalistas. Lula também não gosta da mídia, mas seus métodos para controlá-la são, digamos, mais eficazes. Seria a China um exemplo aqui também?

Estão aí, em três respostas, os pendores democráticos de Lula. Ok, ele está falando a um jornal chinês, não poderia deixar de ser elogioso ao país. Mas, depois de 14 anos de governos do PT, depois do mensalão e do petrolão, não parece restar dúvidas sobre a visão de mundo de Lula e do PT a respeito das instituições democráticas. Criticar a falta de credenciais democráticas de Bolsonaro sem fazer o mesmo com Lula é escolher uma ditadura a seu gosto. Desde que seja “do bem”, vale qualquer coisa.

“As únicas saídas para o Brasil são Cumbica ou Galeão”

Meus avós maternos vieram para o Brasil em 1956. Depois de terem sobrevivido aos campos de concentração de Hitler, voltaram a viver uma vida normal na Polonia. Decidiram migrar para o Brasil (onde tinham parentes) por medo de que as políticas da União Soviética significassem mais uma onda de perseguição aos judeus. Cachorro mordido por cobra…

Meus avós trocaram uma vida razoavelmente boa em seu país natal pelo desconhecido, representado por um país com língua, clima e costumes completamente diferentes. Tomaram essa decisão por uma questão de sobrevivência.

Somos testemunhas, atualmente, da crise de imigrantes em várias partes do mundo. São pessoas e famílias que tomam a decisão de abandonar a sua terra por algo supostamente melhor, fugindo da guerra, do crime ou de condições de sobrevivência insuficientes.

A decisão de imigrar para outro país está longe de ser trivial. Além de todo o trabalho envolvido, significa desenraizar-se. Não percebemos, mas o nosso ambiente está dentro de nós. Tenho um amigo que viveu 3 anos nos EUA em determinado momento da carreira. Perguntei a ele, à época, se pretendia continuar lá se fosse possível, ao que ele respondeu: não, sinto falta do Brasil. Aqui não consigo conversar sobre política, por exemplo, não tenho a vivência do histórico.

Achei aquilo interessante. Nascemos em um determinado lugar, e trazemos este lugar dentro de nós. Não é só política ou futebol. É tudo. Não é à toa que imigrantes se juntam em colônias quando estão em países estranhos. Querem viver em seu próprio país dentro da nova terra, procurando o melhor dos dois mundos. Não é nada fácil desenraizar-se.

Conheço três casais de amigos que migraram em definitivo, um para os EUA, dois para o Canadá. Fizeram isso pelos filhos. Queriam que os filhos tivessem “uma vida melhor”, em um país sério, seguro, onde as coisas funcionam. Abriram mão de uma vida confortável aqui por verem melhores condições de vida para os seus filhos no futuro.

Mas isso não é tão óbvio quanto parece. Conheço um outro casal, expatriado, que está, neste momento, em dúvida se continua nos EUA ou se volta para o Brasil. O motivo da indecisão, por incrível que pareça, são os filhos. Estão longe das duas famílias (dele e dela), os filhos ficarão sozinhos em um país estranho, sem laços familiares com ninguém. Neste caso, a força das relações familiares contrabalança a perspectiva de uma vida material melhor.

E, também, essa questão da vida material melhor é relativa, quando falamos de classe média latino-americana. Tirando a questão da segurança pessoal (que é algo importante, sem dúvida), a mudança para outro país significa, muitas vezes, um rebaixamento das condições de vida em relação ao desfrutado no país de origem. É diferente dos pobres coitados que não têm onde caírem mortos, ou de pessoas que estão fugindo da guerra ou de perseguições.

Por tudo isso, acho certa graça na expressão “as únicas saídas para o Brasil são Cumbica ou Galeão”. Na verdade, são muitos os que reclamam mas poucos os que têm a coragem de tomar uma decisão tão radical. Decisão esta que foi tomada por grande parte de nossos ancestrais, que certamente viviam em condições, em seus respectivos países, muito piores do que as que usufruímos hoje.

