A autossustentável leveza do ser

Quando li a chamada, pensei: “Uau, finalmente um lugar que verdadeiramente coloca em prática os preceitos de um planeta sustentável”. Esperava ler relatos de como os habitantes da ilha sobreviviam sem o fornecimento externo de comida, roupas e toda a lista de etceteras que fazem as delícias da civilização e são os responsáveis pela degradação ambiental. Saí de mãos abanando.

O máximo que tem são engenhocas que permitem, até onde entendi, sobreviver sem o fornecimento externo de eletricidade. Talvez o “autossustentável” do título da matéria se refira exclusivamente a isso. O problema é que o meio ambiente está se degradando não somente pela produção de eletricidade para climatizar adega (como aponta a reportagem), mas também, e principalmente, pela produção e transporte do vinho. Em outras palavras, produzir eletricidade para climatizar adega é a parte fácil, quero ver produzir todas os confortos da civilização de maneira autossustentável.

De fato, a reportagem não fala em uma ilha “autossuficiente”, em que um Robinson Crusoé sobrevive totalmente isolado da civilização. Isso sim, seria algo digno de nota. Veríamos, na prática, o mundo dos sonhos de Greta Thunberg. Mas não, é só uma ilha autossustentável, o que quer que isso signifique.

Para visitar a ilha é preciso desembolsar a bagatela de R$ 230 por pessoa. Até uma ilha autossustentável precisa do dinheiro corrente do mundo não sustentável para se sustentar. Talvez porque precise comprar materiais e contratar mão de obra que somente são possíveis de comprar e contratar em um mundo não sustentável. Não há mágica que se autossustente.

A natureza do escorpião

É o segundo domingo seguido que reproduzo aqui o editorial do Estadão. Não é mera coincidência.

Domingo é o dia mais nobre para o editorial de qualquer jornal. É aquele dia em que as pessoas têm mais tempo para gastar lendo “opinião”. Portanto, não é mera coincidência que o Estadão tenha escolhido dois domingos seguidos para desancar Lula, guardando o topo da página do editorial para tão nobre tarefa.

Se, no domingo passado, o editorial homenageou a digamos, capivara de Lula, hoje o assunto é a sua pauta econômica. Reproduzo, aqui, trecho lapidar: “Sem nenhum exagero, o governo de Dilma foi a gestão dos sonhos dos petistas, com a aplicação – sem freios, sem limites e sem diálogo – de todas as teorias, ultrapassa das e equivocadas, que o PT sempre defendeu e, pasmem, ainda defende”.

Claro que há quem acredite que Lula seja pragmático, e não vai dar ouvidos aos economistas do PT. A respeito dessa expectativa, nada mais útil do que lembrar a natureza do escorpião.

Lula está livre, mas não por ser inocente

Como era de se esperar, o caso triplex prescreveu. Os advogados de Lula escrevem que o caso “não tinha nenhuma materialidade”. No entanto, a anulação da sentença não tem nada a ver com o mérito da acusação, mas com a suposta parcialidade do juiz do caso.

Em 13 de janeiro de 2018, escrevi um longo texto, analisando a sentença de Sergio Moro, rebatendo, ponto por ponto, os argumentos da defesa de Lula. Não, não sou operador do direito, por isso não entro nas tecnicalidades do processo. Minha análise é apenas lógica, baseada nas evidências que serviram de base para a condenação. Não é preciso ser advogado ou juiz para entender quando um político recebe propina.

A passagem do tempo pode nublar a memória de algumas pessoas. Este texto serve como um lembrete de tudo o que aconteceu. Lula está livre, mas não por ser inocente.

Desejo vs. Realidade

No início do ano legislativo de 2021, o governo Bolsonaro estabeleceu uma série de prioridades para a pauta legislativa daquele ano. O Estadão publicou um resumo (abaixo) que guardei, para conferir no final do ano.

O resultado é a tabela abaixo: em verde, as pautas aprovadas, em vermelho, aquelas que ainda estão em tramitação.

