Os fatos mais marcantes de 2020

Em um ano como esse, fica difícil listar os 10 eventos mais marcantes sem que tenham relação com o evento eventorum, que é a pandemia. Relendo os jornais do ano, este assunto e suas consequências dominaram a pauta praticamente o ano inteiro. Vou, então, fazer duas listas: uma com eventos que não tem relação com a Covid, e outra com eventos relacionados à pandemia.

Concordam com essas listas? Excluiriam ou acrescentariam algum evento?

Eventos não correlacionados com a Covid:

  1. 03/01: Os EUA matam o general iraniano Qassim Suleimani, provocando tensão na região.
  2. 24/04: Sergio Moro deixa o governo Bolsonaro
  3. 18/06: Fabrício Queiroz é preso.
  4. 04/08: Explosão arrasa a área do porto de Beirute
  5. 13/08: Israel e Emirados Árabes normalizam relações diplomáticas
  6. 28/08: Wilson Witzel é afastado do governo do RJ
  7. 01/10: Bolsonaro indica Kassio Nunes Marques para a vaga do STF
  8. 07/11: Biden é declarado vencedor das eleições pela imprensa dos EUA
  9. 20/11: João Alberto Freitas é espancado até a morte no Carrefour
  10. 25/11: Morre Maradona

Eventos relacionados à Covid:

  1. 25/02 e 17/03: respectivamente primeiro caso e primeiro óbito oficiais por coronavírus no Brasil.
  2. 11/03: A OMS declara oficialmente (e finalmente) a pandemia do novo coronavírus
  3. 16/03: Dólar fecha acima de R$ 5,00 pela primeira vez na história
  4. 23/03: Lojas e escolas são fechadas em São Paulo
  5. 24/03: O Japão adia as Olimpíadas
  6. 16/04 e 15/05: Mandetta e Nelson Teich, respectivamente, saem do Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello seria oficializado ministro da saúde somente em 16/09.
  7. 05/08: O Copom reduz as taxas de juros a 2%, menor nível da história.
  8. 07/12: Doria anuncia início da vacinação para o dia 25/01. O anúncio da eficácia da Coronavac foi adiado duas vezes.
  9. 08/12: A primeira pessoa é vacinada no mundo, no Reino Unido.
  10. 30/12: Reino Unido aprova o uso emergencial da vacina da AstraZeneca.

Nome aos bois

O senado argentino legalizou o aborto até as 14 semanas de gestação.

A deputada Sâmia Bomfim, como toda boa feminista, comemorou o resultado.

Mas a deputada errou em seu outro post, de dois dias antes, comemorando a chegada do filho. Vamos ajudá-la.

“13 semanas do feto Bomfim Braga”.

Aliás, deveria ser só “13 semanas do feto”, porque nome normalmente é dado para gente.

Bola na cara do gol

Abaixo, reportagem de hoje na The Economist, sobre a aprovação emergencial da vacina da Astra Zeneca/Oxford por parte da MHRA, a Anvisa britânica. Segundo a revista, um game changer, pois a vacina é mais barata e tem logística muito mais simples.

Os primeiros resultados publicados sobre esta vacina não foram nada animadores. Havia ocorrido um erro de dosagem que produziu resultados esquisitos (meia dose era mais efetiva do que uma dose) e não havia comprovação de eficácia para pessoas acima de 59 anos de idade.

A reportagem da Economist, no entanto, não cita esses problemas. Na verdade, coloca a questão da meia dose como uma vantagem. Como respeito o jornalismo praticado pela Economist, e como a MHRA não ia colocar seu stamp em algo não confiável, acho que temos uma vacina.

O governo brasileiro, através da Fiocruz, fez um acordo de produção local com a AstraZeneca. Convenhamos, um laboratório britânico, em associação com a grife Oxford, transmite muuuuuuito mais confiança do que um laboratório chinês. As duas vacinas podem ser ótimas, mas entre um Bentley e um Chery, você compraria qual?

Por isso, a essa altura do campeonato, era para o Bolsonaro estar sambando sobre o cadáver político do Doria. “Sua” aposta foi aprovada pelos britânicos (e deve ser aprovada por vários outros países a partir de agora), enquanto o Butantan já adiou duas vezes o anúncio da eficácia da “vacina chinesa”.

