A tática da “terceira via”

Essas matérias precisam ser lidas com uma pitada de sal, dado que essa entidade, “centro”, pode ter tudo, menos unidade de pensamento e de comando. Mas esse tipo de discussão não deixa de ser interessante: afinal, quem vai dar lugar a uma “terceira via” no 2o turno, Lula ou Bolsonaro? A depender da resposta, a tática será diferente.

A reportagem ampara-se nas últimas sondagens eleitorais, que colocam Lula à frente de Bolsonaro no 1o turno. Se isto estiver correto e se se mantiver até as eleições, o mais fácil seria tentar tirar Bolsonaro do 1o turno. Não vou aqui entrar no mérito da imprecisão dessas pesquisas e de quão distantes estamos das eleições. Meu ponto é somente entender qual seria a tática correta da “terceira via” neste cenário hipotético.

Ora, se o objetivo é tirar Bolsonaro do 2o turno, é óbvio que só se consegue esse objetivo tirando votos de Bolsonaro. E em quem o potencial eleitor de Bolsonaro votaria? Também é óbvio que esse voto vai para alguém que se mostre tão anti-Lula quanto Bolsonaro.

Note que não estamos falando do voto bolsonarista-raíz, aquele que está fechado com Bolsonaro no matter what. Este não vai migrar. Estamos falando daquele voto anti-PT, que deve ver em uma alternativa a Bolsonaro alguém que não seja, por óbvio, uma linha auxiliar do PT.

Fiquei quase sem voz aqui, durante as eleições de 2018, criticando a estratégia de Alckmin. O candidato do PSDB passou a campanha inteira batendo em Bolsonaro, como se isso pudesse causar a migração de votos do ex-capitão para si mesmo. Na verdade, só passava a ideia de ser uma linha auxiliar do petismo, o que, obviamente, afastava o eleitor anti-petista.

Nesse sentido, o aperto de mão entre FHC e Lula interessaria a um candidato da terceira via somente se fosse possível tirar Lula do 2o turno. Mostrando ser tão anti-bolsonarista quanto Lula, esse candidato poderia ganhar a confiança dos lulistas menos convictos. Isso em tese. Na prática, nem para isso serviu: apertar a mão do candidato que você quer tirar do 2o turno antes mesmo do 1o turno não é tática nenhuma, é só uma jumentice.

Enfim, se a tal “terceira via” realmente acha que é mais fácil tirar Bolsonaro do que Lula do 2o turno, seria bom começar a atacar Lula e o PT, e não tratá-lo com a reverência com que vem sendo tratado.

Vitória de Pirro

Este artigo resume de maneira bastante didática todos os prejuízos ao consumidor embutidos na MP que privatiza a Eletrobras.

A privatização da Eletrobras é um objetivo desejável, sem dúvida. Mas a MP que foi editada e aprovada na Câmara traz consigo um preço muito alto para atender esse objetivo.

É mais ou menos como uma pessoa que sofre de obesidade e a quem se lhe oferece um remédio que até resolve o problema, mas causa muitos outros, como ataque cardíaco, disfunção renal e paralisia dos membros inferiores. Pesadas todas as circunstâncias e efeitos colaterais, é melhor continuar convivendo com a obesidade.

É mais ou menos essa a conclusão que têm chegado todos os especialistas que analisam a MP, muitos dos quais amplamente favoráveis à privatização. Seria realmente muito triste que a primeira grande privatização do governo Bolsonaro viesse com esse preço. Uma vitória de Pirro.

O amor cega

– Amor, que cara é essa?

Edneia notou que havia algo errado assim que entrou em casa. Seu marido estava sentado no sofá, com aquele fogo nos olhos que ela conhecia de outros carnavais.

– Senta aí, Edneia.

Sinal péssimo. Chamou pelo meu nome, pensou Edneia. Nesses momentos, o apelido “Neia” era guardado na gaveta.

– O que foi, Nil, o que aconteceu? Edneia pensava que usando o apelido carinhoso de Adnilson poderia desanuviar o ambiente. Ledo engano.

