Tesouro RendA+: vale a pena?

Fui olhar agora no site do Tesouro como funciona esse título (Tesouro RendA+). Ao contrário do que publiquei no final do ano passado (conforme havia entendido da reportagem), este título paga taxa de juros além da inflação durante o período de amortização, ou seja, quando você recebe o seu investimento de volta em prestações mensais. Portanto, a sua taxa de juros pode ser comparada diretamente com a taxa de juros dos títulos Tesouro IPCA normais.

O que vai diferenciar este investimento de um PGBL, por exemplo, é a questão fiscal. O PGBL tem a vantagem da dedutibilidade da base de cálculo do Imposto de Renda, ou seja, há uma postergação do pagamento do Imposto de Renda. E pode, inclusive, haver economia de IR, se o regime for regressivo (alíquotas menores com o passar do tempo), sendo de 10% a menor alíquota possível. No caso do Tesouro RendA+, a menor alíquota será de 15% sobre a renda obtida. Por outro lado, o PGBL costuma ser mais caro (maior taxa de administração) do que o Tesouro Direto. Então, é difícil, de antemão, calcular qual é o mais vantajoso. A vantagem do Tesouro RendA+ é a sua disciplina: você recebe os seus pagamentos mensais durante 20 anos após o vencimento, impondo uma certa disciplina para o seu fluxo de caixa.

Enfim, trata-se de uma boa iniciativa, mas parece pouco provável que um grande número de poupadores tenham a disciplina suficiente para aproveitar ao máximo o que este título tem para oferecer.

Ainda os preços dos combustíveis

Já tive a oportunidade de escrever um longo artigo sobre esse “fundo de estabilização”. Aqui vai só mais um breve comentário.

O comentário é o seguinte: qualquer truque usado para diminuir os preços dos combustíveis, receba o nome que receber (fundo de estabilização, subsídios, manipulação dos preços por parte da Petrobras) significa uso de recursos públicos que, de outra forma, poderiam estar sendo usados para outras finalidades.

Por exemplo, o projeto de lei prevê o uso de recursos do pré-sal para o fundo de estabilização. Lembra que o pré-sal foi apresentado aos brasileiros como um passaporte para o futuro, com seus recursos sendo usados para levar a nossa educação a outro nível? Pois é, agora vai servir para tornar mais barato o combustível usado pela classe média. Estaremos literalmente queimando o nosso futuro.

Alguns defendem essa inversão de valores com base em um suposto efeito inflacionário do aumento dos preços dos fretes, o que prejudicaria os mais pobres. Os “mais pobres”, como sempre, são usados como escudo para defender os interesses dos “menos pobres”.

Bem, em primeiro lugar, está longe de ser certo que preços menores ou maiores de fretes chegam ao preço final das mercadorias. Há várias empresas no meio, que podem absorver esses custos em seus balanços, a depender da força da demanda por seus produtos. Mas, e principalmente, se for para aliviar a barra dos mais pobres, seria muito mais efetivo gastar esse dinheiro diretamente com eles, subsidiando comida e gás de cozinha, ou aumentando o Bolsa Família, algo muito mais barato do que manter um certo nível de preços para os combustíveis consumidos por todo o país.

Na verdade, já temos um fundo informal de estabilização. No momento em que o governo Bolsonaro decidiu cortar o PIS/COFINS dos combustíveis, o dinheiro não arrecadado, e que poderia estar sendo usado para outros fins, está servindo para manter mais baixos os preços. Ao decidir manter o corte do imposto “por enquanto”, o governo Lula, na prática, decidiu manter o fundo de estabilização informal. Neste caso, os dois governos se dão as mãos no tipo de uso que fazem do orçamento público.

Preconceito do bem

Confesso que fiquei encasquetado com o termo “idosa” para qualificar a mulher de 67 anos presa pela quebradeira do último dia 8. Li no Estadão, fui checar no Globo e na Folha, e o termo está lá, nos três jornais.

O curioso é que, a mesma matéria do Estadão menciona a prisão de um homem de 66 anos, mas não o qualifica de “idoso”.

Os outros presos na operação da PF nem sequer tiveram suas idades mencionadas, de onde se conclui que a idade, nestes casos, não tem importância jornalística. E qual a importância jornalística da idade da mulher? E mais: qual o “catch” desejado ao qualificá-la de “idosa”?

Tudo o que vai escrito no jornal tem um propósito. Uma manchete “homem assalta loja e mata o dono” é diferente de “homem negro assalta loja e mata o dono”, que é diferente de “homem assalta loja e mata dono trans”. Tudo o que vai escrito pode ser absolutamente fiel aos fatos, mas o uso dessas palavras tem um interesse jornalístico, senão não estariam ali.

