A falsa dicotomia entre garantismo e punitivismo

Meu amigo Nicolau Cavalcanti escreve hoje sobre uma epifania que lhe acometeu: a tendência punitivista da justiça seria um sintoma importante do déficit democrático que culminou nos atos de 8 de janeiro. O direito de defesa, segundo Cavalcanti, seria um dos pilares do Estado Democrático de Direito, e o ataque orquestrado contra esse direito pelos punitivistas seria um dos principais fronts no ataque à democracia.

Essa discussão entre “punitivistas” e “garantistas” me faz lembrar o debate entre “liberais” e “desenvolvimentistas” na seara econômica, no sentido de que cada um dos lados procura jogar o outro para o extremo, de modo que sua própria posição pareça muito razoável. De certa forma, isso é até fácil de fazer, porque qualquer posição pode ser extrapolada. Por exemplo, ser contra o Estado como empresário seria o primeiro passo para a eliminação do Estado, em uma espécie de anarquismo. Ou, ser a favor do Estado como empresário seria o primeiro passo para transformar o país em uma ditadura comunista, em que cada aspecto da vida dos cidadãos seria ditada pelo Estado. Esse tipo de extrapolação pode servir para “ganhar debates” em suas respectivas bolhas, mas é inútil para chegar a consensos mínimos. A imensa maioria das pessoas não acha que o Estado é completamente inútil ou, até mesmo, perigoso, assim como a imensa maioria das pessoas não pensa que um Estado onipresente seja a solução de nossos problemas. Trata-se aqui de uma sintonia mais fina do que estão dispostos a admitir ambos os lados do debate.

Da mesma forma, a oposição entre “garantistas” e “punitivistas”. Os garantistas, como o meu amigo, acusam os punitivistas de quererem acabar com o direito de defesa, ao passo que os punitivistas acusam o outro lado de quererem proteger criminosos. Esse tipo de extrapolação só serve para acirrar os ânimos e cavar trincheiras. O debate deveria se dar a respeito da velocidade da justiça em aplicar a lei, e não sobre um teórico “direito de defesa” a que ninguém, em sã consciência, é contra.

Por fim, permita-me o meu amigo concordar com sua tese central, mas discordar sobre a ordem dos fatores. Sim, um suposto ataque ao direito de defesa seria sintoma de deterioração da democracia em um país, mas não no sentido de fazer parte de um grande pacote de sentimentos anti-democráticos que vicejariam em um suposto submundo fascista em que alguns brasileiros vivem. Na verdade, sentimentos anti-democráticos surgem em cidadãos normais quando um pilar importantíssimo da democracia, a justiça igual para todos, parece disfuncional. Quando o Estado não cumpre o seu dever, cidadãos tendem a tomar a tarefa em suas próprias mãos de maneira desordenada. Nesse sentido, o garantismo extremo seria, ele próprio, a semente de sentimentos anti-democráticos.

Novamente: ninguém, em sã consciência, é contra o direito de defesa. Países com sólida tradição democrática garantem o direito de defesa e, nem por isso, deixam de punir o crime de maneira célere e independentemente de quem seja o réu. Por exemplo, cite um só país democrático em que existam quatro instâncias da justiça para que alguém seja preso (agora cinco, com o juiz de garantias). Portanto, meu convite é que deixemos de lado os rótulos, e trabalhemos para fortalecer a democracia através de uma reforma do judiciário que permita termos a mesma segurança jurídica das grandes democracias.

O poderoso exemplo da Argentina

Nenhum governador brasileiro visitou Lula tantas vezes quanto o presidente da Argentina, Alberto Fernandez. Ontem, foi a vez de seu ministro da Economia, Sérgio Massa, na quinta visita de alto nível ao País de um dignatário argentino em 8 meses.

Dessa vez, Massa não saiu de mãos abanando. Obteve uma linha de financiamento às exportações no valor de 600 milhões de dólares, que será garantida pelo Banco do Brasil, que, por sua vez, será garantida pelo CAF – Cooperação Andina de Fomento, uma espécie de BNDES da América do Sul.