O fato é que, se o Brasil é um país cheio de defeitos, o mesmo ocorre com qualquer outro país do mundo. Que país não tem defeitos? A imigração supõe trocar os defeitos em busca de virtudes. Mas haverá defeitos, agravados pelo fato de que não estamos acostumados com eles. É preciso que a situação esteja realmente ruim para que essa troca se justifique. Por isso, em grande parte dos casos, a expressão “a única saída para o Brasil é Cumbica ou Galeão” é só da boca pra fora. Não há a mínima vontade de colocar em prática um plano desses, apenas um desejo genérico pelo paraíso.

Eu, particularmente, tinha um certo desejo de imigrar quando era mais jovem. Um certo fascínio pelos EUA (essa indústria cultural é muito poderosa!) me levava a imaginar vivendo lá, como se estivesse em um filme. No entanto, na medida em fui ficando mais experiente (mais velho não!) fui ganhando convicção de que a qualidade de vida depende mais da forma como levamos a vida do que por fatores externos. Há pessoas muito tristes nos EUA, Europa e Japão, acredite, e que talvez fossem mais felizes aqui, com todos os nossos defeitos.

Enfim, estas reflexões não querem ser, de maneira alguma, uma crítica a quem decide imigrar. Estes eu respeito, pois foram capazes de abrir mão de seu conforto por um objetivo. Meu único ponto é que eu continuo achando graça da expressão “a única saída é Cumbica ou Galeão” por parte de pessoas que não têm a mínima intenção de abrir mão de seu conforto para imigrar. No fundo, querem continuar a viver no Brasil, mas sem os seus defeitos. Trata-se de um desejo legítimo. Pena que pertença ao reino da utopia.

O fim do PCdoB

A cláusula de barreira vai acabar com o PCdoB. Na verdade, a culpada pelo fim do PCdoB não é a cláusula de barreira. O verdadeiro culpado é o povo, esse ignorante, que insiste em votar em partido burguês ao invés de votar nos verdadeiros representantes dos proletários.

A cláusula de barreira foi estabelecida para acabar com os chamados “partidos de aluguel”, aqueles que não representam ninguém, a não ser os seus próprios donos, que alugam a legenda pelo melhor preço. Foi o que aconteceu com o PSL de Bivar, que alugou o partido para Bolsonaro e sua turma em 2018.

Mas, como efeito colateral, vai acabar também com os chamados “partidos ideológicos”, que existem para “expressar ideias”. Como é difícil estabelecer normas objetivas para distinguir partidos ideológicos de partidos de aluguel, o critério passou a ser “número de votos”.

Pensando bem, é o melhor critério. Uma cabeça, um voto. A ideia de proteger os chamados “partidos ideológicos” tem como premissa oculta dar mais peso ao “voto” dos intelectuais. Os intelectuais gostariam de manter vivo o PCdoB (e seus primos menos glamurosos, PSTU, PCO e o recente UP) por razões sentimentais. Afinal, representam a utopia de um mundo melhor possível. Assim, o seu “voto” valeria mais do que o do “pobre de direita”, que, como dissemos, insiste em votar em partido de burguês.

O futuro, sem esses partidos que só representam seus próprios filiados, é termos cinco ou seis partidos-ônibus, em que fica mais difícil soluções de extremos. Pode não ser o sonho de quem vê a revolução como única solução para os problemas nacionais. Mas é como funcionam as grandes democracias ocidentais que são minimamente estáveis. Algum mérito esse sistema deve ter.

Situação difícil para o presidente

Que tem caroço nesse angu parece não restar dúvidas. A aprovação da compra de uma vacina que sequer foi aprovada pela Anvisa (e aqui não estamos falando da assinatura de um contrato para aquisição sujeita à aprovação, existiu a emissão de nota de fiscal, foi compra mesmo) e a esquisita intermediação de uma empresa pra lá de suspeita, quando a negociação direta com os laboratórios tem sido a norma das aquisições das outras vacinas, deixa tudo isso muito suspeito.