– Vem ver o que me mandaram. Adnilson abriu o notebook e deu play. Ali estava claro: Edneia e um homem transando. Não havia dúvida, era Edneia. E não havia dúvida, estavam transando. O nome do motel estava em uma placa na parede. O motel ficava perto de sua casa.

– E-E-Eu posso explicar!

– Explicar o quê, Edneia! Não tem explicação isso aqui! Vou ligar para o meu advogado agora mesmo para pedir o divórcio!

– Calma, Nil, me ouça! Vou explicar!

– Ok, sou todo ouvidos, vamos lá.

– Veja, esse rapaz, ele trabalha na empresa. Ele é muito bom, está fazendo um curso de enfermagem à noite. Me convidou para um almoço nesse motel. Achei estranho, mas fui. Enquanto estávamos almoçando no quarto, ele me pediu para realizar alguns procedimentos que ele havia aprendido no curso. Foi só isso, juro!

– Então vocês foram ao motel só para almoçar?

– Isso!

– E esses movimentos são práticas do curso de enfermagem?

– Exatamente!

– Puxa, Neia, como pude desconfiar de você. Vem cá meu amor, você me perdoa?

– Claro Nil, eu sei que as coisas nem sempre são como parecem…

E se beijaram apaixonadamente.

Moral da história: o amor cega.

A morte de Nelson Sargento e a eficácia das vacinas

Os anti-vacinas ganharam um troféu e tanto: Nelson Sargento morreu de COVID-19 depois de ter tomado duas doses da Coronavac. Aliás, como brinde, foi justamente com a vacina do “calça apertada”.

O que dizer? Melhor seria acabar com essa tolice de vacinação e conformar-nos com a realidade, tão bem sintetizada na frase de nosso presidente, “alguns vão morrer, lamento, essa é a vida”?

Obviamente não, esse raciocínio não faz o mínimo sentido. Vejamos.

Para que ocorra uma contaminação, é necessário que ocorra antes uma transmissão. É muito provável que a pessoa que transmitiu o vírus para Nelson Sargento não tenha tomado a vacina. E, se o fez, muito provavelmente a pessoa de quem adquiriu o vírus não tomou. Em um país onde menos de 25% das pessoas receberam a 1a dose da vacina, é muito provável que essa cadeia de transmissão acabe em alguém que não tenha se imunizado.

Então, são necessárias as duas pontas no processo: alguém que transmita e alguém que se contamine. As críticas à vacina se concentram na parte que se contamina. Afinal, tomou a vacina, por que se contaminou? Ora, porque nenhuma vacina no mundo é 100% eficaz. Se alguém entendeu isso, entendeu errado. As chances diminuem, a probabilidade de ficar doente é menor, de morrer menor ainda, mas a chance não é zero.

Por isso, as campanhas de vacinação focam na imunização do maior número de pessoas possível, com o objetivo de inibir a outra ponta da corrente, a ponta da transmissão. Nelson Sargento, por algum motivo, não desenvolveu as defesas necessárias contra o vírus, mesmo recebendo a vacina. Mas ele provavelmente não teria ficado doente se aqueles que participaram da cadeia de transmissão do vírus tivessem já recebido a vacina. Pois alguns nessa cadeia não teriam desenvolvido a doença, interrompendo o processo.

Por isso, também não faz sentido dizer “eu não vou tomar a vacina, tem gente mais apavorada na frente”. A vacina não é um escudo individual perfeito; antes, a vacina é um escudo comunitário. Individualmente, a vacina tem uma eficácia limitada: funciona para muitos, mas não para todos. Comunitariamente, no entanto, se um número suficientemente grande de pessoas se imunizar, a cadeia de transmissão do vírus se quebra, encerrando o processo.

Portanto, a morte de Nelson Sargento não prova que a vacina não funciona, mesmo porque já sabíamos que não funciona em 100% dos casos no nível individual. O que sim a morte de Nelson Sargento prova é que a velocidade da vacinação não está suficientemente rápida para evitar a transmissão. Se há algo ou alguém culpado pela morte de Nelson Sargento não é a Coronavac.