No caso em tela, é verdade que a mulher tem 67 anos. Já o termo “idosa” é vago, ainda que não fuja completamente à realidade. Hoje em dia, se uma pessoa morre com 67 anos de idade, provavelmente diremos que “morreu jovem”. “Idoso” é um termo muitas vezes considerado pejorativo, preferindo-se “maduro” ou “melhor idade”.

Alguém consegue imaginar, por exemplo, a seguinte manchete: “Idosa de 67 anos, Dilma Rousseff começa o seu segundo mandato”. Pois é, essa era a idade da presidenta em 2015. Uma manchete desse tipo seria considerada uma grosseria sem tamanho.

Mas voltemos à questão inicial: por que a unanimidade no uso do termo “idosa” para qualificar a mulher? Meu palpite: a ideia é transmitir uma mensagem jocosa, caricata. Para isso, nada melhor do que uma autêntica “tia do zap”, alguém que deveria estar fritando bolinhos de chuva para os netos, mas está fanatizada pelo zap, e saiu vandalizando tudo. Só faltava ser evangélica para o pacote ser perfeito: idosa evangélica quebra tudo em Brasília.

A explicação acima, no entanto, peca pela falta de lógica: por que, afinal, os jornais estariam se esforçando em tornar caricato o vandalismo de Brasília, se devemos, os brasileiros, acreditar que o País esteve à beira de um golpe de Estado? Quem vai realmente acreditar que a ameaça era séria, se à frente tínhamos uma ”idosa de 67 anos”? Ou bem a coisa era séria ou era caricata. As duas coisas ao mesmo tempo não dá.

Além de tudo, chamar a atenção para a condição de “idosa” da mulher poderia ser considerado uma manifestação de etarismo. No mundo woke em que nós vivemos, a mulher poderia sim acusar essa micro agressão. Mas, como sabemos, o preconceito tem dois lados, o do bem e o do mal. Esse é do bem.

Gato por lebre

Dois editoriais do Estadão começam a reconhecer que os democratas do país compraram gato por lebre.

No primeiro, lamenta-se que Lula não seja o estadista que a hora do País pede, mas apenas o chefe de um grupelho político revanchista, que insiste em chamar de golpe um processo absolutamente democrático.

No segundo, pede-se ao STF (leia-se Alexandre de Moraes) que seja mais específico na fundamentação de suas decisões em relação à cassação do direito de cidadãos expressarem-se em redes sociais.

Por enquanto, o tom é apenas de lamento e advertência. Mas são os primeiros sinais de que os democratas do País estão incomodados. Lula e Alexandre de Moraes foram instrumentais para que a democracia brasileira expelisse um corpo estranho, Bolsonaro. Agora, começam a “descobrir” que alimentaram um monstro.

Na trilogia Jogos Vorazes, ocorre uma revolução para a deposição do presidente autoritário que comanda o país com mão de ferro. Essa revolução é comandada por uma mulher que, ao assumir o poder, mostra que atuará com um revanchismo que se assemelha muito ao modus operandi do presidente deposto. Em determinado momento, em uma reunião, os democratas se entreolham, sentindo o mesmo desconforto do editorial do Estadão. No filme, dão um jeito no projeto de ditadora. E aqui no Brasil?

Sindicalismo da boquinha

Entrevista com o novo ministro do Trabalho, Luíz Marinho. Saiu no jornal de ontem, mas só tive tempo para comentar hoje. A entrevista contém várias pérolas. Tendo sido difícil escolher as melhores, decidi reproduzir tudo.

Em resumo, Marinho propõe aumentar o salário mínimo para aumentar a demanda e a arrecadação do governo, como se o moto perpétuo existisse. Além disso, pretende aumentar a formalização da mão de obra “visitando” a reforma trabalhista, uma reforma que justamente permitiu aumentar a formalização, ao reconhecer formas alternativas de trabalho. Por fim, Marinho até arrisca uma análise “supply side” da economia, ao reconhecer que os empresários precisam antes investir para criar a oferta. O aumento do salário mínimo, então, faria o papel de convencer os empresários de que a demanda estará lá quando estiverem produzindo. Brilhante.

Mas é para a parte final da entrevista que eu gostaria de chamar a vossa atenção: Marinho vai “negociar” com Uber e iFood melhores salários para os motoboys e motoristas, como se ainda fosse sindicalista da Volkswagen em São Bernardo do Campo.