O curioso é que esse acordo só foi possível porque a Argentina concluiu a sexta revisão do seu acordo com o FMI, o que permitiu o desembolso, por parte do Fundo, de uma parcela de US$ 7,5 bilhões, dinheiro esse que serviu para quitar parcelas de dívidas com a própria CAF, além de China e Qatar. E o CAF havia emprestado o dinheiro para que a Argentina quitasse parcela da dívida que tinha com o próprio FMI. Ou seja, a Argentina está naquela fase de pagar o saldo do cheque especial de um banco entrando no cheque especial de outro banco.

As reservas da Argentina estão negativas. O que significa que, descontando o empréstimo do FMI e a linha de swap cambial com a China, o governo da Argentina está sem dólares para pagar por importações ou para servir sua dívida externa. É como se alguém fizesse o supermercado com o saldo do cheque especial.

A última renegociação com o FMI, em meados de 2022, teve condições extremamente brandas, sendo elogiada até por Joseph Stiglitz, um desenvolvimentista acima de qualquer suspeita. Pois bem. Mesmo essas condições não foram cumpridas. Nessa última revisão, a meta de chegar ao fim do ano com reservas líquidas positivas de US$ 3 bilhões foi revisada para zero. Ninguém realmente acredita que mesmo essa condição abrandada será cumprida. E o mesmo ocorre com as metas monetárias e fiscais. A verdade é que o FMI, que deveria ajudar países com problemas conjunturais de liquidez, se meteu com um empréstimo gigante em um país com problemas de solvência sem as mínimas condições políticas de resolvê-los (pausa para um merchã: no meu livro Descomplicando o Economês, explico a diferença entre problema de liquidez e de solvência). Lula, como sempre, usa o FMI como boi de piranha, mas a verdade é que nunca o FMI foi tão generoso com qualquer outro país.

Massa foi recebido por Haddad. Ambos representam um pensamento econômico que levou a Argentina aonde ela está agora. A diferença é que Haddad herdou uma economia construída por FHC e depois consertada por Temer. Se dependesse de Dilma, era só uma questão de tempo para chegarmos aonde a Argentina está hoje. Haddad sabe disso, e por isso diz uma coisa mas faz outra: o Brasil de Lula e Haddad tem uma regra de limite de gastos, manteve a meta de inflação em 3% e reajustou os preços dos combustíveis quando precisou fazê-lo. O exemplo da Argentina é suficientemente poderoso para manter os nossos desenvolvimentistas na linha, ainda que o discurso continue a ser de grêmio estudantil. Como diria Guimarães Rosa, Haddad faz o que faz não por boniteza, mas por precisão. Que seja. Melhor assim do que se deixar convencer pelo próprio discurso.

Jantar cego

No dia dos pais, ganhei de meus filhos um voucher para participar de uma experiência inusitada: um “jantar cego”. Ontem foi o dia do jantar, e vou contar aqui a minha experiência.

O Jantar Cego ocorre em um espaço de eventos especificamente preparado para isso. Você e os outros comensais são levados para uma sala 100% sem luz, e os pratos são servidos por garçons cegos, que se revesam entre servir os pratos e cantar músicas ao vivo.

Para começar, uma vez sentado, você precisa se localizar. Muito delicadamente, você vai apalpando o espaço em sua frente, que já tem o prato do couvert colocado, para encontrar os talheres, o copo com água e a taça de vinho. Obviamente, precisa ser com muito cuidado para não derrubar nada. Na primeira apalpada eu já meti o dedo em um dos canapés no prato à frente.

O jantar contou com couvert, entrada, prato principal e sobremesa, com vinho ou suco, a depender da preferência, que precisa ser definida na compra do voucher, assim como qualquer restrição alimentar. Por isso, o comensal recebe um número de lugar como em um cinema, para que não haja troca de prato.

O couvert e a entrada já estavam na mesa, o prato principal e a sobremesa foram trazidos pelo garçom, assim como a segunda taça de vinho. Nesse caso, o garçom se colocava atrás, dizendo em que lado estava, e cuidadosamente o comensal precisa pegar o prato e colocar sobre o prato vazio à sua frente.

O ambiente é bem animado, com música gravada e ao vivo, e todos os comensais conversando e cantando, além de comer, claro.