Os movimentos supra-partidários e os partidos

O TSE reconheceu o direito de Tabata Amaral se desfiliar do PDT sem perder o seu mandato. O mesmo já havia ocorrido com Filipe Rigone, ex-PSB, no mês passado. O que há de comum nos dois casos? Ambos votaram a favor da Reforma da Previdência contra a orientação de seus respectivos partidos e ambos foram punidos pelas direções partidárias. E, o mais importante, ambos fazem parte do movimento Agora!, cujo membro mais reluzente é Luciano Huck.

O movimento Agora! forma lideranças políticas para implementar a sua agenda. Como não é um partido político, as lideranças formadas precisam se aninhar em partidos políticos já existentes. Para tanto, exigem a assinatura de uma carta-compromisso que promete a autonomia do parlamentar eleito. Ou seja, o parlamentar segue as diretrizes do Agora!, não as do partido a que está filiado. PDT e PSB (além da Rede e Cidadania) assinaram essa carta-compromisso com o movimento. E é com base nessa carta que o TSE reconheceu o direito de desfiliação desses parlamentares sem perda de mandato.

O que é um partido político? Duas coisas: 1) um agrupamento de pessoas com ideias comuns sobre como resolver os problemas da sociedade e 2) uma máquina para disputar eleições. No Brasil existe uma terceira definição, que é a de um business para enriquecer seu fundador, mas essa não nos interessa neste momento.

Tabata e Rigoni entraram para o PDT e o PSB com base em uma carta-compromisso que lhes livrava de obedecer à primeira definição acima, segundo interpretação do TSE. No entanto, usaram a máquina partidária para se elegerem. Os partidos gastaram dinheiro, tempo e recursos humanos para que eles conquistassem os seus mandatos. O mandato não é somente deles, é também dos seus partidos. Um mandato não se conquista somente com ideias, mas também com dinheiro.

Mas nem acho que seja esse o principal ponto. A questão de fundo é: se o Agora! quer manter sua autonomia política, por que não funda o seu próprio partido? Sim, eu sei, fundar partido dá trabalho. Muito melhor ficar ca… ditando regra sem precisar colocar a mão na massa. E aqui, massa não é exatamente feita de farinha de trigo. Nesse sentido, respeito o pessoal que fundou o Novo, jogando o jogo na arena, não na arquibancada.

Mas haveria uma alternativa para essas lideranças políticas: entrar em “partidos-ônibus”, onde todas as posições são aceitas. Não vai aqui um juízo de valor, pelo contrário. As grandes democracias do Ocidente são dominadas por partidos-ônibus. Para ficar em um só exemplo, Republicanos e Democratas dominam a política americana há mais de um século, e são partidos-ônibus que mantém em pé a maior e mais longeva democracia do mundo. Existem várias correntes dentro desses partidos, mais à esquerda ou mais à direita, e ninguém é expulso ou punido por votar contra uma orientação partidária. Aliás, nem existe isso de “orientação partidária”, pois seria impossível.

O mesmo ocorre no Brasil com partidos como MDB, PSDB, PSD, PP. São partidos-ônibus, que podem abrigar diversas tendências. Esses partidos nunca fecham questão em torno de matérias a serem votadas. Já partidos mais ideológicos, como PSOL ou Novo, não admitem qualquer tipo de desvio em relação aos seus programas. Talvez o grande engano de Tabata e Filipe foi achar que PDT e PSB eram partidos-ônibus puros. São, mas até certo ponto. No caso da reforma da previdência, agiram como partidos ideológicos, assim como o PT. (Aliás, no caso deste último, a ideologia é “siga o chefe”. Que o digam os parlamentares que fundaram o PSOL).

Ocorre que partidos à esquerda do espectro tendem a ser mais ideológicos nas votações fundamentais. E, por algum motivo, a agenda do Agora! casa melhor com a agenda desses partidos. Não à toa, a tal carta-compromisso só foi assinada com partidos do lado à sinistra da força, e os parlamentares do movimento se filiaram a esses partidos.