Isso é uma coisa. Outra coisa é provar o envolvimento do presidente na suposta maracutaia.

Quando, em 2005, Roberto Jefferson colocou a boca no trombone para denunciar o mensalão, seu alvo era José Dirceu. Ele se colocava como alguém que queria proteger o presidente de um esquema engendrado no gabinete de seu ministro da Casa Civil. Luiz Miranda também diz ter desejado proteger o presidente. (Aliás, parêntesis: a capivara de Luiz Miranda não deve muito à capivara de Roberto Jefferson. Isso não invalidou a sua denúncia, pelo contrário. Fecha parênteses).

Como sabemos, Lula não foi condenado no mensalão. A tese do “domínio do fato”, que foi amplamente discutida na época, não foi acolhida para o caso de Lula, sendo usada apenas para condenar José Dirceu. Segundo essa tese, não são necessárias provas objetivas de que o manda-chuva se meteu nos detalhes do crime, basta que tenha comprovada ciência do fato criminoso.

Luiz Miranda diz que tem provas de que Bolsonaro tinha o “domínio do fato”, mesmo sem ter gravado a conversa que manteve com o presidente. Parece difícil. Se tivesse, já as teria mostrado. O que parece é que o presidente está com problemas em manter Ricardo Barros (o seu José Dirceu) a salvo. Perder Ricardo Barros certamente não está nos planos de Bolsonaro. Mas essas coisas acabam fugindo do controle, e podem chegar, como no caso do mensalão, à dicotomia “ou ele ou eu”.

O fato é que este é um caso que tem o potencial de colocar sob estresse a tese do governo incorruptível, que não rouba e não deixa roubar. Mesmo que não se prove que o presidente tenha prevaricado, a dinâmica da coisa exigirá ações fortes daqui em diante, o que pode estressar a relação com os caciques do Centrão. Situação difícil para o presidente.

Probabilidades vs. Narrativas

Em 2020, morreram atropeladas 80 pessoas por dia no Brasil. Considerando que foi um ano de pandemia, vamos assumir conservadormente que, em média, somente metade da população tenha saído de casa todos os dias. Temos, então, uma chance em aproximadamente 1.300.000 de morrermos atropelados quando saímos de casa. Uma chance extremamente baixa, o que mostra que sair de casa é bastante seguro.

Mas, claro, existem as 80 mortes por dia. A chance é baixa, mas não zero. Agora, imagine que existisse uma campanha para que as pessoas não saíssem de casa por ser inseguro. Seriam os “anti-exit”. Cada morte no trânsito seria brandida pela campanha como uma “evidência” de quão inseguro é sair de casa. “Tá vendo, olha só, saiu de casa e foi atropelada!”

Parece ridículo, mas o raciocínio é o mesmo quando se aponta mortes e efeitos colaterais graves em quem tomou a vacina. A agência de notícias Associated Press fez um levantamento com base nos dados do CDC (Centro de Controle de Doenças dos EUA) e concluiu que, das mais de 18 mil pessoas que morreram de Covid nos EUA em maio, apenas cerca de 150 haviam sido vacinadas, ou 5 pessoas por dia.

Considerando que cerca de metade da população americana tomou as duas doses da vacina, temos uma chance em 35 milhões (por dia) de alguém morrer de Covid tendo tomado a vacina. Ou seja, é cerca de 30 vezes mais provável ser atropelado no Brasil ao sair de casa do que morrer de Covid após tomar a vacina. Um movimento “anti-exit” faria, portanto, mais sentido do que o movimento “anti-vaxx”.