Podemos observar um padrão: as pautas puramente microeconômicas passaram todas. Por outro lado, as pautas mais macro (reformas), aquelas ligadas ao meio ambiente e aos chamados “costumes” ficaram pelo caminho. Ou seja, o Congresso se mostrou bastante receptivo para pautas econômicas localizadas, de aumento de eficiência da economia. Quando se tratou, no entanto, dos grandes vespeiros, tanto macroeconômicos quanto ambientais ou de costumes, não adiantou ter o Centrão no comando, a coisa não andou.

Fica a pergunta: valeu à pena vender a alma ao Centrão? A não ser que o objetivo tenha sido outro, além de tocar a pauta legislativa.

De fato, o orçamento público não é como o orçamento privado

O economista Antônio Correa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia, nos lembra que a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico não se aplica, porque o Estado tem “funções e prerrogativas próprias”. De onde se conclui que o Estado pode gastar mais do que arrecada, se for com o objetivo de cumprir suas “funções e prerrogativas próprias”.

Nem economista sou, quem sou eu para discutir com o representante máximo dos economistas brasileiros. Ele deve ter razão, afinal é professor-doutor da matéria. Mas, como todo aluno aplicado, fico cá com minhas dúvidas.

Economistas como Lacerda defendem que o Estado pode sim se endividar de maneira ilimitada, porque seus gastos teriam um “efeito multiplicador” na economia. Ou seja, gerariam impostos suficientes para pagar a dívida lá na frente. Seria preciso apontar para um “equilíbrio intertemporal”, em que os investimentos de hoje serão os impostos de amanhã, garantindo, assim, o equilíbrio da dívida pública e, de quebra, fazendo “a roda da economia girar”.

Claro que não é assim tão simples, e tenho certeza que Lacerda concordaria comigo. É preciso que esses gastos sejam “de qualidade”. Não adianta, por exemplo, contratar pessoas para cavar buracos e depois enterra-los. Isso não vai gerar o “efeito multiplicador” desejado, vai só queimar mais dinheiro, gerando mais dívida pública.

E é nesse “gasto de qualidade” que mora o problema. Lacerda não vai me desculpar, mas vou usar um exemplo de economia doméstica. Imagine uma família que gasta mais do que ganha e já altamente endividada. O marido, então, ao invés de cortar gastos, decide abrir uma barraquinha de pastel na feira. O raciocínio é simples: com esse investimento, vamos ter lucro suficiente para pagar o investimento e ainda cobrir o buraco dos gastos correntes da família. É óbvio que, para que o plano dê certo, é preciso que este investimento seja “de qualidade”. Ou seja, que realmente gere lucro.

Ocorre que, quase que por definição, os gastos do governo são de péssima qualidade. Os gastos de “boa qualidade”, aqueles que geram retornos suficientes, normalmente já são realizados pela iniciativa privada. Sobra só a carne de pescoço, disputada por grupos de interesses que têm a eficiência do investimento como último critério de escolha, quando têm.

Lacerda e seus companheiros, além de defenderem o “efeito multiplicador” dos gastos públicos, costumam brandir o argumento das “externalidades positivas”. Ou seja, um investimento pode não ter retorno em si, mas ajudará outros agentes econômicos que não pagam pelo investimento. O exemplo clássico é o da estrada que não tem fluxo suficiente para pagar o investimento em sua manutenção, mas que supostamente beneficia indiretamente as populações das cidades que são por ela ligadas. Tenho uma certa dificuldade em entender como uma estrada por onde não passa ninguém beneficia alguém, mas vá lá, digamos que seja assim. Mesmo nesse caso, em que a externalidade supostamente alavanca a arrecadação de impostos, é preciso que o investimento seja feito com critério, para maximizar as externalidades positivas. Como esse é um exercício dificílimo de ser feito, não surpreende que também acabe refém de decisões políticas.