Portanto, houve uma incompatibilidade de agendas, e o TSE reconheceu o direito de a agenda do Agora! se sobrepor à agenda dos partidos, mesmo não sendo um partido. Tabata Amaral comemorou, dizendo ser uma vitória sobre os “caciques partidários”. Não foi. Foi uma vitória de sua vontade pessoal sobre a vontade da estrutura partidária a que ela pertencia. Quase a vejo falando de “Nova Política”, aquela em que os partidos são dispensáveis, restando a ligação direta entre o povo e o poder.

O ritmo de vacinação: uma luz no fim do túnel

Não é segredo para ninguém que o ritmo de vacinação está muito lento. Hoje estamos vacinando cerca de 450 mil pessoas/dia com a 1a dose e 220 mil pessoas/dia com a 2a dose. Neste ritmo, terminaremos de vacinar 100% dos adultos (acima de 18 anos) com a 1a dose somente em fevereiro de 2022 e, com a 2a dose, 3 meses depois, considerando que as vacinas preponderantes serão as da Astra Zeneca e da Pfizer. Com relação a esta última, a fabricante sugere 3 semanas entre a 1a e a 2a doses, mas, aparentemente, o governo vai dar 3 meses de distanciamento entre as doses.

No entanto, esta projeção tem uma limitação: considera o ritmo ATUAL de vacinação. Vou assumir, para todos os efeitos, que o ritmo de vacinação depende do estoque de vacinas, e não da capacidade de inocular as doses. Ou seja, se tivéssemos estoque suficiente, a velocidade seria bem maior, pois não há gargalo na aplicação das doses por parte dos municípios. Essa é uma premissa importante e, se não for verdadeira, o que vai a seguir não vale.

Rodei uma simulação considerando a aplicação diária de vacinas equivalente a 1,5% do estoque disponível de vacinas. O gráfico abaixo mostra esta razão (vacinação/estoque) até o momento. Podemos observar que 1,5% é o ponto mais baixo do gráfico. Aliás, é o ponto atual. Portanto, estamos sendo conservadores.

Para a simulação, considerei o calendário de entrega de vacinas divulgado pelo ministério da saúde (gráfico abaixo).

Pois bem, considerando 100% das entregas programadas, 100% da população adulta poderia receber a 1a dose da vacina até o dia 20/09/21. Considerando 75% das entregas programadas, esta data vai para 15/10/21. A 2a dose seria até 3 meses após essas datas.

Enfim, essa análise depende de várias premissas, que, espero, tenham ficado claras. De qualquer forma, a luz no fim do túnel pode estar mais próxima do que imaginamos.

A agenda por trás do argumento de autoridade

Se há uma categoria de pessoa que tem passe livre para dar palpite e ser escutado com respeito, essa categoria é a de “cientista”. Se ganhou Prêmio Nobel, então, nem se fala. Todos as suas opiniões, mesmo em áreas que não têm nada a ver com seu campo de estudo, recebem atenção. Afinal, trata-se de um “cientista”.

No Brasil, essa reverência é elevada à enésima potência se o cientista bate cartão em uma universidade nos EUA ou na Europa. Aí, trata-se de uma sumidade. Se o cientista, além disso, é brasileiro, ganha ainda mais respeito, por levar as cores verde e amarela para a terra dos gringos.

Nada contra opiniões. Eu mesmo não paro de dar palpites em vários assuntos. Particularmente, procuro evitar críticas “ad hominem” e sempre verificar a pertinência dos argumentos em si. O que não dá é o inverso: só porque é um “cientista” que diz algo, não se torna automaticamente “a verdade”.

Isso é tanto mais importante quanto sabermos que cientistas podem ter opiniões diferentes sobre os mesmos assuntos. E essas opiniões podem ser (e muitas vezes são) influenciadas pelo posicionamento político do cientista. Então, o truque mais manjado é procurar cientistas que confirmem as nossas próprias ideias. E, no caso de reportagens, que confirmem a agenda do veículo de imprensa.

Só isso justifica a recente exposição de ideias do cientista Miguel Nicolelis a respeito da pandemia, como por exemplo, em entrevista de hoje (26/05/2021) no jornal Valor Econômico.