Minha principal conclusão dessa experiência: comemos com os olhos. É completamente diferente comer sem ver o prato. Claro, o sabor é o mesmo, e não deixa de ser uma experiência interessante tentar adivinhar o que se está comendo, em uma espécie de “blind test”. Mas o prazer de comer é muito menor. Concluí que grande parte do prazer de comer é anterior ao próprio ato de comer. Nunca a expressão “comer com os olhos” fez tanto sentido para mim. Não é à toa que os chefs capricham tanto na estética do prato. Acho que isso representa uns 75% do prazer da refeição. Só quando não se vê o prato é que se entende isso. É claro que as pessoas com deficiência visual devem desenvolver outros mecanismos de prazer, que substituem o visual.

E outro ponto digno de nota foi ver a alegria das pessoas com deficiência visual, na reunião após a refeição, aí já fora do salão escuro. Trata-se de um emprego em que eles têm a oportunidade de, a um só tempo, ganhar o seu sustento e aumentar a percepção das pessoas para a sua deficiência. Foi muito gratificante participar desse momento.

O Brasil voltou

A Tupy é uma empresa de capital aberto. Seu ramo de negócios é “o desenvolvimento e produção de componentes estruturais em ferro fundido de alta complexidade geométrica e metalúrgica”. Tem plantas no Brasil e no exterior, e vende seus produtos para mais de 40 países. Faturou R$ 10 bilhões em 2022.

A Tupy foi fundada em 1938 por três descendentes de alemães, mas em 1995 a maior parte das ações da empresa foi adquirida por um consórcio formado por BNDESpar, Previ (fundo de pensão do Banco do Brasil), Telos (fundo de pensão da Embratel, antes de ser privatizada), Aerus (fundo de pensão da Varig) e Bradesco, com o objetivo de livrar a empresa da falência. Com o tempo, Telos, Aerus e Bradesco saíram do controle acionário, restando o BNDESpar e a Previ, que detém, hoje, o controle da empresa (53%). Portanto, apesar de não ser uma estatal, a Tupy é controlada por entidades, de alguma forma, ligadas ao governo federal.

Toda essa longa introdução vem a propósito de um fato relevante publicado pela empresa na sexta-feira à noite, informando ao mercado que dois membros do seu Conselho de Administração foram substituídos. Está sentado aí? Então segura essa: Anielle Franco (irmã de Marielle Franco) e Carlos Lupi (presidente do PDT) serão os novos conselheiros da empresa.

Essas duas vagas pertencem ao BNDES. Os conselheiros substituídos foram Carla Gaspar Primavera (superintendente da área de energia do banco) e Fabio Rego Ribeiro (head de private equity do BNDES). Dois conselheiros com experiência empresarial serão substituídos por dois conselheiros que…, bem, deixa pra lá. Não custa lembrar que os dois novos conselheiros devem ter sido aprovados pelo presidente do BNDES, Aloísio Mercadante.

Os antigos acionistas venderam a sua participação para salvar a empresa da falência. Nenhum grupo privado se ofereceu, restando o BNDES e fundos de pensão de empresas públicas. É mais ou menos como vender a alma ao diabo para conseguir riquezas. Uma hora o diabo aparece para requisitar a sua alma. No caso, Anielle Franco e Carlos Lupi são o preço exigido.

O mais curioso dessa história é a empresa afirmar que a escolha passou pela “verificação da aderência dos referidos candidatos aos critérios presentes na Política de Indicação de Membros do Conselho de Administração da Companhia”. Não consigo imaginar quais seriam esses critérios. Eu, que não sou acionista da empresa, só posso dar gostosas gargalhadas.

Os negócios de Elon Musk com o governo americano

O colunista Pedro Doria pratica, em sua coluna de ontem, um de seus esportes favoritos: criticar os grandes Titãs da tecnologia. No capítulo de hoje, temos a questão do perigo representado por Elon Musk, um sujeito instável com um poder estratégico além da imaginação. Mas aqui não vou analisar esse “problema”. Vou me ater a uma crítica bastante comum ao criador do PayPal, da Tesla, da SpaceX e da StarLink: a de que Musk não seria nada se não fossem os subsídios do governo e, portanto, sua crítica ao Estado grande e generoso seria uma incoerência e, no final das contas, uma falta de gratidão.