Marinho vive na década de 70, época em que a indústria representava mais de 30% do PIB nacional e os sindicatos cuidavam dos interesses de trabalhadores bem estabelecidos em seus empregos formais nessas empresas. Passaram-se 50 anos, o muro de Berlim caiu, o PIB do setor de serviços explodiu, a tecnologia digital revolucionou as relações de trabalho, e Marinho ainda acha que vai resolver algum problema dos trabalhadores sentando-se à mesa com os “patrões exploradores”.

Aliás, note como a palavra “exploração” aparece repetidamente na entrevista, refletindo exatamente a ideia de seu chefe, que afirmou recentemente que “o empresário fica rico sem trabalhar”. Essa é a mentalidade que nos preside no momento, e Marinho apenas empresta a sua voz a essa mentalidade.

Claro que tudo isso é só espuma. A grande missão do ministro do Trabalho é encontrar um meio de voltar com o imposto sindical. Afinal, os sindicatos precisam ser fortes para negociarem com os patrões exploradores. E também, porque não dizer, para apoiar campanhas eleitorais de políticos comprometidos com a causa dos explorados, quer dizer, dos trabalhadores. Afinal, como certa vez Anthony Garotinho resumiu magistralmente, o PT é o “partido da boquinha”.

O discurso golpista de Lula

O que é um golpe?

Esses conceitos políticos são sempre difíceis de definir, mas vou arriscar: golpe é qualquer mudança (ou permanência) do mandatário de uma nação fora do devido processo legal. Uma mudança do regime pode ocorrer também, mas não é condição necessária. A parte “tricky” dessa definição está no termo “devido processo legal”.

A deposição de Jango, em 1964, revestiu-se de toda a aparência do processo legal. O Congresso aprovou e o STF referendou a troca do mandatário. Foi um golpe ou não?

Lula e os petistas se apegam à suposta fragilidade das “pedaladas fiscais” como caracterização do crime de responsabilidade que embasou o impeachment de Dilma. Assim, sem crime de responsabilidade, todo o processo estaria viciado e, portanto, o devido processo legal não teria sido seguido. Portanto, golpe.

Já gastei rios de bits nesta página para contrapor esse argumento. Meu ponto é outro: ou bem quem apoiou o impeachment é golpista, ou Lula e os petistas são golpistas. Não há meio termo.

O jurista Miguel Reale Jr, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Roussef, e que apoiou Lula no 2o turno contra Bolsonaro, afirma que as declarações de Lula “não ajudam o Brasil”. Dr. Reale, vou mandar aqui a real: Lula está chamando o senhor de golpista. Sim, golpista, igualzinho os depredadores dos três poderes. Segundo Lula, todos os que apoiaram e aprovaram o impeachment praticaram o mesmo ato que os vândalos de Brasília, aliás, chamados frequentemente de “golpistas”.

Como eu, assim como o Dr. Reale, acredito que o impeachment seguiu o devido processo legal, não há outra alternativa a não ser chamar Lula pelo seu devido nome: golpista. É Lula que quer desvirtuar o devido processo legal para manter o poder. Só não o fez em 2016 pelo mesmo motivo que os golpistas de 2023 não o fizeram: falta de condições objetivas. Mas o seu discurso não deixa margem a dúvida.

Dr. Reale e todos os que votaram em Lula para “salvar a democracia” fariam bem em reconhecer que esse discurso é bem mais do que uma “narrativa que não ajuda o País neste momento”. Não. Trata-se de um discurso golpista. É preciso dar nome aos bois.

Esse discurso demonstra, mais uma vez, que Lula faz parte do problema da nossa democracia, não de sua solução. Quanto antes os democratas do país entenderem isso, melhor.

Ainda as exportações para a Argentina

Devia ter virado a página do jornal antes de ter escrito meu post anterior. Assim, escreveria um artigo só, não dois.

Na página seguinte, outra iniciativa do governo brasileiro para “retomar” o comércio entre Brasil e Argentina: garantia de crédito para exportadores brasileiros, através de um fundo chamado FGE – Fundo de Garantia de Exportações. A ideia é a mesma do BNDES: quem corre o risco de crédito argentino não é o exportador, mas o governo brasileiro, seja via BNDES, seja via FGE.

O comércio Brasil-Argentina despencou porque nossos hermanos enfrentam tremenda dificuldade de acesso a dólares. E os exportadores brasileiros, por algum estranho vício cultural, preferem receber em dólares do que em pesos. De preferência, pagamento antecipado.

