A estatura do governante

No sábado passado, dia 24/06, comentei aqui um artigo de Mailson da Nóbrega, a respeito da reforma tributária, que criticava a pretensão de autonomia dos estados em detrimento de mais eficiência e produtividade.

Dois dias antes, 22/06, no mesmo Estadão, Felipe Salto havia feito um duro ataque ao Conselho Federativo, órgão a ser criado para a gestão do IVA. Eu havia lido o artigo de Salto, mas naquela momento ainda não havia percebido do que realmente se tratava. Destaco abaixo o trecho central do artigo, atacando a retirada da autonomia dos estados.

Mailson, dois dias depois, ataca o cerne da questão: é justamente a autonomia dos entes subnacionais que cria o pesadelo tributário em que vivemos e diminui a nossa produtividade.

Salto não diz explicitamente porque os estados fazem tanta questão de gerenciar seus próprios impostos. Aliás, nem se dá ao trabalho de definir o que seja “gerenciar”. Mas dá duas pistas em seu texto, ao apontar os problemas que o Conselho Federativo vem resolver: o risco de crédito dos entes subnacionais (um estado não repassar para o outro um crédito tributário) e a guerra fiscal entre estados. Para ambos, Salto sugere “punições severas”. Ora, e desde quando “punições severas” seguraram gestoras públicos? A LRF não impediu que estados virtualmente quebrassem, e depois encontrassem abrigo em um STF muito sensível a questões sociais. Um dos pilares do Plano Real foi justamente o fim dos bancos estaduais, ralos através dos quais os estados exerciam a sua autonomia. Ninguém pensou em substituir a privatização dos bancos estaduais por “punições severas”. A coisa só funciona com base na arquitetura da solução, não na base de leis punitivas, das quais o Brasil está cheio.

Salto sugere, ao invés da reforma tributária, uma reforma infraconstitucional do ICMS, mudando sua incidência da origem para o destino, e deixando assim, intacto, o manicômio tributário. Afinal, para que manter a autonomia, se não for para ter 27 diferentes legislações tributárias, que tanto infernizam a vida do empreendedor, principalmente o industrial? Tanto é assim, que o tal Fundo de Compensações que está sendo negociado entre União e Estados servirá justamente para compensar os efeitos do fim da guerra fiscal. Com a autonomia, os entes subnacionais poderiam continuar alegremente sua marcha batida para o precipício.

É triste ver o governador Tarcísio de Freitas liderando essa resistência dos estados. Em 1997, o “socialista” Mário Covas liderou, com não poucas resistências, o processo de privatização dos bancos estaduais, ele mesmo patrocinando a privatização do Banespa, e, alguns anos depois, a incorporação da Nossa Caixa ao Banco do Brasil. Hoje, o “liberal” Tarcísio de Freitas lidera no sentido oposto, o de manter o status quo que mina a nossa produtividade. A questão, como se vê, nao é ideológica, mas de estatura do governante.

Quem viver, verá

Conforme o esperado, e apesar do esperneio do presidente, a meta de inflação foi mantida em 3%, com bandas de 1,5% para cima e para baixo. A única coisa que mudou é que, a partir de 2025, a meta não precisará mais obedecer o ano calendário, será contínua. Antes de explicar o que isso significa, há que reconhecer que o presidente Lula, apesar de ser boquirroto, não é tolo. Manteve a meta em 3%, apesar de querer aumentá-la. O copo meio cheio, aqui, é reconhecer que as ponderações de Campos Neto surtiram efeito junto ao Planalto.

O que significa essa mudança de metodologia. Para falar a verdade, de prático, não significa nada. Explico.

Hoje, apesar da meta se referir ao ano calendário, o Copom já toma a sua decisão com base em um horizonte móvel de 12 a 18 meses à frente, que é o tempo necessário para que uma decisão hoje afete a inflação no futuro. A economia é um grande transatlântico, e se o comandante quiser desviar de um iceberg, precisa começar a virar o leme muito antes. Então, na prática, o horizonte de decisão já é contínuo. O que vai mudar é que o BC não precisará mais prestar contas anualmente como é hoje, e não ficou claro como será essa prestação de contas no novo sistema, se é que haverá alguma. Mas a prestação de contas está longe de obrigar o BC, não há penalização por não ter cumprido a meta em determinado ano. Então, o que realmente continuará valendo é o horizonte contínuo.