Sempre achei pouca lógica nesse raciocínio. Afinal, os subsídios estão lá, em tese, para todos, mas existe um só Elon Musk. Ou seja, não é que os subsídios tenham sido dados para Musk porque só poderiam ter sido concedidos para sul-africanos com nome começado por “E”. Não. Todos tiveram acesso, mas nem todos aproveitaram. Além disso, certamente outros empresários se beneficiaram de subsídios, mas somente um criou a Tesla. Subsídios não necessariamente fazem bilionários. É preciso também ter o dom.

Mas, vejamos pelo ângulo oposto: a Tesla teria sido possível sem os subsídios? Ou, de outra forma, teriam sido os subsídios condição necessária, ainda que insuficiente? Fui atrás dos números: a Tesla obteve cerca de US$ 3,3 bilhões entre subsídios e empréstimos governamentais. Por outro lado, levantou cerca de US$ 19 bilhões em capital desde que foi fundada, em 37 rodadas de captação de recursos, sendo a última no dia 15/08 passado.

Você realmente acredita que, não fossem os subsídios, a Tesla não conseguiria o capital necessário para as suas operações? O que aconteceu é que esses US$ 3 bilhões de subsídios estavam na mesa, e Musk foi lá e pegou. Se não estivessem, ele poderia ter levantado esses recursos como levantou os outros U$ 19 bilhões. Hoje, a Tesla vale US$ 750 bilhões na Nasdaq. US$ 3 bilhões? Faça-me o favor…

Os contratos com a NASA são uma coisa diferente. No caso, não se trata de subsídios, mas de um cliente que viabiliza a empresa, no caso, a SpaceX. O próprio Musk admitiu em uma entrevista que, sem o contrato com a NASA, a SpaceX teria quebrado.

Musk tem um objetivo claro com a SpaceX: colonizar Marte. Para viabilizar esse objetivo, a empresa precisa, antes, mostrar viabilidade comercial. Para tanto, precisa conquistar clientes, em um mercado onde a concorrência é feroz. A NASA decidiu contratar a SpaceX não como uma benemerência, mas porque a empresa oferecia o melhor custo/benefício para os serviços que a agência espacial precisava contratar, dentre todos os concorrentes da empresa de Musk. Deve ser realmente difícil se estabelecer nesse mercado sem conquistar contratos com o maior cliente do setor, que calha ser uma agência governamental.

É realmente curioso como as mesmas pessoas que clamam por subsídios e defendem o papel fundamental do Estado em determinados setores apontam um dedo acusador para os empresários que aproveitam essas vantagens para “vitaminar” suas empresas. O que querem, afinal? Que anjos celestes empreendam?

Há nisso tudo uma visão estilizada da realidade. Um empresário como Musk, que defende o primado da liberdade de empreender, só pode ser contra qualquer participação do Estado na vida da sociedade. Isso se chama anarquismo, não liberalismo. O que ocorre é que esses mesmos que esfregam na cara de Musk o fato de que suas empresas têm muitos pontos de contato com o Estado (como não tê-los?), na verdade usam essa “contradição” para defenderem a presença do Estado em âmbitos onde a iniciativa privada desempenha de maneira superior. Aliás, a própria NASA reconheceu isso, ao encomendar foguetes da SpaceX, e não fabricá-los ela própria. Trata-se de uma falsa dicotomia, explorada para fins meramente políticos. Só isso.

O interesse pela Copa do Mundo feminina em números

A Copa do Mundo feminina terminou no domingo passado, mas só agora consegui parar para fazer uma estatística sobre a qual sempre tive curiosidade: como se compara a cobertura jornalística da Copa do Mundo feminina com a Copa do Mundo masculina?

Para fazer essa estatística, vou usar o Estadão. Não acredito que o resultado seja muito diferente se usarmos a Folha, o Globo ou mesmo a cobertura das TVs.

No Gráfico 1, ploto o número de páginas dedicadas aos dois eventos, iniciando 3 dias antes do primeiro jogo e terminando 3 dias depois da final. A Copa do Mundo feminina teve 3 dias a mais, por isso o gráfico da Copa masculina termina antes. Vamos ver o que temos.

Até dois dias antes do início de cada evento, não há diferença perceptível, a cobertura é a mesma para ambos. A diferença torna-se brutal na véspera da abertura: enquanto o Estadão dedicou 6 páginas à Copa do Mundo masculina, apenas uma página é dedicada ao evento feminino. E esse padrão permanece ao longo de toda a cobertura: enquanto o número de páginas dedicadas à Copa do Mundo masculina varia de 6 a 8, o máximo que se dedica ao evento feminino é uma página ao longo do torneio.