Então, o governo brasileiro assume o risco Argentina, e o comércio floresce novamente. A ideia é que isso vai ajudar no desenvolvimento dos dois países, e, com mais crescimento econômico, a Argentina vai conseguir acesso aos dólares necessários para pagar os empréstimos. Como se estivesse tudo certo na economia argentina (e também na brasileira, diga-se de passagem) e só faltasse essa fagulha do comércio exterior para colocar as engrenagens do crescimento para girar.

No final, o FGE, assim como o BNDES, ficará credor dos argentinos, e receberá o pagamento em balinhas.

Posso dar o troco em balinhas?

O BNDES (leia-se recursos do Tesouro Nacional) foi usado extensivamente durante os governos Lula II e Dilma I para financiar obras de construtoras brasileiras no exterior. O governo Temer, em sua tentativa de equilibrar novamente as contas do Tesouro, reduziu bastante o escopo do BNDES, incluindo essas obras no exterior.

Como funcionam esses financiamentos? Simples: uma empresa fecha um contrato de construção com um contratante qualquer, o BNDES paga a empresa brasileira e fica credora da contratante. Assim, o BNDES tornou-se credor de uma série de países.

Pode-se perguntar porque bancos privados não podem fazer esse papel do BNDES. A resposta é simples também: custo. Bancos privados vão cobrar taxas de juros proporcionais ao risco de crédito do contratante. Já o BNDES cobra taxas de juros camaradas. A ideia é viabilizar obras que não tenham viabilidade econômica a taxas de juros de mercado, mas, por gerarem as tais “externalidades positivas” para a economia brasileira, merecem taxas de juros subsidiadas pelo seu, pelo meu, pelo nosso dinheiro.

No caso do gasoduto argentino, o ministro Haddad enfatizou este ponto: esse tipo de financiamento é benéfico para o Brasil, porque viabilizará o transporte de gás argentino para o país. Fico imaginando se realmente não há engenharia financeira que viabilize uma atividade econômica como o transporte de gás. Provavelmente, o risco de crédito do governo argentino é tão alto, mas tão alto, que inviabiliza qualquer investimento.

O BNDES, portanto, ficará credor do governo argentino, que, provavelmente, pagará a dívida com balinhas, que dizer, com SURs, na falta de acesso a alguma moeda de verdade. O BNDES venderá esses SURs para o nosso Banco Central, e esses recursos passarão a fazer parte de nossas reservas internacionais. O governo Lula, assim, cumprira a sua promessa de trazer de volta a felicidade para o Brasil e para a América Latina. Até o dia em que tivermos que usar as nossas reservas internacionais, e descobrirmos, horrorizados, que só tem balinhas lá.

Perda de tempo e energia

Não sou um grande conhecedor da teoria econômica. Somente observo atentamente o comportamento dos agentes econômicos e tiro minhas conclusões. Minha premissa básica é que o teste da realidade é o definitivo para entender se uma teoria funciona ou não.

Com relação à pretendida moeda única do Mercosul, que serviria para as transações comerciais entre os países do tratado, observo que, hoje, as transações ocorrem em dólares. Ou seja, argentinos não aceitam reais e brasileiros não aceitam pesos argentinos como pagamento por suas respectivas exportações. Isso é um fato, não há o que discutir.

E por que isso acontece? Provavelmente porque o BC brasileiro não compra pesos argentinos para as suas reservas, nem tampouco o BC argentino compra reais para as suas reservas. E por que os BCs dos dois países não aceitam as moedas de seus vizinhos? Porque sabem que são inúteis no mercado global para comprar títulos de países sérios para compor suas reservas internacionais. Nossos papéis pintados não têm curso internacional.

E por que uma moeda do Mercosul, lastreada nesses papéis pintados, seria aceita globalmente? Mistério. Os exportadores de ambos os países receberiam o Sur e fariam o que com isso? Os BCs locais comprariam a nova moeda? E fariam o que com essa moeda? O Sur faria parte das nossas “reservas internacionais”? Medo.

Esse tipo de ideia sempre me lembra o episódio do South Park que já citei aqui, em que os garotos vão até uma caverna de duendes para aprender como as empresas funcionam, e os duendes apresentam um plano infalível para ficarem ricos:

Fase 1: juntar cuecas

Fase 2: ?

Fase 3: ficar rico

A falta da fase 2 não intimida os duendes, que continuam a acreditar piamente em seu plano. Aqui, o mesmo:

Fase 1: estabelecer o Sur

Fase 2: ?

Fase 3: a indústria dos países se desenvolve

A ligação de uma coisa com a outra é a mesma de juntar cuecas esperando ficar rico. Mas os duendes não se deixam vencer.