O inefável ministro da Fazenda, no entanto, apresentou a mudança como algo revolucionário, na melhor tradição do circo de pulgas que é este governo, em que cada micro iniciativa é anunciada como o “maior espetáculo da Terra”. Nas palavras do ministro, “a mudança do regime de meta é fundamental para o futuro do país”. Nada menos.

Há que se perguntar porque desse ânimo todo. É fácil de entender. Haddad e sua patota acreditam piamente que, com esse “horizonte contínuo” o BC poderá suavizar a sua atuação ao longo do tempo, não precisando apertar tanto a política monetária quando houver choques. Ora, o Banco Central JÁ FAZ isso hoje. Não por outro motivo, Campos Neto vai perder a meta de inflação esse ano pelo terceiro ano seguido. O BC não é escravo do ano calendário. Se o fosse, a taxa de juros seria muito, mas muito maior do que é hoje.

O que Haddad espera, de verdade, é poder empurrar com a barriga indefinidamente a convergência da inflação para a meta. Aparentemente, ele está confundindo não ter uma meta para o ano calendário com não ter meta alguma. Tombini fez isso: a inflação ficou consistentemente acima da meta ao longo de todo o seu mandato, a ponto de desancorar as expectativas mais longas da inflação, o que exigiu uma política monetária muito mais dura (Selic a 14,25%) quando precisou trazer a inflação de volta para a meta.

A meta contínua só vale a partir de 2025. Perguntado porquê, Haddad saiu-se com essa: “É quando começa o mandato de um novo presidente, decidimos alterar o regime para horizonte contínuo a partir dessa data”. Além da personalização de uma instituição que não deveria depender das pessoas, Haddad, com essa decisão, revela o seu lado Roberto Carlos: “daqui pra frente, tudo vai ser diferente…”. Ou seja, a partir de 2025, com o novo presidente e a nova regra, o BC estará à medida do que Haddad pensa da política monetária: linha auxiliar da política fiscal, ambas remando com força rumo ao abismo.

A má notícia para o ministro da Fazenda é que se o mercado começar a desconfiar que um novo Tombini assumiu o comando, a coisa pode realmente ficar feia. O resultado será um maior custo para trazer a inflação para a meta. Aliás, Lula, hoje mesmo, disse que “o Brasil não precisa ter meta de inflação tão rígida”. É a senha. Quem viver, verá.

Censo: temos boas e más notícias

Somos 203,0 milhões de brasileiros. A última estimativa, atualizada em 2020, indicava uma projeção de 214,8 milhões de habitantes em 2022. Uma diferença de quase 6%. Posto de outra forma: crescemos 0,5% ao ano nos últimos 12 anos, enquanto a estimativa anterior é de que o crescimento anual estava em 1,0% ao ano. Portanto, estamos crescendo na metade do ritmo que achávamos que estávamos crescendo.

A boa notícia é que estamos mais ricos: a nossa renda/capita é 6% maior do que imaginávamos. Outra boa notícia: com menos nascimentos, será menos custoso formar as crianças.

As boas notícias terminam aqui.

A má notícia é que o nosso potencial de crescimento econômico é menor. Um dos fatores do crescimento é o aumento da mão de obra, e com menos gente, o crescimento será menor. Isso não é necessariamente ruim, se conseguirmos aumentar a produtividade da mão de obra. Mas isso é outro desafio.

Uma outra má notícia é que a previdência social tem um buraco atuarial muito maior do que imaginávamos. Em português: a conta das aposentadorias será muito maior do que estimávamos. Só tem três soluções para isso: aumentar a carga tributária, dificultar o acesso à aposentadoria ou contar com uma inflação crescente.

Uma terceira má notícia é que o nosso sistema de saúde, já estressado hoje, deverá ficar ainda mais estressado.

O IBGE deverá refazer todas as projeções de crescimento da população daqui para frente. Nas projeções anteriores, a população brasileira começaria a diminuir a partir de 2048. Provavelmente este número deverá cair bastante, mesmo porque o nosso crescimento marginal deve estar abaixo de 0,5% ao ano.

Trata-se de uma realidade nova, com desafios próprios. Não nos saímos de maneira brilhante na fase I do jogo. Vamos ver agora, na fase II.