De fato, a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico é inadequado, mas não porque o Estado tenha “prerrogativas e funções que lhe sejam próprias”. O orçamento público é diferente porque o Estado tem a prerrogativa de se endividar sem limites, pois tem o monopólio da emissão da moeda na qual são, por lei, feitos os gastos. Assim, as famílias, que não podem emitir seu próprio dinheiro, precisam ajustar o seu orçamento. Já o Estado, que pode captar dinheiro sem limite, não precisa se ajustar. Esqueça toda essa história de “efeito multiplicador” e “externalidade positiva”, não é disso que se trata, mas de abusar do poder de monopólio sobre a moeda.

Isso funciona se os financiadores da dívida não têm para onde escapar e há excesso de poupança privada. Caso contrário, a única forma de se financiar é rodar a maquininha, desvalorizando a própria moeda. Se uma família faz isso, vai presa. Se o Estado faz isso, o máximo que acontece é o governo de plantão não ser reeleito ou ser impichado, em função da inflação e do baixo crescimento gerados.

De fato, o Estado não pode ser comparado com uma família: nós não temos como produzir inflação para pagar nossas contas.

Notícias nada boas para Bolsonaro

Atualizei este gráfico com as pesquisas dos últimos 3 meses, média da Datafolha, Ipec, CNT/MDA e Ipespe. Para quem está chegando agora, trata-se da popularidade líquida dos presidentes: ótimo/bom menos ruim/péssimo.

No início dos anos eleitorais, tínhamos as seguintes popularidades líquidas:

  • 1989: -44 (Sarney)
  • 1994: -28 (Itamar)
  • 1998: +26 (FHC)
  • 2002: -9 (FHC)
  • 2006: +13 (Lula)
  • 2010: +68 (Lula)
  • 2014: +9 (Dilma)
  • 2018: -64 (Temer)
  • 2022: -32 (Bolsonaro)

As notícias não são nada boas para Bolsonaro. A única vez em que um presidente fez seu sucessor com tamanha impopularidade no início do ano eleitoral (Itamar Franco em 1994), houve nada menos que um Plano Real no meio do caminho. Em todas as outras eleições, o sucessor foi feito com o mandatário no campo ao menos positivo de popularidade: FHC em 1998 (+26), Lula em 2006 (+13), Lula em 2010 (+68) e Dilma em 2014 (+9). Em 2002, FHC (-9) não conseguiu fazer seu sucessor, assim como, obviamente, Sarney (-44) em 1989 e Michel Temer (-64) em 2018.

Com uma popularidade líquida de -30, estável nos últimos 5 meses, a não ser que Bolsonaro tire da cartola algo equivalente a um Plano Real, a reeleição fica realmente muito distante. Claro que toda escrita está aí para ser quebrada, mas este é o quadro frio dos números.

PS.: faço a média de 4 institutos para amenizar eventuais vieses de uma ou outra pesquisa.

Romper o ferrolho

William Waack é um dos poucos analistas políticos no Brasil, hoje, em que eu presto atenção. Suas análises normalmente descortinam ângulos novos a respeito das mesmas questões, lançando uma nova luz sobre velhos problemas.

Em sua coluna de hoje, Waack, depois de descrever a tática adotada por Lula e Bolsonaro e suas dificuldades, foca na questão da 3a via. Moro, Ciro e Doria têm encontrado muita dificuldade para romper o que ele chama de “movimento de pinça”, feito pelas tropas petistas e bolsonaristas. Os três candidatos têm muitos passivos, amplamente explorados pelos dois exércitos. Então, como quem não quer nada, Waack solta o nome de Simone Tebet como uma possibilidade real, aventada por “setores da 3a via”, o que quer que isso signifique.

Sobre os outros três nomes da 3a via, Tebet tem a vantagem de não ter passivo conhecido. O problema é que a candidata do PMDB tampouco tem ativos conhecidos, a não ser o fato de ser mulher e de ter participado na CPI da COVID, em que estrelou o episódio de “assédio moral” que supostamente sofreu de um depoente. Na verdade, tenho dúvida de que seja um ativo, mas vá lá.

