As ideias “certas” e a legitimidade popular

No início do governo Bolsonaro, quando o então presidente ainda estava em sua fase “eu e as ruas”, cansei de escrever aqui que o Congresso tinha (e tem) tanta legitimidade popular quanto o presidente. Em minha timeline, bolsonaristas esfregavam na minha cara os quase 58 milhões de votos conquistados pelo ex-capitão, contra o esquálido número de votos do demônio da vez, Rodrigo Maia, então presidente da Câmara. A matemática, no entanto, era outra: os deputados do PSL, então partido do presidente e, supostamente, sua base no parlamento, tinham conquistado apenas uma fração dos votos totais. Em número de cabeças, eram 52 deputados (10% do Congresso), menos até do que a bancada do PT, que havia eleito 54 deputados. Agora em 2022 ocorreu o inverso: o PL, partido do ex-presidente, elegeu 99 deputados, contra 68 do partido de Lula.

Agora que Lula está no comando, os artistas fazem o papel dos bolsonaristas de 4 anos trás: pedem que o presidente ignore o Congresso e governe com base na força das ideias. Das ideias “certas”, que fique claro. É a negação da legitimidade dos congressistas e do próprio regime democrático representativo.

Lula, a exemplo de Bolsonaro no início de seu mandato, levou várias bolas debaixo das pernas no Congresso por negar-se a fazer política. Comportamento que se entendia por parte de Bolsonaro, que representava o antissistema, mas difícil de entender por parte de Lula, supostamente alguém calejado nos meandros de Brasília. Mas tem sido assim, por algum estranho motivo. Os artistas deveriam estar cobrando Lula não por um veto (um expediente de enfrentamento que não costuma acabar bem para o presidente), mas para que assuma seu lugar como articulador político. E antes que me informem que “política”, no Brasil, significa “toma lá, da cá”, não percam seu tempo. Eu sei disso, mas essa é a regra do jogo. A alternativa é ficar brandindo as “ideias certas”, enquanto o Congresso governa de fato o país.

Não mexa no meu queijo

Entrevista do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, a respeito da reforma tributária. Como todos os que vão perder com a reforma, Nunes é a favor da reforma, mas não DESTA reforma.

Aliás, fica difícil entender porque Nunes é a favor da reforma, dado que seu suposto efeito positivo (o crescimento econômico) é rechaçado pelo prefeito como uma “conversa fiada”. Para ilustrar seu ponto, Nunes cita a Argentina como contra-exemplo, confundindo falaciosamente condição necessária com suficiente e insultando a inteligência de seu interlocutor. A sorte dele é que, do outro lado da disputa pela prefeitura no ano que vem, estará Guilherme Boulos. Caso contrário, meu voto iria para o seu adversário.

Nunes afirma que São Paulo perderá R$ 15 bilhões com a reforma, o que é mentira, dado que a arrecadação do IVA será distribuída aos entes subnacionais de acordo com as arrecadações atuais. O que os prefeitos perderão (e Nunes não tem pejo de admitir), é um instrumento de benefício fiscal (“ações que tornam seus municípios atrativos para investimento”, nas palavras do prefeito). Pois são justamente essas “ações”, em todas as esferas de poder, que tornam nosso sistema tributário um nightmare de complexidade e litígios legais. São Paulo não vai perder R$ 15 bilhões. Será Nunes e os prefeitos que perderão discricionariedade sobre o ISS para, por exemplo, financiar o estádio do Corinthians, como foi o caso.

Essa situação me faz lembrar dos bancos estaduais, instrumentos usados para “ações que tornavam os estados atrativos para investimentos”. Foi necessário chegarmos à hiperinflação para que esse instrumento fosse retirado das mãos dos governadores. Mas, para tanto, foram precisos a convicção e o foco do então presidente da República, pois não se tratou de tarefa trivial.

A reforma tributária é difícil porque mexe com os pequenos poderes espalhados pela República. Todos são a favor da reforma, desde que não mexam em seu queijo. Aqui, como no Plano Real, é preciso um presidente da República com convicção e foco. Acho que Arthur Lira possui essas qualidades, estou otimista.

A melhor escolha, com certeza

Ainda não havia comentado sobre a indicação de Lula para a vaga no Supremo Tribunal Federal. Demorei porque não poderia ser ligeiro e leviano ao comentar uma indicação de tamanha importância. Trata-se, afinal, de uma das 11 vagas no Tribunal mais importante do país, aquele que tem a última palavra, e diante do qual os outros dois poderes baixam a cabeça. Dizem, assim deve acontecer em um país onde as instituições funcionam.

Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que não tenho envergadura intelectual para tecer comentários. A excelsa Corte do país é algo que está muito acima de minha limitada compreensão, de modo que preferi ouvir pessoas doutas e capazes a respeito do assunto. Nada melhor do que começar por aqueles que fizeram por merecer uma daquelas 11 vagas no Olimpo, os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal.

O ilustríssimo ministro Luis Roberto Barroso, por exemplo, afirmou: “É um advogado que desempenhou de forma admirável o seu trabalho quando tudo parecia perdido. Não se pode penalizar alguém por ter trabalho bem”. E completou: “Não vejo, se vier a ser o Cristiano Zanin, nenhum conflito ético, nem moral, nem de violação da impessoalidade”.

Já o excelentíssimo ministro Gilmar Mendes, saudou a escolha: “É alvissareira a notícia de que o nome do brilhante advogado Cristiano Zanin foi encaminhado à apreciação do Senado Federal. O Dr. Zanin sempre demonstrou elevado tirocínio jurídico em sua trajetória profissional”.

O magnificente agora ex-juiz Ricardo Lewandowski, que não perdeu a sua excelência pelo fato de ter se aposentado, pontuou: “Cristiano Zanin é um experiente e combativo advogado que preenche todos os requisitos constitucionais para ocupar uma vaga de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Será, com certeza, um magistrado competente e imparcial.”

Tão doutas opiniões certamente precisam ser consideradas. Mas é o Senado o Poder constitucionalmente responsável pela aprovação do nome indicado pelo presidente da República. Os senadores, cônscios de seu dever, certamente serão duros e austeros em sua sabatina, de modo que aos brasileiros não reste dúvida, uma vez aprovado o nome, de que se trata da escolha correta e perfeita.

Com o tirocínio do presidente da República, que indicou o nome, as opiniões favoráveis dos ilibados magistrados do Supremo Tribunal Federal, e a aprovação dos Senadores da República, podemos estar certos e convencidos e tranquilos de que o nome de Cristiano Zanin é o ideal para ocupar a vaga na Suprema Corte do País. Descansem, pois, os espíritos timoratos, pois as instituições do País estão funcionando na mais perfeita ordem. Se Cristiano Zanin chegar lá, será porque é o melhor para nós, brasileiros.

Circo de pulgas

O tamanho do programa do “carro popular” ficou em R$ 500 milhões para automóveis e R$ 1 bilhão para ônibus e caminhões. O que isso significa?

No caso dos automóveis, considerando um bônus médio de R$ 5 mil, estamos falando de 100 mil carros comprados através do programa. O total de automóveis vendidos em 2022 foi de aproximadamente 2 milhões. Tudo o mais constante, o programa representaria um aumento de 5% nas vendas em relação ao ano passado. No entanto, é preciso separar o que é efeito do programa do que é tendência natural do mercado. Até maio, haviam sido vendidos 750 mil automóveis, 10% a mais do que no mesmo período de 2022. Ou seja, o mercado já estava crescendo 10%. Se chegarmos ao fim do ano com crescimento abaixo de 15% (10% do crescimento natural e 5% do programa) dará para desconfiar da eficácia dos descontos.

A pergunta é: 5% de desconto (R$ 5 mil sobre um preço médio de R$ 100 mil) será suficiente para deslocar a curva de demanda de maneira permanente? Ou, de outra forma, não teremos apenas a antecipação do consumo, assim como tivemos seu atraso à espera do bônus? Um desconto de 5% será o suficiente para atrair o novo comprador, aquele que não estava pensando em trocar de carro any time soon? No meu caso, por exemplo, que estava planejando trocar de carro somente daqui a um ano, a conta é a seguinte: é melhor gastar R$ 95 mil hoje ou deixar esse dinheiro rendendo a, digamos, 10% ao ano, para trocar o carro com R$ 104.500 daqui a um ano? Se o carro aumentar menos de 4,5% em 12 meses, terá sido melhor esperar. De qualquer forma, trata-se de uma antecipação de consumo, não da atração de novos consumidores. Para isso, seria necessário que ocorresse um deslocamento permanente da curva de demanda, fruto, por exemplo, de um aumento de renda da população. Se eu comprar meu carro este ano, estarei subtraindo consumo de 2024, a soma será zero.