Lavando o dinheiro na água santa do bem

Lula tem uma cisma com viagens espaciais. Não é a primeira vez que toca no assunto. Em 2021, quando Luiza Trajano foi indicada pela revista Forbes como uma das 100 personalidades do ano, Lula escreveu um texto em sua homenagem. Entre outras coisas, disse: “Em um mundo onde bilionários queimam fortunas em aventuras espaciais e iates, Luiza se dedica a um tipo diferente de odisseia. Ela assumiu o desafio de construir um gigante comercial e ao mesmo tempo construir um Brasil melhor”.

Poder-se-ia pensar que, na cabecinha de Lula, viagens espaciais são “dinheiro jogado fora”. Mas não é bem isso. O seu próprio governo financiou a ida do astronauta Marcos Pontes para o espaço em 2006, gastando não pouco dinheiro com isso. A cisma de Lula está com os “bilionários” que “brincam” de ir ao espaço. Seria, assim, como uma espécie de hobby caro, como aquele dos bilionários que acabaram implodidos junto ao Titanic.

Não é que Lula não goste de bilionários. Luiza Trajano, por exemplo, é bilionária. A diferença é que usa a sua fortuna “para o bem”. Não “queima” com brinquedos caros, mas investe para “construir um gigante comercial e um Brasil melhor”.

E não adianta revoltar-se e espernear diante desse tipo de sandice. Não perca seu tempo tentando explicar que as viagens espaciais de Elon Musk e Richard Branson são um negócio tão legítimo quanto a cadeia de lojas de D. Luiza. Aliás, eles estão na fronteira da tecnologia, um lugar em que gostaríamos de estar.

Mas, indo um pouco além, o busílis parece estar na origem do dinheiro. O dinheiro privado é pecaminoso, e só encontra a sua redenção quando é usado com “fins bons”, para “diminuir a desigualdade”. Naquele mesmo texto da Forbes, Lula elogia D. Luiza por ter ajudado os pequenos comerciantes durante a pandemia, ao dar-lhes um lugar em seu marketplace. Note que os lucros que a Magazine Luiza obtém com essa operação são “lavados” na água santa da boa intenção de “ajudar os pequenos comerciantes”.

Por outro lado, mandar Marcos Pontes para o espaço com dinheiro público não precisa de justificativa. Trata-se de um investimento sem fins lucrativos, e isso basta. Pouco importa que esse dinheiro não tenha sido usado para “diminuir as desigualdades” ou “melhorar as condições de vida do povo”. O dinheiro público, ao não buscar o lucro, não precisa ser lavado na água santa do bem. Todo gasto público já está justificado em princípio.

Portanto, não perca o seu tempo tentando argumentar. O mindset é esse: o dinheiro privado precisa ser justificado, o dinheiro público, não. Tenha isso em mente, e tudo ficará mais claro.

A desqualificação anti-democrática do debate público

Ainda sobre a “pressão anti-democrática” das big techs sobre os deputados e a opinião pública. Reportagem de hoje repercute um estudo acadêmico que “prova” que o YouTube tem viés, ao privilegiar vídeos em sua plataforma que são contra o PL. Depois de ter que ler que Arthur Lira, a motoniveladora de regimentos, afirmou que as big techs “ultrapassaram os limites do contraditório democrático”, a matéria entra no estudo em si.

Os pesquisadores usaram uma ferramenta para descobrir que os 5 vídeos mais vistos contra o PL alcançaram 7,9 milhões de visualizações, contra apenas 0,9 milhão dos vídeos a favor. Bem, é provável que os repórteres não tenham entendido direito o estudo, porque para somar vizualizações não é necessária ferramenta alguma, basta saber somar. A questão, no entanto, é que os vídeos contra o PL realmente foram mais vistos, em uma proporção de 8 para 1, quando se comparam os 5 vídeos mais vistos de cada categoria. Por que?

Uma explicação é aquela alegremente abraçada pela reportagem: o YouTube estaria maliciosamente direcionando a audiência para os vídeos que lhe interessavam. A corroborar a tese, estaria um estudo “acadêmico”, o que quer dizer um estudo desinteressado e não enviesado, como tudo o que os cientistas produzem.

Mas há uma segunda explicação, para mim mais plausível. Não tive acesso ao “estudo”, mas gostaria de ver se o número de assinantes de cada canal foi usado como variável de controle para o levantamento. Porque é só obvio que canais com mais assinantes terão mais vizualizações. A questão é saber se o número de vizualizações foi desproporcional ou não ao número de assinantes de cada canal. Infelizmente, se essa informação existe, não foi informada na matéria.