Quando vi o nome de Nicolelis pela primeira vez em uma reportagem, faz uns meses, aquele nome não me soou estranho. Googlei e… voi lá! Nicolelis foi o idealizador do projeto do exoesqueleto que deu o pontapé inicial na abertura da Copa do Mundo de 2014, no Itaquerão.

Pensei: “puxa, será que desistiu dessa linha de pesquisa e passou a estudar epidemiologia?” Não. Nicolelis continua trabalhando com interação entre cérebro e máquina. É tão epidemiologista quanto eu ou você. Mas, o fato de ser um cientista brasileiro que trabalha em uma universidade americana lhe dá passe livre para palpitar e ser ouvido.

Nicolelis foi designado coordenador do Comitê Científico do Consórcio Nordeste para o combate à pandemia. Mesmo não sendo epidemiologista. O convite foi feito pelo governador Rui Costa, do PT. E isso diz alguma coisa.

O projeto de Nicolelis foi mais um dos “campeões nacionais” eleitos pelo governo Dilma para receber verbas discricionárias. Recebeu R$ 33 milhões do Finep para o desenvolvimento do exoesqueleto a ser exibido na abertura da Copa. Isso foi em 2013/14. A ligação com governos do PT, portanto, vem de longe.

Nada mais útil, portanto, do que ter a opinião de um cientista reconhecido e que tenha, digamos, uma visão de mundo de acordo com a ideia que se quer transmitir. Mesmo que sua formação não permita dar palpites mais embasados do que, sei lá, as de um ortopedista. Mas isso pouco importa: o que conta é a opinião “certa”, aquela de acordo com a agenda. E isso está garantido pelas, digamos, credenciais políticas de Nicolelis.

PS.: É bom deixar claro que concordo com grande parte do que ele diz a respeito da pandemia, em particular sobre a velocidade da vacinação. Mas não é este o ponto. O ponto é porque ouvir Nicolelis a respeito desse assunto.

Incentivos never die

Hoje deparei-me com anúncio de página inteira da Abiquim – Associação Brasileira das Indústrias Químicas, reivindicando a continuação do REIQ – Regime Especiação da Indústria Química. Trata-se de uma isenção de imposto para empresas do setor.

Este incentivo foi criado em 2013, no governo de Dilma Rousseff, que entendia tudo de incentivo à indústria. Hoje, os incentivos fiscais totalizam algo em torno de 4,25% do PIB. Em dinheiro, isso significa cerca de R$ 320 bilhões, ou 10 vezes o gasto com o Bolsa Família. No gráfico abaixo, podemos observar que houve um aumento de cerca de um ponto percentual do PIB em renúncias fiscais entre os anos de 2011 e 2014, no primeiro governo Dilma. Em dinheiro de hoje, foi um aumento equivalente a R$ 100 bilhões.

O que é um incentivo fiscal? É uma renúncia de cobrança de imposto. Cobrar menos imposto não deixa de ser interessante. Melhor do que cobrar mais, não é mesmo? O problema ocorre quando se cobra menos imposto mas não se diminui despesas do outro lado. Tem-se, então, um aumento da dívida pública, que deverá ser pago com mais imposto no futuro, seja imposto explícito ou implícito (inflação).

Os defensores dos incentivos fiscais se dividem em duas categorias: as indústrias beneficiadas e os economistas desenvolvimentistas. As indústrias beneficiadas apoiam os incentivos por definição. Como diz o anúncio de página inteira, paga com os incentivos, estes são importantíssimos para manter a competitividade da indústria e os empregos gerados.

O que nos interessa é o argumento dos economistas desenvolvimentistas, que defendem os incentivos de maneira desinteressada. O racional é simples: é importante que o Brasil desenvolva certas indústrias e regiões. Infelizmente, a nossa carga tributária, despreparo da mão-de-obra, direitos trabalhistas e infraestrutura precária não permitem que essas indústrias/regiões compitam de igual para igual com indústrias localizadas em outras regiões/países. Então, é preciso incentivá-los.