Já o programa para ônibus e caminhões tem uma pegada ESG: os beneficiários precisarão sucatear seus veículos usados. Pergunto: quem, com um ônibus ou caminhão em estado de sucateamento, tem dinheiro para comprar um veículo 0km, mesmo com algum desconto? Não conheço esse mercado, mas parece um pouco puxado.

O mais curioso é que quem vai custear esse programa serão os próprios donos de veículos a diesel, que terão o desconto do imposto cancelado antecipadamente. Tira de um bolso e coloca no outro. A não ser, claro, que a Petrobras dê uma mãozinha, e segure o aumento do combustível no peito. Assim, o desconto será pago pela minha, pela sua, pela nossa Petrobras. Enquanto isso, continuam faltando R$ 150 bilhões para que o governo consiga atingir sua meta de resultado primário.

Por fim, esse programa vai em linha com o estilo circo de pulgas desse governo: programas minúsculos anunciados como o maior espetáculo da Terra.

Negócio da China

O Estadão nos traz a tradução de uma reportagem da AP, sobre as dívidas de países pobres com a China. Não é a primeira matéria que leio sobre o assunto. O foco é no garrote chinês, que se utiliza de métodos escusos, como empresas de fachada, para esconder uma parte da dívida. Mas gostaria de chamar a atenção para o outro lado da questão, os países que tomaram a decisão de se endividarem.

Invariavelmente, as dívidas foram tomadas para a construção de infraestrutura. A reportagem cita portos, aeroportos, ferrovias. É o típico investimento que os economistas desenvolvimentistas amam de paixão, pois, em tese, formam a base para o crescimento futuro da economia. No entanto, por algum estranho motivo, o crescimento não veio, e sobraram os juros e a amortização da dívida. Com isso, alguns países tiveram, inclusive, que parar de pagar salários dos funcionários públicos e aposentadorias.

O que aconteceu? A reportagem nos dá algumas pistas. Por exemplo, um aeroporto construído em Sri Lanka, na cidade do presidente, está às moscas, com a sua pista de pousa tomada por elefantes. Este é um caso prosaico, mas longe de ser único. Representa a malversação de recursos em obras de infraestrutura sem base em lógica econômica, apenas para atender necessidades políticas. Alô refinaria Abreu e Lima, aquele abraço!

Esses países foram sequestrados por elites extrativistas, que revestem suas ambições pessoais com a capa de “investimentos para o desenvolvimento econômico”. O resultado são empreendimentos sem a mínima lógica econômica, com o objetivo de faturarem politicamente a construção de “grandes obras” e se locupletarem através de esquemas de corrupção. A matéria não chega a citar esse último aspecto, que certamente está presente.

Investimentos estatais em infraestrutura são sempre ruins? De maneira alguma. Está aí Itaipu como contraexemplo. Mas, para cada Itaipu, há dez Transamazônicas que sugam recursos sem a correspondente contribuição para o crescimento econômico. O resultado é estagnação econômica, um roteiro que conhecemos bem.

Hoje, o Brasil sofre sob o peso de sua dívida. Não há recursos para nada, a não ser para pagar aposentadorias, funcionários públicos e juros da dívida. No entanto, ao contrário dos países reféns da China, o Brasil é refém dos seus próprios “rentistas”, o que pode passar a falsa impressão de que está em uma situação melhor. Isso é uma ilusão. Credor é credor, qualquer que seja a sua cor. O fato de dever em sua própria moeda não alivia em nada, a não ser pela alternativa de poder dar calote via inflação.

O que restou das manifestação de junho

O que faz as pessoas se levantarem de suas poltronas, onde poderiam muito bem estar assistindo à sua série favorita, para sairem às ruas? Este mês de junho marca os 10 anos em que as pessoas saíram as ruas sem uma pauta definida, o que causa perplexidade até hoje.

Entendo que o denominador comum dos manifestantes era a qualidade dos serviços públicos. O estopim foram os R$ 0,20, mas logo ficou claro que não era pelos R$ 0,20, mas pelos R$ 3,20 cobrados da população sem um serviço condizente. Extrapolando, serviços públicos péssimos em troca de nossos impostos. Mas o fundamental dessas manifestações foi a hostilidade a toda classe política. Bandeiras de partidos eram arrancadas, para deixar claro que os partidos eram parte do problema.