Mas, mesmo que fosse encontrada uma desproporcionalidade estatisticamente significativa, isso por si só não provaria nada. A explicação poderia estar no “efeito rede”, que os algoritmos, grosso modo, seguem. Na Amazon, você verá sugestões de livros que outras pessoas que compraram aquele livro que você está visitando compraram. As redes sabem que aumentam as chances de visualização se as sugestões estiverem em linha com o gosto revelado pelo internauta.

– Ah, mas neste caso, o YouTube deveria balancear as recomendações, para o bem do debate democrático.

Não. Primeiro, que nem sei se isso é tecnicamente possível. Depois, e principalmente, porque as redes não são (nem poderiam ser) mediadoras do debate democrático. As redes são empresas que buscam maximizar o tráfego, e seus algoritmos são projetados para isso. Se isso cria bolhas ao longo do tempo, é outra discussão. Mas daí a dar o salto quântico e concluir que o YouTube maliciosamente direcionou tráfego para enviesar o debate público, vai uma distância cósmica.

O que mais uma vez fica claro é o desejo de desqualificar o contraditório. O uso do adjetivo “extrema direita” para se referir aos canais com opinião contrária vai na mesma linha do uso de palavras como “fascista” ou “neoliberal”, usadas para provocar ojeriza no receptor da mensagem.

Mas a coisa vai além. Uma das autoras do estudo considera que os internautas sejam hipossuficientes, parvos facilmente impressionáveis pelo primeiro vídeo que veem sobre determinado assunto, uma espécie de página em branco, pronta a receber o conteúdo do primeiro aventureiro que dela se apossar.

Pessoas com esse mindset, em ambos os lados do espectro político, costumam chamar aqueles com quem não concordam de “gado”. Claro, é sempre o “outro lado” que é sugestionável, diferente do “nosso lado”, que forma a sua opinião de acordo com pressupostos racionais e democráticos.

Eu prefiro pensar que quem realmente quer se informar, procura ativamente opiniões de ambos os lados. Mas essa é uma minoria. A maioria já tem a cabeça feita, e procuram opiniões que confirmem a sua própria (chamamos isso de “viés de confirmação”). Ou seja, mais vídeos contra o PL foram vistos porque mais pessoas eram contra o PL, e não mais pessoas ficaram contra o PL por terem visto mais vídeos contra o PL.

O curioso é que no site do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (ao qual a universidade onde foi feito o estudo é filiada), lê-se que um dos eixos de pesquisa é o “eparticipation”, o que envolve “capacitar e empoderar os cidadãos para expressarem suas opiniões e poderem exercer influência nos processos de decisão na esfera pública”. Faltou dizer “desde que a opinião seja a ‘certa’, e não ‘radical’ ou de ‘extrema direita’”. Certa vez, Pelé afirmou que o brasileiro não sabia votar. Por trás dessas palavras estava a presunção de que o brasileiro é hipossuficiente, e não vota nos candidatos que tem as ideias que eu acho “certas”. Nesse campo, estou com o saudoso Mário Covas, que dizia que o eleitor sempre vota certo, cabe aos políticos interpretar o seu voto. Essa desqualificação do voto e da opinião de uma parcela dos brasileiros não passa de uma tentativa anti-democrática de calar o contraditório.

Big Techs: o bode espiatório perfeito

O Estadão pública reportagem em que atribui às Big Techs o fracasso na tramitação do PL das fake news. Mais do que a atuação das Big Techs, tomamos conhecimento de como os autores da matéria entendem o funcionamento das redes e do processo democrático. Vejamos.

A reportagem tem início com a informação de que as Big Techs lideraram “uma operação de pressão e lobby” e “atuaram fortemente” para a derrubada do PL. Para provar o ponto, os repórteres fizeram um levantamento do número de vezes que representantes das empresas estiveram no Congresso. Além disso, conseguiram as aspas do presidente da Frente Parlamentar de Economia e Inclusão Digital, que afirmou que havia “recebido representantes de todas as plataformas”.

Além disso, as Big Techs teriam incentivado os cidadãos a fazerem pressão nas redes. A operação teria começado em 19/04, com o batismo do projeto de “PL da censura”, sugerindo que esse apodo tivesse sido criado nos gabinetes do Google e da Meta. Expressões como “os internautas foram instigados a mandar mensagens” e “as plataformas deram voz aos internautas para pressionar deputados” mostram como os repórteres quiseram transmitir a ideia de que, por trás de tudo, estavam sempre as poderosas Big Techs.