Ocorre que essas 150 pessoas existem, além de outras que tiveram efeitos colaterais graves. De fato, elas morreram de Covid, mesmo tendo tomado a vacina, ou sofreram efeitos colaterais. Vivemos na sociedade da informação instantânea e sem filtros. Basta que uma pessoa tenha morrido ou tenha tido reações graves à vacina que a sua história voa nas asas das redes sociais. E aquela história, de uma pessoa concreta, tem muito mais poder sobre a mente das pessoas do que estatísticas frias. Os jornalistas sabem disso. Em qualquer matéria, a ilustrar o ponto a ser defendido, existirá ao menos uma entrevista com alguém de carne e osso que esteja vivendo aquela situação.

Os anti-vaxx acreditam em histórias, não em probabilidades. Segundo os dados levantados pela AP, pessoas que não tomaram a vacina tiveram cerca de 250 vezes mais chance de morrer de Covid do que pessoas que tomaram a vacina. É muito, e deveria servir como um incentivo à vacinação. Mas é outra a probabilidade considerada pelos anti-vaxx: em maio, a chance de morrer de Covid sem estar vacinado nos EUA foi de uma em 275 mil. Trata-se de uma chance remota de qualquer forma, e que compete com as histórias tenebrosas a respeito das vacinas.

É impossível viver sem arriscar-se. Estamos o tempo inteiro girando o tambor do revólver contra as nossas cabeças e puxando o gatilho. A bala sempre vai existir. O que podemos fazer é diminuir o máximo possível a chance de a bala parar justamente no ponto de parada do tambor. Os números levantados pela AP demonstram que essa chance diminuiu em 250 vezes nos EUA em maio. Não é zero risco. Mas nada na vida é zero risco.

Onde está o recheio?

Em uma redação, quando se quer dar uma ideia de amplitude, pode-se usar a expressão “de… até…”. Assim, por exemplo: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias”. Se queremos ir além, dando uma ideia de diversidade, incluímos o verbo “passando por”. A sentença fica, então, assim: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias, passando por seres tão diversos quanto cobras, vacas e seres humanos”. Essa construção, quando usada, geralmente tem por objetivo estressar um ponto comum a todos os objetos, apesar da sua amplitude e diversidade. Aqui, por exemplo, a frase seria coroada com o ponto a ser desenvolvido: todos são seres vivos. O período completo ficaria então: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias, passando por cobras, vacas e seres humanos. Todos são, no entanto, seres vivos”.

Essa aulinha básica de redação veio-me à mente quando li a reportagem acima. “… um amplo espectro de partidos e figuras políticas, que vai das siglas de esquerda até ex-aliados de Bolsonaro”. Está aí a expressão “de… até…”, que o repórter usou para tentar mostrar a amplitude do movimento e, por suposto, a grande possibilidades de prosperar. O que falta, no entanto? A expressão “passando por”, para mostrar também a diversidade do grupo. Cadê o recheio do sanduíche?

Siglas e grupos de esquerda pedindo impeachment não é novidade. Fizeram isso com Collor, Itamar, FHC, Temer e, agora, Bolsonaro. O outro extremo é composto por “ex-aliados” de Bolsonaro, que estão lá mais por uma questão de vingança pessoal do que qualquer outra coisa. Onde está a sociedade civil?

O pedido de impeachment de Collor foi entregue ao Congresso por Barbosa Lima Sobrinho. O de Dilma, por Miguel Reale Jr. Dois representantes da sociedade civil acima de quaisquer suspeitas. Onde está o nome da sociedade civil disposto a associar o seu nome a um pedido de impeachment? Reale Jr tem sido bastante crítico a este governo. Isso é uma coisa. Outra coisa, bem diferente, é dar legitimidade a um pedido de impeachment. Por um motivo simples: oposição não é sinônimo de deposição.

Não estou aqui afirmando que um processo de impeachment não possa ser iniciado. Mas, para que haja alguma chance, o “de… até…” precisará ser acompanhado por um “passando por…”. Caso contrário, não passará de factoide político.