Mas, ao contrário de algumas análises que li por aí, minha avaliação é de que não se tratava necessariamente de manifestações anti-institucionais. A hostilidade aos políticos significava simplesmente que os políticos estavam do outro lado da mesa. Mas havia uma mesa, e havia o outro lado. Não estava em pauta uma virada de mesa.

O mesmo podemos dizer sobre as manifestações pelo impeachment, um instituto baseado em lei, por dentro das instituições. A narrativa de “golpe” se restringe aos petistas, estes sim, não muito afeitos à institucionalidade.

Já as manifestações em apoio a Bolsonaro tinham o espírito da virada de mesa. Bolsonaro ocupou o vácuo político deixado pela falta de resposta dos partidos políticos aos manifestantes de junho de 2013. Aquelas jornadas foram um aviso não correspondido, e que desembocou em Bolsonaro e seu discurso antissistema. Mesmo depois do capitão ter sentado no colo de Ciro Nogueira e Valdemar da Costa Neto, seus seguidores continuaram acreditando que aquilo se tratava de tática de curto prazo, com o grande objetivo de virar a mesa. Os eventos de 8 de janeiro foram uma tentativa tardia de “empurrar a história” nessa direção.

10 anos depois, os motivos que levaram às jornadas de junho continuam aí, intactos. 10 anos depois, os manifestantes estão mais céticos, mais cínicos. Talvez seja necessária uma nova geração de brasileiros, que não sofreram a decepção de verificar que a realidade não se move, independentemente do número de pessoas que saem às ruas, para que tenhamos manifestações semelhantes. Até lá, só nos resta escrever textões no Facebook.

O direito de criar fábulas

Lula defendeu-se ontem das críticas à sua fala abjeta sobre a Venezuela. E ficou claro que Lula, para não variar, estava, na verdade, falando de si mesmo, e não da Venezuela. Em sua defesa, Lula afirma que foi preso como consequência de mentiras embaladas em uma falsa narrativa.

O que é uma narrativa? Narrativa nada mais é do que a tentativa de encaixar os fatos em uma sequência lógica, que faça sentido. Note que, no núcleo da narrativa, é preciso que exista um fato concreto. Se não existir, a narrativa se torna fábula, uma história inventada. Por exemplo, para se defender da acusação de que ganhou um triplex reformado do empreiteiro Leo Pinheiro, Lula inventou a narrativa de que o dono da OAS fez a reforma, incluindo uma cozinha Kitchen totalmente equipada, por sua livre e espontânea vontade, só para agradar D Marisa e fisgar o comprador. Como este “fato” é mais difícil de engolir do que pequi com casca, na verdade trata-se de uma fábula.

A narrativa faz parte da luta política. Quando Lula acusa os adversários de Chavez de inventarem mentiras, na verdade está condenando a política. Toda a oposição é resumida a uma “narrativa mentirosa”, ou seja, não baseada em fatos. Fábulas. Não se enganem: Lula encara toda a oposição que recebe no Brasil da mesma forma.

Durante a campanha eleitoral do ano passado, o PT foi acusado pelos bolsonaristas sobre a intenção de fechar igrejas. Tratava-se de uma narrativa baseada em um fato: o apoio do partido e seu candidato a Daniel Ortega, que estava fechando igrejas e prendendo bispos na Nicarágua. Os petistas reagiram, dizendo que era fake news, que não havia nenhuma intenção de fazer o mesmo. Mas o fato incontornável dessa narrativa não foi contestado, qual seja, o apoio ao regime nicaraguense. Se houvesse uma mísera notinha do partido condenando Ortega, o núcleo da narrativa desapareceria. Estamos aguardando essa notinha até hoje. Aliás, o TSE proibiu a campanha de Bolsonaro de ligar Lula a Maduro e Ortega, em uma clara intervenção na legítima narrativa política.

Note que Lula não pede a Maduro que contraponha “narrativas mentirosas” com fatos. Lula fala em “combater narrativas com a sua própria narrativa”. O mundo de Lula é um mundo de “narrativas” sem base em fatos. É um mundo de fábulas. Por isso, o espanto das pessoas de bom senso, que ainda se apegam aos fatos. Lula, ao defender Maduro, está, na verdade, defendendo o seu próprio direito de criar fábulas.