Há dois problemas com esse raciocínio: 1) A escolha arbitrária das indústrias/regiões e 2) A solução encontrada para a falta de competitividade.

Existe uma fé quase divina por parte dos economistas desenvolvimentistas de que o governo consegue escolher aqueles setores que “merecem” incentivos. Seriam setores que multiplicam o investimento mais do que outros, ou que desenvolvem tecnologia útil para a soberania do país. Então, estes setores precisam ser incentivados para aumentar a produtividade da economia como um todo.

O problema óbvio é que nada garante que o governo esteja correto. Aliás, pelo contrário: a julgar pelos resultados alcançados, acho que podemos cravar que as escolhas do governo são, na maioria das vezes, incorretas.

E o pior: subsídios não morrem jamais. Quando é para morrer algum subsídio, todo o lobby se junta para impedir. Este anúncio de hoje é só um exemplo. A campanha contra a “taxação do sol” é outro. E assim por diante. Quando a iniciativa privada faz um investimento, avalia se está dando certo ou não, e rapidamente corta o prejuízo, se houver. No caso do subsídio não: eles permanecem eternamente, independentemente da sua eficácia, que não é sequer medida por critérios objetivos de produtividade. O argumento da manutenção do incentivo é sempre os “x mil empregos criados”, como se outros empregos não estivessem sendo eliminados nas empresas que não recebem os subsídios.

Este é o segundo ponto, para mim o principal: ao invés de investir em soluções horizontais, que beneficiem todos os setores econômicos, o governo sai pelo lado fácil: escolhe alguns setores “campeões”, deixando o restante na chuva. Ou pior: os setores que não recebem incentivos precisam pagar mais impostos ainda, pois as despesas não diminuíram, lembram? Isso gera distorções de alocação de capital que diminuem a produtividade da economia como um todo.

A carga tributária é de mais ou menos 33% do PIB. Portanto, os incentivos fiscais representam mais de 12% da carga tributária. Ou seja, se todos os incentivos fossem eliminados, a carga tributária de TODOS poderia ser reduzida em 12%. É só esse o tamanho do prejuízo.

Enfim, esse é um assunto sobre o qual não tenho a mínima esperança de que algo vai mudar. Os nossos presidentes do passado, do presente e do futuro, todos concordam que é preciso “incentivar setores”. E vão continuar fazendo isso. Se você não trabalha em um “setor incentivado”, fique feliz com as supostas “externalidades positivas” geradas pelos incentivos. É o que nos resta.

PS.: para ver uma lista completa de todos os incentivos em vigor, clique aqui.

O espírito do capitalismo

Este é o segundo post sobre o filme indiano Pad Man. Vou abordar aqui o aspecto econômico da história.

Trata-se da incrível história de um inventor indiano que, levado pelo amor que tem à esposa, decide encontrar uma solução para fabricar um absorvente higiênico de baixo custo. A Índia, como sabemos, é um país muito pobre, e somos informados que somente 12% das mulheres indianas têm acesso a absorventes higiênicos. O resto das mulheres precisa se virar com paninhos.

A história começa com o inventor comprando na farmácia um pacote de absorventes, que custa 55 rúpias. Para o indiano médio, trata-se de uma pequena fortuna, impossível de ser mantido como hábito. A esposa do inventor recusa-se a usar os absorventes, pois o inventor tem irmãs que também teriam direito a esse luxo, e não há dinheiro para comprar absorventes para todas.

O inventor, então, resolve estudar o produto. Ele fica admirado como um pouco de algodão embrulhado em um pedaço de papel pode custar tão caro. Ele diz para si: isso eu posso fabricar por uma fração do preço. Começa, então, a sua saga.

O inventor pega um pouco de algodão, embrulha em um certo tipo de papel seda, e entrega para a sua esposa. Esta usa, mas a coisa não funciona: vaza durante a noite, e ela é obrigada a lavar todas as suas roupas.

Bem, não vou aqui contar mais detalhes para não dar spoiler, mas o fato é que aquela “coisa simples”, que aparentemente seria fácil de fazer, na verdade envolve alta tecnologia, fruto de extensa pesquisa e muitos testes ao longo de anos.