Após a eliminação de cada seleção, há um padrão em ambos os casos: a cobertura diminui. Mas enquanto o evento masculino ainda recebe entre 3 e 4 páginas de cobertura, a Copa feminina simplesmente cai no ostracismo: a cobertura é simplesmente zero, a não ser quando se trata de anunciar a final inédita entre Espanha e Inglaterra (um terço de página) e para fazer a cobertura da final, mas somente no dia seguinte do jogo. No dia da final mesmo não há sequer uma menção ao evento. Ainda há alguma cobertura pós-Copa por conta do beijo que o presidente da Federação espanhola deu na jogadora campeã. Não fosse por isso, já não teríamos mais nada. No caso da Copa masculina, ainda tivemos 3 dias de grande cobertura, com 7 páginas no dia seguinte à final e duas páginas em cada dia posterior. No acumulado deste período, o Estadão dedicou 200 páginas para a Copa masculina, contra 15 da Copa feminina.

A coisa se torna ainda mais constrangedora quando se compara a cobertura da Copa feminina com a cobertura dada à transferência de Neymar para o futebol árabe, como podemos ver no gráfico 2. A partir do 19o dia após o início da Copa, com a nossa seleção já eliminada, o assunto dominante passa a ser o ex-atacante do PSG. Inclusive no próprio dia da final, o assunto é Neymar. Talvez por isso não tenha sobrado espaço para dar notícia da Copa feminina… No acumulado desde que surgiu a primeira notícia da transferência, Neymar mereceu 2 páginas completas, contra 1 1/8 página da Copa feminina.

Aqui termina a estatística e começa a interpretação.

Como os recursos (páginas/horas) são limitados, os editores priorizam aquilo que atrai maior interesse de quem lê/ouve/assiste, pois jornal/rádio/TV vivem de sua audiência. É óbvio que a Copa masculina atrai muito mais interesse do leitor/ouvinte/expectador que a Copa feminina. Então, é só natural que a cobertura seja muito maior em um caso do que no outro. A difereça de cobertura (13 vezes mais no caso do Estadão, e não acho que seja muito diferente no caso de outros veículos) deve ser proporcional à diferença de interesse em relação aos dois eventos.

O que não é natural ou óbvio é a razão entre o real interesse e o interesse que a lacrosfera quer nos fazer crer que existe, lacrosfera que inclui os próprios veículos de comunicação. Ou seja, quando se trata de lacrar, a Copa feminina é o maior evento do mundo. Mas na hora de dedicar espaço em suas coberturas, os veículos obedecem à velha lógica patriarcal-misógina. #atéquando?

O recado de Damares Alves

Pouca gente deu importância a essa notícia. Eu guardei. A senadora Damares Alves, bolsonarista raiz e incorruptível, não teria motivo para elogiar Zanin, a não ser que fosse um elogio sincero.

Em qualquer teste de alinhamento ideológico, temos 4 quadrantes, divididos em posicionamentos sobre economia e sobre costumes. O sujeito pode ser conservador em termos de costumes e estatista em termos econômicos, por exemplo. Ou, ao contrário, ser progressista em termos de costumes e liberal em termos econômicos. Esse é o caso de Luís Roberto Barroso, por exemplo.

Zanin, em seu papo com Damares, deve ter deixado claro seu posicionamento conservador em matéria de costumes. De outro modo, não teria merecido um elogio público da senadora. Claro que ele poderia ter defendido posições conservadoras apenas da boca para fora, mas o voto dos bolsonaristas não eram realmente necessários para a sua aprovação. Então, desconfiei que o posicionamento era sincero. As duas votações de Zanin na seara de costumes até agora confirmaram minha desconfiança. E desconfio também que ele está no time de Barroso e Fux no campo econômico, mas isso só saberemos ao longo das votações sobre temas correlatos.

De qualquer modo, os petistas estão pistola com a indicação de Lula. E se eles estão tristes, eu estou contente.