Este último ponto me faz lembrar as teorias da conspiração que envolvem George Soros por trás de toda a agenda da esquerda. No caso, os internautas não passariam de marionetes nas mãos das Big Techs. Na ânsia de provar o quão maléficas podem ser as plataformas (“empresas estrangeiras” foi um termo usado, para sugerir que houve interferência alienígena no processo democrático brasileiro), os repórteres não sentem vergonha de abraçar uma teoria da conspiração tosca. Não lhes passa pela cabeça que os “internautas” não precisam de muito para desconfiar de um PL abraçado com tanto ardor pelo PT.

Mas é em outra expressão que, me parece, está o grande engano da matéria. Os autores se referem à atuação das Big Techs como “interferência na discussão do Congresso”. Bem, até onde eu saiba, apesar de não regulamentada, a atuação de lobbies dentro do Congresso não é proibida. Se isto se configura como uma interferência indevida, então temos interferências indevidas desde quando Cabral aportou no Brasil. Isso existe nas democracias mais maduras, onde a atividade é regulamentada, e ninguém é acusado de “interferência”. Aliás, muito provavelmente os grandes jornais também contam com seus lobistas. Afinal, a remuneração da mídia que passou a fazer parte da PL das Fake News não está ali de graça.

Enfim, a matéria exerce o jus sperneandi, procurando os “culpados de sempre” para o fracasso, no Congresso, desse PL. É mais fácil do que admitir que o projeto não conseguiu convencer a maioria dos brasileiros e de seus representantes no Congresso. O processo democrático pode ser bastante doloroso.

A reforma tributária e a defesa da “soberania”

Mailson da Nóbrega escreveu excelente artigo no último sábado, defendendo a reforma tributária e atacando, principalmente, a pretensão dos governadores de manterem a sua autonomia para estabelecerem alíquotas, base tributária e hipóteses de incidência de impostos. O último parágrafo, reproduzido abaixo, resume o argumento: os governadores preferem a sua “soberania” à prosperidade do país.

As duas últimas manifestações de governador e prefeito que comentei aqui colocam em dúvida justamente essa hipótese, a de que a reforma permitirá aumentar o crescimento potencial do pais. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes,,afirmou que “se IVA funcionasse, a Argentina não estava na situação em que está”. Já Ronaldo Caiado, governador de Goiás, “mandou fazer estudos nos países que têm IVA”, mas não compartilhou suas conclusões.

O fato é que há evidências robustas do ganho de produtividade da economia com um sistema tributário neutro, ou seja, que não seja parte do processo decisório do empresário. Há alguns meses, recebemos um consultor tributário para ouvi-lo sobre a reforma. Ele havia trabalhado em uma grande empresa industrial, e nos contou que havia mais gente trabalhando no planejamento tributário do que no recolhimento de impostos propriamente dito. E isso sem contar os funcionários dedicados aos contenciosos tributários. E o problema não é nem o número de homens-hora gastos na atividade de planejamento tributário. O ponto é que decisões de investimento levam em consideração os tributos, e não a produtividade do capital.

Aqui enfrentamos um típico problema de economia política: os benefícios da reforma são etéreos e dispersos, enquanto os benefícios do status quo são concretos e concentrados. Elites muito bem representadas defendem o status quo, sempre protegendo-se atrás do escudo da “defesa dos interesses dos mais pobres”. Resta saber porque, com tantos defensores de seus interesses, ainda temos tantos pobres no país.

Algumas despesas são mais iguais do que outras

Ufa! Finalmente o arcabouço fiscal foi votado e aprovado no Senado. Mais alguns dias, e teríamos mais exceções do que regra. Depois do Fundeb, das verbas do DF e dos gastos com ciência e tecnologia, de última hora foi incluída a permissão para a aprovação de “despesas condicionadas” por fora da regra. Essas despesas, aprovadas pelo Congresso como créditos extraordinários, servirão para financiar o futuro PAC.

Simone Tebet, a nova mãe do PAC, comemorou. Com esse dinheiro, o governo vai “fomentar a construção civil, a geração de emprego e renda”.

Tebet era a 3a via, lembra? Aquela que teria uma visão mais moderna da economia. E não adianta olhar para o vice-presidente, com a esperança de que ele possa assumir caso ocorra alguma intercorrência com o presidente. Alckmin pensa igualzinho.