Olhe o mundo à sua volta. Tudo, absolutamente tudo o que usamos, que damos como natural que estejam à nossa disposição, é fruto de um longo processo de desenvolvimento tecnológico. A exata composição química, o mecanismo perfeito de funcionamento, o processo mais eficiente de fabricação, tudo isso é resultado de milhões de horas combinadas de muitos e muitos seres humanos, em um processo de erros (muitos) e acertos (poucos) sucessivos e cumulativos. Ao assistir ao filme, duvido que você não ficará surpreso com a tecnologia por trás de um simples absorvente higiênico.

Mas você pensa que chegar ao absorvente perfeito é o ponto final da jornada? Ingenuidade sua e do inventor. Agora começa a verdadeira saga: como fazer chegar o produto ao consumidor final? Pode parecer óbvio isso que vou dizer, mas um produto não se vende sozinho. É preciso ter um modelo de negócios em torno do produto. Uma empresa.

Um inventor consegue inovar, mas aquele invento somente será útil para a humanidade se chegar nas mãos dos consumidores. E somente uma empresa, um modelo de negócios sustentável, consegue atingir este objetivo.

Novamente, olhe em torno de si. Todos os produtos e serviços que você usa chegaram a você de alguma forma. São invisíveis os imensos desafios de logística e mercadológicos que devem ser vencidos para que o produto ou serviço chegue a você a um preço suficientemente atrativo para que um número suficientemente grande de pessoas compre, de modo que a empresa que fabrica o produto sobreviva.

Em determinado momento do filme, o inventor precisa pensar justamente nisso: qual o melhor modelo para fazer chegar um absorvente barato ao maior número possível de mulheres? A solução é bastante engenhosa.

Por fim, a última consideração: o empresário. O inventor do filme não é somente um inventor. É, principalmente, um empresário. Incansável na busca de soluções, obcecado pelo seu objetivo. Ele simplesmente vai passando por cima dos obstáculos que vão surgindo. Existe, claro, o componente sorte, mas, para que a sorte trabalhe a seu favor, é necessário que você trabalhe antes em favor da sorte.

O empresário é a alma do capitalismo. É o sujeito que consegue coordenar pessoas e meios de produção de modo a fazer chegar ao consumidor produtos e serviços que criam valor, a preços que estes podem pagar, mantendo essa operação viva e operante ao longo do tempo. Não é para qualquer um.

Um país é tão mais rico quanto mais o seu espírito empreendedor é incentivado e premiado. O resto é teoria acadêmica.

Escolha política não define caráter

Assisti ontem a um filme indiano despretensioso mas muito bom: Pad Man. Trata da história de um empreendedor indiano que bolou uma máquina para fabricar absorventes higiênicos baratos, com o fim de popularizar o seu uso entre as mulheres indianas.

Vou escrever dois posts a respeito, um mais “sociológico” e outro do ponto de vista econômico. Este é o primeiro, que abordará o aspecto sociológico.

A inspiração que levou à invenção foi a esposa do inventor. Condoído pelo fato de que a esposa usasse um pano pouco higiênico “naqueles dias”, ele foi comprar absorventes na farmácia. No entanto, custavam uma pequena fortuna, e a esposa se recusou a usar, dizendo que não era justo, pois o inventor tinha irmãs que também tinham o mesmo direito, e não havia dinheiro para comprar para todas. Começa daí a saga para chegar em algo mais barato.

O grande obstáculo enfrentado pelo inventor não foi tecnológico, como se poderia supor. Foi sociológico: em uma sociedade extremamente conservadora, os homens não podiam conversar sobre esse assunto, quanto mais testar um invento. Não havia forma de avançar se as mulheres simplesmente se recusavam a usar o absorvente fabricado pelo inventor.

Houve o choque de duas mentalidades: a do inventor, que sinceramente queria resolver o problema mensal da esposa, e o da sociedade onde ele estava inserido, cuja escala de valores dava mais importância para a intimidade das mulheres do que para a sua saúde.