Mas não. Bolsonaro continua com seu ar blazé, fazendo campanha contra vacinas (quaisquer vacinas, todas elas foram desenvolvidas em tempo recorde, portanto não são confiáveis), inclusive dizendo que não vai tomar. Bolsonaro não perde uma chance de perder uma chance. E olha que, nessa, a bola sobrou na cara do gol, era só empurrar para a rede, mais fácil do que aquele gol sofrido em Santos.

Sim, a Anvisa vai acabar aprovando a vacina da Astra Zeneca. E até acho que vai ser mais cedo do que mais tarde. Vamos ver se o discurso muda.

Playing games

Hoje, Bolsonaro seguiu com seu plano de encontrar um bode expiatório para o atraso na adoção de um plano de vacinação. No caso, os laboratórios. Ontem foi um post no Facebook. Hoje foi um papo reto com admiradores.

De fato, são os laboratórios que devem pedir o registro da vacina em um determinado país onde mantiveram testes clínicos. No caso do Brasil são quatro: AstraZeneca/Fiocruz, Pfizer, Janssen e Sinovac/Butantan.

Até o momento, nenhum desses laboratórios pediu o registro no Brasil, está certo. No entanto, o que está devidamente escondido na argumentação é: por quê?

Até o momento, os países que começaram a vacinar o fizeram com a Pfizer, com a Moderna ou com a Sputinik. Dessas, apenas a Pfizer fez testes clínicos no Brasil. A pergunta que não quer calar é: por que raios a Pfizer pediu registro em dezenas de outros países e não pediu no Brasil-sil-sil?

Será porque os outros países se esforçaram, chegaram na frente, mostraram interesse, enfim, não fizeram campanha contra a vacina? Bolsonaro pergunta se a Pfizer não tem interesse no nosso grande mercado. Claro que tem! Só que se trata de um bem escasso com uma imensa procura. A Pfizer prefere perder o seu tempo com outros países mais interessados, que ocuparão a sua capacidade de produção por anos.

O Brasil é aquela prima-dona que fica sentada no baile desdenhando de todos os rapazes, e depois culpa os próprios rapazes pelo fato de ter ficado sem ninguém para dançar.

Bolsonaro, mais uma vez, insulta a inteligência alheia, em um assunto extremamente sério. Até quando vai ficar playing games com a saúde da população?

O maior estelionato eleitoral da história

Hoje temos, no Valor, um pouco dos bastidores da promessa de Bolsonaro de não privatizar a Ceagesp. Além de fustigar infantilmente um de seus 145.897 adversários políticos, o governador João Doria, às custas do erário público e do sofrimento dos paulistanos, Bolsonaro também está consciente de que a Ceagesp, “tem condições de se sustentar, de dar lucro”. É o que afirma seu atual presidente, Ricardo Mello Araújo, nomeado por Bolsonaro no último mês de outubro.

A coisa toda está errada de várias formas diferentes e combinadas.

Em primeiro lugar, a conta estritamente financeira. Mello Araújo promete 8 milhões de lucro no ano que vem. Seria um portento, dado que a Ceagesp vem dando prejuízos há 4 anos. Mas vamos assumir que sejam mesmo 8 milhões. Qual o custo do capital empatado nesse elefante branco? Pelo menos 5% ao ano, que é o atual custo implícito da dívida pública. Ou seja, 8 milhões significaria um patrimônio de, no máximo, 160 milhões. Qualquer valor acima disso, a rentabilidade do capital seria menor do que o necessário para pagar o custo do capital. Em outras palavras, o país estaria se endividando para sustentar um negócio com retorno menor do que os juros pagos. Alguém estaria sendo subsidiado. E não seríamos nem eu e nem você, caro leitor pagador de impostos. Não sei por quanto a Ceagesp seria privatizada, mas desconfio que o valor seria bem maior do que esses 160 milhões.