A amargura de Jim O’Neill

Jim O’Neill foi o analista da Goldman Sachs que cunhou o termo BRIC (o S de South Africa só viria depois), em novembro de 2001. Infelizmente, o seu relatório não está mais disponível, mas a página com o resumo de suas conclusões ainda está no site da Goldman. Jim afirmou que “nos próximos 10 anos, o peso dos BRIC e especialmente da China no PIB mundial aumentará, levando a questões importantes sobre o impacto econômico global das políticas fiscal e monetária dos BRIC”. Por isso, concluiu o analista da Goldman Sachs, “os fóruns mundiais de formulação de políticas econômicas deveriam ser reorganizados e, em particular, o G7 deveria ser ajustado para incorporar representantes dos BRIC”.

Como todo analista de banco de investimentos, Jim O’Neill é pago para criar narrativas que possam apontar caminhos lucrativos para os seus clientes. Obviamente, essas narrativas não criam a realidade. Seu objetivo é tentar antecipar-se à realidade, com base em tendências que ainda não são vistas a olho nu. Nesta tarefa, cabe ao analista vestir sua tese da roupa mais elegante possível, de modo a chamar a atenção para a sua análise e, com isso, ganhar clientes.

Jim O’Neill talvez tenha tido a melhor ideia de todos os tempos para bolar o título de um relatório, ao criar o acrônimo “BRIC” (tijolo) para nomear os países que, segundo ele, puxariam o crescimento econômico global nos 10 anos seguintes. Ao reunir tamanho com um suposto grande potencial de crescimento, esses seriam os países candidatos a novas potências globais.

Como disse acima, as narrativas não criam a realidade. Portanto, é preciso fazer o reality check do relatório do analista da Goldman. Infelizmente, Jim O’Neill não passou no teste. No gráfico 1, podemos observar a participação do PIB dos BRICs no PIB global, tanto no conceito PPP (Purchase Power Parity) quanto em dólares. Excetuando-se a China, a performance do BRI foi pífio.

No gráfico 2 temos a evolução do PIB/capita dos BRICs em relação aos EUA. Somente a China se destaca, quadruplicando o seu PIB/capita em relação aos EUA no período. A Rússia apresentou uma boa evolução até 2008, mas depois disso estagnou. A Índia dobrou o seu PIB/capita em relação aos EUA, mas de 5% para 10%, ficando bem atrás da China. E o Brasil… ah! o Brasil…

Jim O’Neill, em entrevista hoje ao Estadão, reagindo à expansão do grupo, desabafa: “Estou a ponto de dizer que o Brics acabou”.

Meu caro Jim, acho que você está atrasado. O BRICs, tal qual desenhado em seu relatório, já não existe há já uns 10 anos, pelo menos. Tornou-se um bloco anti-ocidente, não tendo nada mais a ver com crescimento econômico, a pedra de toque da sua narrativa. A expansão do grupo segue a lógica geopolítica chinesa, não a lógica econômica dos investidores de Wall Street. Causa-me espécie que somente agora, com a expansão do grupo, tenha lhe caído a ficha.

A partir de agora, o BRICSSAUEIE (novo nome do BRICS após a entrada de Saudi Arabia, Argentina, UAE, Egypt, Iran e Ethiopia) seguirá o seu caminho, acrescentando cada vez mais letras ao acrônimo, até se tornar uma sub-ONU dos párias internacionais, liderados pelo país que encarna o sonho de consumo de todo candidato a ditador. É compreensível a amargura de Jim O’Neill.

Nem sempre pensamos aquilo que pensamos

A corregedoria da Câmara dos Vereadores de São Paulo aprovou requerimento para a cassação do mandato do vereador Camilo Cristófaro. Agora, o pedido segue para o plenário da Casa. O motivo: durante sessão legislativa, o parlamentar deixou o seu áudio inadvertidamente aberto, e em conversa informal com alguém não identificado, afirmou: “não lavaram a calçada, é coisa de preto, né?”.

Há algum tempo, o jornalista William Waack foi demitido da Globo também por causa de uma fala racista vazada em áudio involuntariamente aberto. Os mais seniores vão lembrar do episódio Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda de Itamar Franco, pego em um áudio vazado, antes de uma entrevista em uma TV, dizendo: “o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde”. O ministro, obviamente, caiu.