Nós, com nossa mentalidade ocidental urbana, nos colocamos automaticamente ao lado do inventor na história: que absurdo, pensamos, a postura da esposa e de seus parentes, que rechaçam, por uma tradição tola, a oportunidade de melhorar o padrão de vida das mulheres.

Isso me fez um pensar um pouco sobre os nossos posicionamentos políticos. As pessoas têm formas diferentes de fazer o que consideram “o bem”. As opções políticas não são, em grande parte do tempo, uma sinalização da retidão moral de ninguém. São apenas opções diferentes para se fazer “o bem”.

Em certos círculos, é preciso tomar cuidado ao dizer que se vota em Bolsonaro, pois isso torna a pessoa homofobica, racista, misógina e, mais recentemente, genocida. Assim como em certos círculos é preciso tomar cuidado ao dizer que se vota em Lula, pois isso torna a pessoa conivente com a ladroagem e com regimes liberticidas.

Ao ligar a opção política a um problema de caráter, fecha-se qualquer possibilidade de diálogo civilizado. Afinal, como dialogar com alguém que não tem caráter? No filme, as pessoas da aldeia acreditavam piamente que o inventor era um mau caráter que queria se aproveitar das mulheres. Não havia possibilidade de diálogo.

Quando se trata de política, essa mistura entre moral e opinião é um veneno. A política é o campo onde os seres humanos organizamo-nos como sociedade civilizada. Fora da política, o que temos é a barbárie, a lei do mais forte. E a política, que deveria ser o campo do entendimento, do mínimo denominador comum, muitas vezes se converte em campo de batalha moral. Somos o “nós contra eles”, em que seres humanos que se acham “do bem” lançam o seu “fatwa” sobre os seres humanos “do mal”.

Conheço gente muito boa e honesta que votou em Haddad e vai votar em Lula na próxima eleição, e gente muito boa e honesta que votou em Bolsonaro e vai votar em Bolsonaro novamente na próxima eleição. O voto não deveria servir de parâmetro para o caráter de uma pessoa. O voto é apenas o resultado de uma escala de valores que, às vezes, não é o nosso. Todos querem o bem, apenas por caminhos diferentes.

Sinceramente, acho que falta uma abertura para entender o outro. Colocar-se no seu sapato, como dizem os americanos. Procurar entender a escala de valores que rege as suas preferências e decisões. Seria bom se reconhecêssemos que somos imperfeitos na compreensão do mundo que nos cerca, temos uma visão muito particular e limitada pela nossa formação, história de vida e psicologia. Em determinado do filme, o inventor consegue furar o bloqueio social. Isso só acontece quando ele se coloca no lugar do outro, respeitando a sua escala de valores.

Tenho respondido a certos comentários aqui com um “essa é a sua opinião”, apesar de até poder concordar com a pessoa, e de fato concordar na maioria das vezes. No entanto, quero tentar mostrar, com isso, que existem outras opiniões e posicionamentos, e seria interessante procurar compreender porque isso acontece, de modo a acertar mais na análise da realidade. Da realidade como ela é, não como nós desejaríamos que ela fosse.

É sempre muito agradável conversar com pessoas que concordam conosco 100%. Mas é pouco útil. Saímos mais enriquecidos e conscientes de nossas limitações se ouvimos opiniões diversas, procurando entender a escala de valores que está por trás daquelas opiniões. Entender não significa concordar. Eu posso achar, por exemplo, que o PT e o Lula são a pior desgraça que aconteceu ao Brasil nos últimos 30 anos, ou que Bolsonaro é um genocida cruel. Mas isso não me permite desconfiar da integridade de quem discorda de mim.

Enfim, sei lá. É isso.

PS.: Não quero, de maneira alguma, relativizar o bem e o mal. Há coisas certas e há coisas erradas. Os políticos fazem coisas certas e fazem coisas erradas. Isso não está em discussão. O meu ponto é que o apoio a político A, B ou C não deveria ser medida do caráter de ninguém. Nós apenas arranhamos a superfície da natureza humana.