Escondendo-se atrás do Fundeb

O senador Omar Aziz quer entender porque o Fundeb está dentro do novo teto de gastos. Vamos tentar explicar.

O Fundeb é um gasto importante. Não, é um gasto muito importante. Tão importante, que, se estiver dentro dos limites do novo teto, empurrará outros gastos para fora. E é isso que Omar Aziz não quer. Ele e seus colegas não estão preocupados com o Fundeb. Eles estão preocupados com os outros gastos, que serão comprimidos pela presença do Fundeb. Porque, claro, o Fundeb é muito importante, e ninguém vai cortá-lo.

Esse raciocínio vale para qualquer outro gasto que fique de fora do teto. O objetivo é que esse gasto não obrigue o corte de outros gastos menos nobres. Mas, afinal, esse é o objetivo do limite de gastos, estabelecer prioridades. Cada gasto que fica de fora do teto, significa que outros gastos vão tomar o seu lugar.

O teto de gastos desse novo arcabouço já é frouxo. Tirar gastos de debaixo do teto deixará a regra ainda mais frouxa. Omar Aziz quer mais espaço para gastar, e se esconde atrás da importância do Fundeb para atingir esse objetivo.

Nenhuma novidade

Gabriel Boric, nessa reportagem do Estadão, foi classificado como um político de “centro-esquerda”. Quem te viu e quem te vê! Quando foi eleito, Boric representava o radicalismo da esquerda que havia enchido as ruas em protestos contra Piñera e forçado a convocação de uma Constituinte. Passado o tempo, com uma derrota fragorosa no referendo da nova Constituição e outra na eleição da nova Constituinte, Boric tornou-se a Bachelet de calças. Seu discurso sobre Maduro, hoje, tem mais a ver com a busca de apoio interno em seu país do que propriamente uma posição de convicção. De qualquer modo, demonstra porque o Chile está várias casinhas à frente do Brasil quando se trata de instituições democráticas.

O discurso de Lula, condenado por Boric, é o discurso padrão da esquerda latino-americana, aquele consagrado no As Veias Abertas da América Latina, ou na sua versão sarcástica O Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano. Não tem absolutamente nenhuma novidade. A novidade é Boric, e seu posicionamento civilizado, mesmo que seja somente para agradar a opinião pública de seu país.

A “frente ampla” é tão real quanto um unicórnio

“Frente ampla”, assim como “terceira via”, é daquelas categorias políticas que só existem no mundo do realismo fantástico brasileiro. Alckmin no primeiro turno e Tebet no segundo tiveram a missão de embrulhar a candidatura do PT com o papel de presente chamado “frente ampla”, que teria como objetivo livrar o país das garras do anti-democrata Bolsonaro.

O que se viu na eleição, depois de conhecidos os números, foi algo bem diferente. Se a intelectualidade tupiniquim caiu no conto da “frente ampla”, o mesmo não se pode dizer do eleitor médio: apenas 1,8% de votos separou os dois candidatos no 2o turno. O que nos leva a concluir que não existiu apenas uma “frente ampla”, mas duas: a frente ampla anti-bolsonarista e a frente ampla anti-petista, que perdeu para a primeira por uma fração de votos. Por algum estranho motivo, somente a “frente” anti-bolsonarista mereceu este nome.

Lula não perde ocasião de rir na cara de quem acreditou nessa esparrela. O editorial do Estadão lamenta a fala do presidente a respeito de Maduro, afirmando que aquilo implodiria de vez a tal “frente ampla”. Só é possível implodir um edifício que existe, e Lula sabe, mais do que ninguém, que essa história de “frente ampla” é conversa para boi dormir. Ele sabe que pode sair pelado na Praça dos 3 Poderes e estuprar a primeira velhinha que encontrar pelo caminho, que os que votaram nele ainda dirão “pelo menos, é melhor do que Bolsonaro”. O mesmo vale para as barbaridades de Bolsonaro, com o sinal invertido. Não, não temos uma “frente ampla”, temos uma “polarização” entre duas frentes amplas.

Por isso, estranharia muito que Bolsonaro fosse impedido de disputar eleições. O PT perderia seu espantalho, aquele que carreia votos para a sua própria “frente ampla”. Enquanto existir Bolsonaro e bolsonaristas, Lula pode falar e fazer as barbaridades que for, seus votos estarão garantidos.