O segundo ponto é o, digamos, estilo de gestão estatal. A Ceagesp tem silos ociosos. O que faria uma empresa privada? Provavelmente, acionaria sua área comercial para buscar clientes. O que faz o gestor da estatal? Busca deputados do interior do Estado que “conhecem” empresários. Que tipo de relação que podemos esperar de negócios gerados por deputados? Pois é.

Por fim, tem a questão ideológica. O presidente da Ceagesp (nomeado por Bolsonaro agora em outubro, não custa lembrar) levanta a questão “estratégica” do entreposto comercial. “Não podemos ficar reféns dos empresários”.

Caraca! Não consigo pensar em nada mais PSOL do que isso! Nessa linha, talvez devêssemos estatizar todo o agronegócio brasileiro. Afinal, não podemos ficar reféns dos empresários em algo tão estratégico quanto a alimentação que chega na mesa do povo. E o que dizer da água, eletricidade, etc? No limite, tudo é estratégico.

Lembro do entusiasmo de um colega farialimer quando Bolsonaro ganhou a eleição. Seria, segundo ele, o primeiro governo verdadeiramente liberal em 500 anos de história brasileira. Dizia que FHC tinha privatizado contra suas convicções, porque era necessário, não por gosto. Bolsonaro não. Bolsonaro iria privatizar tudo por convicção. Este era o humor do mercado financeiro, na época. Hoje, dois anos depois, tendo Salim Mattar abandonado o barco e Bolsonaro tendo nomeado esse dinossauro para a presidência da Ceagesp, não consigo segurar a gargalhada. Como o farialimer é ingênuo e crédulo.

“Bolsonaro liberal” é um dos maiores estelionatos eleitorais da história.

Linha vermelha

Bolsonaro pode dizer que a vacina não será obrigatória.

Bolsonaro pode dizer que não se responsabiliza se quem tomar a vacina virar jacaré.

Bolsonaro pode exigir termo de compromisso de quem tomar a vacina.

Bolsonaro pode dizer que não vai tomar a vacina e não recomenda que tomem.

Bolsonaro pode ignorar seu próprio Posto Ipiranga, que afirmou que somente a vacinação em massa poderá trazer a economia de volta para a normalidade.

Bolsonaro pode tudo isso. Só não pode dizer que não tem pressa, com ar blazé, fazendo pouco da ansiedade de uma parcela significativa da população.

Bolsonaro cruzou uma linha vermelha.

Colocar-se no lugar do outro

Esta foto foi tirada hoje por mim. Trata-se de um cruzamento na avenida Brasil, em São Paulo. Tirei essa foto porque chamou-me a atenção a pequena trilha construída à força dos passos dos transeuntes.

Confesso que essa trilha me incomoda, porque tenho um certo TOC de organização. Tirei a foto para usá-la como metáfora de algo ruim. Mas, quando estava escrevendo, ocorreu-me uma outra metáfora, só que positiva. Vou descrever as duas, e depois terminar com uma terceira, que resume toda essa confusão.

A metáfora negativa: “essa trilha é o símbolo do “jeitinho” brasileiro, que, no final do dia, não passa do desrespeito dos brasileiros, de todos os estratos de renda, pelas instituições. Terminamos com um país depredado, feio, em que, o que importa, é levar vantagem”.

A metáfora positiva: “essa trilha é a resposta do ser humano às regras artificiais do Estado. Ao forçar uma igualdade que não existe na prática, o socialismo cai diante diante da engenhosidade humana. O capitalismo continua em pé porque permite a construção da menor reta entre dois pontos. Esta trilha é a metáfora da queda do muro de Berlim”.

Qualquer realidade se presta a várias interpretações. Depende da sua formação, da sua história pessoal, até da sua genética. A depender de qual lado do cérebro domina, a pessoa verá o mundo de uma determinada forma. A realidade é uma só, não há dúvida, nós não a construímos. Mas a forma de explicá-la varia muito. Sempre podemos enxergar a velha ou a moça, como na clássica ilusão de ótica.