Simone Tebet, portanto, seria uma folha em branco, ideal para ser trabalhada pelo marketing político, e mais difícil de ser alvo de um movimento de pinça.

Estamos apenas em janeiro, há ainda muito tempo para as eleições, e tudo pode acontecer, inclusive nada. O balão de ensaio de Simone Tebet pode murchar ou pode inflar, difícil dizer. Mas o fato de William Waack ter levantado a bola me fará prestar mais atenção a seus movimentos.

A morte como piada

Já escrevi nesta página muitos posts desancando as ideias de Eugênio Bucci. Não poderia, portanto, deixar de registrar este artigo, em que o professor da ECA-USP lamenta o festival de piadas e mensagens de ódio que invadiram a sua bolha por ocasião da morte de Olavo de Carvalho. Sem esconder suas profundas diferenças em relação ao guru do Bolsonarismo, Bucci simplesmente pede respeito diante da morte.

É óbvio que este comportamento não é exclusivo de nenhuma bolha. Posso imaginar os memes comemorando a morte de Lula, por exemplo. A piada do “CPF cancelado” quando um bandido morre é outro exemplo de comemoração. Como diz Bucci no artigo, por trás de todo crápula há um ser humano tentando respirar. E isso vale para todos os seres humanos. Todos. Por isso, se você ficou chateado com a falta de respeito pela memória de Olavo de Carvalho, tenha em conta que isso vale para qualquer ser humano.

Desta vez eu não poderia concordar mais com Eugênio Bucci.

A ilusão da agenda auto-evidente

Nilson Teixeira é um economista respeitado pela Faria Lima. Ficou famoso quando, em 2012, à época no Credit Suisse, arrumou uma treta com o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao prever crescimento de apenas 1,5% para aquele ano. Era um número muito menor que a média do mercado, e o economista foi espinafrado por Mantega. No final, o PIB cresceu 1,8% naquele ano, mostrando o acerto do economista.

Hoje, Nilson Teixeira publica um artigo com a seguinte tese: o presidencialismo de coalização está morto, na medida em que as emendas parlamentares se tornaram impositivas. Dessa forma, precisamos de um presidencialismo de conciliação, em que o convencimento político torna-se central para a execução dos planos do governo. E, continua a tese, Lula seria o candidato melhor preparado para esse novo arranjo, pois conseguiu congregar vozes diferentes em seu governo anterior e sinalizou abertura a outros pontos de vista com o namoro com Alckmin.

Tendo a concordar com Nilson: Lula, de fato, é o candidato mais preparado para fazer uma grande “conciliação nacional”, com STF, com tudo. Seus métodos já são conhecidos. Mas não é este o ponto a que eu gostaria de chamar a atenção.

Nilson Teixeira, e ele não está sozinho na Faria Lima nessa percepção, entende que existe uma agenda que se autoimpõe, os “ajustes necessários” e as “transformações no país”, em suas palavras, contariam com uma espécie de unanimidade nacional. Bastaria um “conciliador” que conseguisse coordenar os esforços políticos na direção já definida por essa unanimidade auto-evidente.

Obviamente, não é o caso. Lula e o PT têm uma agenda própria, que não se cansam de divulgar para quem tem ouvidos de ouvir. Como qualquer agenda, deverá ter resistências no Congresso, e Lula precisará usar todas as suas habilidades de “conciliação” para fazer avançá-la. Mas o importante é entender que essa agenda não contempla os “ajustes necessários” que estão na cabeça de Nilson Teixeira e dos farialimers. Pode até ser aprovada uma coisa ou outra dessa agenda para “acalmar os mercados”, mas a direção é claramente outra.

Enfim, parece-me que Nilson Teixeira sofre da ilusão de que os mercados acabam por levar os governos para a direção certa. Se assim fosse, não haveria políticas econômicas equivocadas. A Argentina é exemplo de país em que os mercados esgoelaram até ficarem roucos, e não impediram políticas insanas. A única forma de termos políticas econômicas racionais é eleger políticos convencidos das virtudes dessas políticas. O resto é exercício de self denial.