Qualquer exceção à regra abre uma avenida para a criatividade dos parlamentares. Todos os gastos são nobres, todos as despesas ou são de “justiça social” ou vão “gerar emprego e renda”. Nesse sentido, todos os gastos, em princípio, deveriam ser ilimitados. Essa falta de limites para alguns gastos é injusto para com os outros. Significa dizer que alguns gastos são mais iguais do que outros. Ou que alguns gastos poderiam ser dispensados, premissa com que os parlamentares certamente não concordariam.

Mas eu sou um farialimer xiita, que não tem olhos e ouvidos para as necessidades dos brasileirinhos. Certamente precisamos de exceções. Muitas exceções. Tantas, que qualquer regra perde o sentido. Só assim poderemos resgatar a dívida social que acumulamos nesses últimos 500 anos.

Lula’s historical footage.

1) Lula in an interview with foreign journalists, opposing the war between Germany and Poland: “both countries should stop the war!” (Sep 2, 1939)

2) Lula talking to a crowd in Sao Paolo, delivering his famous speech “I only listen the word ‘war’ while children are starving!”, reasoning that Germany and France should be negotiating to end the war. (May 11, 1940)

3) Lula holding a sheet of paper with his speech known as “nobody’s to blame the war”, urging Germany and USSR to sit and talk (Jun 23, 1941).

Não seja o trouxa

Essa reportagem é um desserviço ao cidadão. A começar do “dinheiro extra” que encabeça o título. Em resumo, trata-se de propagar a ilusão de que leigos (no caso, militares, como policiais e bombeiros) podem “ganhar um extra” operando day trade na B3. As histórias são sempre as mesmas: “comecei de qualquer jeito, perdi no início, estudei muito, e agora consigo fazer uma renda extra”. Qual a chance?

E a coisa é pintada com cores ainda mais atrativas: o trader não precisa sequer arriscar o próprio capital! Há corretoras como a Axia, citada na matéria, que permite que os traders operem com o capital da corretora. Então, não tem como perder: se ganhar, divide o lucro, se perder, o preju é da corretora. Quer coisa melhor?

Onde está o truque? No final da reportagem, alguém de uma corretora “normal” é entrevistado, chamando a atenção para o “catch”: a venda de cursos e certificações antes de o trader poder operar. Fui dar uma olhada no site da tal de Axia. Está lá: para poder operar com o capital da corretora, é preciso pagar por uma “licença”, que pode variar de R$350 a R$4.800, a depender do nível. Essa licença dá direito a operar? Nããão. Dá direito a um test drive sem dinheiro, para verificar se o trader é bom no ofício. Se conseguir um nível de lucro mínimo durante o período de teste (que pode ser de 30 ou 60 dias), daí então o trader é admitido na plataforma para operar com dinheiro de verdade. Mas, se tiver um nível de prejuízo máximo depois de admitido, é automaticamente desligado.

Algum tempo atrás, dois pesquisadores da FGV fizeram um estudo com dados da B3 sobre day trade. Os resultados: entre 2013 e 2015, cerca de 20 mil pessoas começaram a fazer day trade na B3; dessas, cerca de 92% desistiram em menos de um ano (certamente não tiveram lucro). Dos 8% que perseveraram mais de um ano, somente 7% obtiveram algum lucro. 7% de 8% dá 0,6% do grupo inicial. Como o estudo não continua no tempo, é de se perguntar se esse grupo continuou tendo lucro. Os pesquisadores endereçam esse ponto: de acordo com os dados, eles concluem que os resultados pioram com o tempo, ao contrário da crença de que “experiência e conhecimento” fariam os resultados melhorarem. É o princípio do cassino: quanto mais tempo você fica dentro de um cassino, maior será o seu prejuízo.

A corretora Axio e outras semelhantes ganham dinheiro com a venda das licenças, não com o lucro dos daytraders, que não são consistentes no tempo. Vivo no mundo de investimentos, e não conheço ninguém do meu círculo profissional que opere daytrade na física. Há a lenda de que é preciso “estudar muito” para ganhar dinheiro com isso. Na verdade, quanto mais conhecimento, menos se tem essa ilusão. Não é à toa que são “militares” e outros grupos leigos que se aventuram, em busca de uma fonte de renda extra.

Todo dia saem na rua um esperto e um trouxa. Não seja o trouxa.