Passamos o ano em nossa trincheira, jogando granadas na trincheira adversária. Estamos do lado do Bem, combatendo o Mal. A propósito, lembro-me do romance policial “O Homem que foi Quinta-Feira” do filósofo britânico G K Chesterton. O protagonista, um policial, infiltra-se em uma rede anarquista, em que os membros recebiam os nomes dos dias da semana. Ele era o Quinta-Feira, e vai descobrindo que todos os outros membros também eram policiais infiltrados. No final (spoiler) ele descobre que o chefe, Domingo, era também o chefe da polícia. Ou seja, bem e mal se misturam em uma massa difícil de distinguir. Era a metáfora de Chesterton para explicar Sto Agostinho e sua refutação do Maniqueísmo, em que o Bem e o Mal são absolutos. Para Sto Agostinho, somente o Bem era absoluto (Deus), enquanto nós, os homens, temos visões parciais do bem.

Tudo isso para dizer que talvez fosse bom todos nós tentarmos nos colocar no lugar do outro, antes de emitirmos a nossa sentença condenatória. As discussões seriam mais serenas e teríamos menos dissabores. Esse é o meu voto e meu propósito para o ano que se inicia.

Os fatos, sempre eles

Escrevi um post na primeira data em que o governador João Doria havia prometido divulgar os dados de eficácia da Coronavac, 15/12. No dia anterior, a divulgação havia sido adiada para o dia 23/12. O motivo era até nobre, ainda que não convincente: iriam submeter o registro definitivo e não mais emergencial. Precisavam, portanto, de mais tempo para “organizar a papelada”. Ou seja, estava tudo certo, era mais uma questão burocrática.

Ontem, adiaram novamente o anúncio. Dessa vez porque, aparentemente, os dados de eficácia se mostraram diferentes no Brasil, Indonésia e Turquia, países onde a Coronavac foi testada.

Estatística não tem muito segredo. Você tem um certo nível de confiança nos resultados a depender do tamanho da amostra. Por exemplo, quando dizemos que os resultados de sondagens eleitorais têm uma incerteza de dois pontos percentuais com confiança de 95%, isso significa que, se fizermos a mesma pesquisa 100 vezes, em 95 os resultados tendem a ser os mesmos, 2 pontos percentuais para cima ou para baixo.No caso da Coronavac, foram testadas populações diferentes. Não ficou claro, mas eu entendo que os resultados foram diferentes a ponto de ficarem fora do intervalo do nível de confiança. Ou seja, as eficácias foram estatisticamente diferentes nesses países. Aparentemente, a Sinovac pediu mais tempo para “harmonizar” os resultados, ou seja, encontrar variáveis que possam explicar as diferenças.

Tudo isso que falei é muito técnico. E o pior, é só chute, porque é o que consegui inferir da coletiva de ontem, não tenho certeza de que seja isso. Mas essa é a parte técnica. A parte política é outro departamento.

Trabalho com investimentos. Às vezes é difícil explicar para os meus clientes porque perderam dinheiro. É um assunto muito técnico, que às vezes fica difícil traduzir para o leigo. Fica aquela impressão de rolando-lero.

Mas tem uma coisa que nunca faço: prometer resultados. Existem muitas variáveis envolvidas que não estão sob o meu controle, o que chamamos de risco. Ficaria muito mal prometer algo e não entregar. É o que chamo de “parte política” dos investimentos.

Voltemos à Coronavac. O Butantan e o laboratório chinês podem ter todos os motivos técnicos do mundo para terem adiado o anúncio da eficácia da vacina. Não vou aqui entrar no mérito. Mas ficou a impressão de rolando-lero. Mas o problema de fundo foi o governador prometer algo que não estava totalmente sob seu controle. Certamente, quando ele planejou a ação, lhe disseram que a Coronavac era eficaz. Ele pode ser tudo, menos burro. O problema foi ter colocado uma data ANTES de efetivamente poder mandar a vacina para registro. O atraso no envio para registro é até mais grave do que a não divulgação dos dados de eficácia.

No post citado, havia afirmado que os fatos, esses senhores da política, começavam a se virar contra Doria. O adiamento de ontem é mais um passo nessa direção. Somente uma eficácia muito alta, devidamente reconhecida por publicação acadêmica de primeira linha, e a preservação da data de 25/01 como início da vacinação, poderão colocar os fatos novamente trabalhando para Doria. Convenhamos que ficou bem mais complicado.