Sempre que ocorre um evento desse tipo, fico pensando sobre a fronteira entre o privado e o público. Uma coisa é a imagem pública da pessoa: Rubens Ricupero tinha uma imagem de homem íntegro, ético, inclusive bastante religioso. William Waack, idem, um jornalista sério. O vereador, que era e foi expulso do PSB, afirmou que lutava pelos direitos de quem tem as portas fechadas pelo racismo estrutural. Não duvido.

Todos, sem exceção, temos uma fachada para consumo público. Meticulosamente construída, essa fachada tem como objetivo imprimir na mente de nossos semelhantes a imagem que desejamos para nós mesmos. Não se trata de hipocrisia. Não se trata de pensar de um jeito e agir de outro. Essa imagem pública é aquilo que desejamos para nós mesmos. Vou dar um exemplo do que quero dizer.

Há muitos anos, assisti à série Twilight Zone, traduzida no Brasil para “Além da Imaginação”. A série original, não à nova, que é muito ruim. Em um episódio, um homem obtém o poder de ouvir o pensamento das pessoas. Em determinado momento, uma beldade olha pra ele e pensa “nossa, que homem bonito, poderia ir pra cama com ele”. Sem pestanejar, o homem agarra a mulher e a beija, para, imediatamente, receber um tapa na cara. O homem fica desconcertado, porque aquela atitude não condizia com o pensamento que acabara de ouvir. Ocorre que uma coisa é o que as pessoas pensam em seu íntimo, outra coisa bem diferente é a sua imagem pública. Nossa mente é selvagem, indomável. O esforço de construção de uma imagem pública é o que permite a vida em sociedade.

As conversas privadas estão a meio caminho entre o pensamento e as falas públicas. Nas conversas privadas, dividimos nossos pensamentos íntimos com pessoas com quem nos sentimos à vontade, sem as amarras da vida em sociedade. Aliás, se era para condenar alguém, a Câmara de São Paulo também deveria afastar o vereador com quem a conversa foi mantida; afinal, se o vereador cassado se sentiu à vontade para soltar uma frase racista, foi porque confiava que seu interlocutor era também racista. Isso é da natureza das conversas privadas.

Nas conversas privadas podemos “pensar alto”. Isso não significa, no entanto, que realmente “pensamos” daquela maneira. E aí é que está o busílis da questão: nem tudo que vai em nosso pensamento é o que realmente pensamos. Duvido que a imagem pública de qualquer pessoa (qualquer pessoa mesmo) resistisse à divulgação de todas, absolutamente todas, as suas falas privadas. Às vezes falamos bobagens. E como falamos!

Vazamento de áudio é algo somente possível com o advento de microfones, uma invenção relativamente recente. Antes disso, não havia como captar conversas privadas. Fico imaginando se, no futuro, conseguirmos inventar uma traquitana que possa captar nossos pensamentos. Se o vazamento do áudio de conversas privadas já causa esse estrago, imagine o vazamento de pensamentos. Acaba a civilização tal qual a conhecemos. Há uma passagem na Novo Testamento, em que Jesus afirma que o adultério é condenado no Velho Testamento, mas que, no Novo, quem “olhar para uma mulher desejando-a já cometeu adultério com ela em seu coração”. Em outra passagem, Jesus afirma que “todos os pecados nascem do coração do Homem”. São mensagens fortes, que contradizem o dito popular de que “olhar não tira pedaço”. No entanto, ao mesmo tempo em que Jesus diz que se pode pecar até por pensamentos, convida quem não tem pecado a “atirar a primeira pedra”. Pudera! Quem poderia escapar de tamanha exigência?

Hoje estamos discutindo se piadas ou discursos políticos podem ser condenados criminalmente. A condenação de falas privadas vai um passo à frente. Piadas e discursos políticos são falas públicas, e seu julgamento depende de contexto. Já as falas privadas, pela sua própria natureza, sequer deveriam vir a escrutínio público. Como o próprio nome diz, são privadas, não públicas. (Aqui, por favor, não confundam a escuta devidamente autorizada por juiz quando há indícios de crime. O vazamento de áudio está longe de se enquadrar nesse caso). O juiz que julgou a causa do vereador o absolveu do crime de racismo, enquadrando sua fala na categoria de “pilhéria”, não de “segregação”. Ou seja, o juiz interpretou a fala de acordo com a imagem pública do vereador. Fosse um deputado bolsonarista, a fala comprovaria a imagem pública de racismo, o que demonstra que, na verdade, o crime não é necessariamente o que foi dito no áudio, mas a imagem pública, verdadeira ou falsa. De verdade, o correto seria o juiz descartar liminarmente a “prova”, por se tratar de vazamento de conversa privada. Esse é o contexto correto.

Para encerrar, e por falar em juiz, lembro de uma cena inusitada durante a pandemia, em que, durante um julgamento virtual, um juiz foi pego inadvertidamente vestindo somente uma cueca samba-canção na parte de baixo, enquanto, na parte de cima, usava a vetusta toga dos magistrados. Somos todos mais ou menos assim: para o público, respeitáveis. No privado, senti-mo-nos à vontade para relaxar, e fazemos coisas que não faríamos em público. Quem é o nosso verdadeiro “eu”? Ambos, cada um em seu contexto. Atire a primeira pedra quem nunca.

Colocando a pasta de dente de volta no tubo

Eugênio Bucci debruça-se sobre um problema nacional de primeira grandeza: o resgate das cores nacionais, sequestrada que foram pelos “machistas, racistas, xenofobos e mesquinhos”, ou pelas “tchutchucas e dondocas de classe média”, segundo suas palavras. Na avaliação de Bucci, os R$ 3 milhões que serão gastos no desfile de 7 de setembro em Brasília estão justificados, se forem usados para resgatar as cores da nacionalidade das mãos dos pérfidos bolsonaristas.

O jornalista lembra, com nostalgia, dos tempos em que o verde e o amarelo não representavam o “golpismo”. Cita as Diretas Já, uma canção de Chico Buarque, a redação da Capricho e o novo logo da Placar como exemplos do uso do verde e do amarelo que não significavam o que, em tese, significam hoje. O que aconteceu?

Sabemos o que aconteceu. Nada. As cores nacionais nunca foram, nem poderiam ser, monopólio de nenhum grupo. O verde e o amarelo sempre puderam ser usados por qualquer cidadão. Então, afinal, por que essa identificação que Bucci lamenta? Sinto dizer, Bucci, mas a culpa é, em boa parte, de vocês, jornalistas. No início, quando as cores verde e amarela tomaram as ruas em apoio ao impeachment de Dilma, não faltaram “análises” ironizando os “patriotas com a camisa da seleção”. Foram o PT e suas cracas na academia e nas redações que entregaram de mão beijada o simbolismo. Ao bolsonarismo, só coube receber o presente de braços abertos.

Obviamente, não serão R$ 3 milhões gastos em um desfile bolado por um marketeiro que irão resolver o “problema”. Agora, é preciso que esses mesmos que “mistificaram” o uso das cores, as “desmistifiquem”. No ano passado, quando Lula apareceu com a camisa da seleção para torcer na Copa do Mundo, a cobertura jornalística frequentemente citava o fato de que aquelas cores haviam sido usadas pelos seus oponentes. Cada menção a esse fato é mais uma regada no cultivo do simbolismo.

Mas há um porém adicional de grande importância. O símbolo do PT é uma estrela vermelha, ou uma estrela branca sobre um fundo vermelho. Fica difícil dissociar o partido dessa cor, ou associá-lo ao verde e ao amarelo. Nas últimas eleições, os marketeiros do PT dançaram miúdo para tentar diminuir o vermelho sem descaracterizar o partido. ISSO não tem como esconder: pode fazer o que for, a cor do PT sempre será vermelha. Mas o PSDB, que durante anos foi o oponente principal do PT em eleições majoritárias, e que tem o azul e o amarelo como cores predominantes, nunca usou esse fato a seu favor, talvez por achar esse artifício baixo demais. Afinal, como sabemos, o PSDB é um partido de gentlemen. Coube ao bolsonarismo usar as cores nacionais como simbolismo sem pudor, confundindo partidarismo com patriotismo.

Eugênio Bucci quer uma fórmula mágica para recolher a pasta para dentro do tubo. Ele mesmo não avança em nenhuma “solução” ou “estratégia”. Sinto dizer que, enquanto for o PT a liderar esse esforço, podem gastar muitos R$ 3 milhões, que isso não vai acontecer.