Não é a primeira vez que macaqueamos ideias sem ter condições para tanto. Em 2008, o governo Lula criou o Fundo Soberano para receber os excedentes da exportação de petróleo do pré-sal, quando ainda estava a milhares de metros debaixo do mar. A ideia teve um custo fiscal não desprezível, e só serviu para fazer parte da mutreta da capitalização da Petrobras. Foi extinto em 2019 e, em toda a sua existência, não recebeu um centavo dos tais “excedentes de exportação”.

O pior dessas ideias não são nem os seus efeitos econômicos, que costumam ser nulos. O problema é a quantidade de energia e homens-hora desperdiçados em projetos inúteis, que tiram o foco de funcionários públicos que, de outra forma, poderiam estar pensando em como resolver problemas bem mais importantes para o desenvolvimento do país.

30 anos. E os novos velhos problemas

Ontem, como parte da pesquisa para escrever meu próximo livro, assisti a um Roda Viva de dezembro de 1993, com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Além de ser engraçado ver jornalistas como Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardemberg e Celo Ming 30 anos mais jovens, foram vários os aspectos interessantes do programa, alguns servindo como parâmetro para os desafios que temos hoje. Vejamos.

– É curioso ver como aqueles jornalistas experimentados não conseguiam entender a lógica da URV, unidade de conta que entraria em vigor 3 meses depois. Enquanto os jornalistas tentavam entender como seria o “dia D” da entrada do novo padrão monetário, FHC tentava explicar que não haveria “dia D”. Ao contrário dos planos econômicos anteriores, o governo não determinaria nada, a não ser o valor do salário mínimo em URV. O resto seria livremente pactuado entre os agentes econômicos, o que era uma novidade de difícil entendimento, por fugir completamente à lógica de um Estado interventor na atividade econômica.

– Também é curioso notar como todas as cifras eram denominadas em dólares. Era a confissão implícita do fracasso monetário brasileiro. Quando até o próprio ministro da Fazenda expressa os números do orçamento nacional em uma moeda estrangeira, é que a moeda virou uma peça de ficção. Isso é inimaginável hoje em dia, e uma grande prova de quanto evoluímos neste aspecto.

– O plano Real tinha três etapas, sendo que a primeira era alcançar um “equilíbrio fiscal” das contas públicas. FHC afirmava que, sem essa primeira etapa, a introdução da URV e, depois, do próprio Real, seriam inviáveis. Para tanto, havia um pacote de ajuste a ser aprovado no Congresso, no valor de US$ 22 bilhões. Segundo dados do FMI, o PIB brasileiro, no final de 1993, era de US$ 430 bilhões. Ou seja, o déficit estimado era de aproximadamente 5% do PIB! Hoje, estamos tentando zerar um déficit que, este ano, deve ser algo em torno de 2% do PIB. A tarefa parecia bem mais complexa do que é hoje. Mas, não é bem assim por três motivos: acurácia dos números, carga tributária e flexibilidade do orçamento. É o que veremos nos três itens a seguir.

– Um dos jornalistas lembrou que o ex-ministro Dilson Funaro esteve ali, no mesmo programa, afirmando que havia sido enganado quando lhe afirmaram que o déficit havia sido zerado. Na verdade, Funaro não havia sido enganado. É que ninguém sabia mesmo qual era o déficit naquela barafunda das contas públicas brasileiras, em que a inflação e ralos dos mais diversos tipos e tamanhos contribuíam para a zona. Talvez a coisa tivesse melhorado um pouco nos anos seguintes, mas é duvidoso afirmar que havia uma compreensão completa do orçamento como temos hoje. Então, provavelmente, FHC deve ter colocado um coeficiente de segurança nos números. Tanto que, em determinado momento do programa, Celso Ming questiona o montante com base em algumas premissas, e FHC sai pela tangente.

– Perguntas dos telespectadores (por fax!) chegavam, e a maioria versava sobre o aumento de impostos do pacote. Nesse momento, FHC afirma que o brasileiro não quer pagar imposto para manter os serviços públicos que reivindica, e que a carga tributária no Brasil era baixa: 18% do PIB no nível federal, 4% do PIB nos níveis sub-nacionais. Como sabemos, o ajuste fiscal brasileiro, desde então, foi feito por aí: a carga tributária saiu de 22% para os atuais 34% do PIB. E, mesmo assim, ainda rodamos com déficit. O que demonstra que as necessidades do Estado brasileiro sempre aumentarão e ultrapassarão a capacidade do mesmo Estado de arrecadar impostos. Hoje, a saída adotada por FHC de aumentar a carga tributária parece ser mais difícil, mas não impossível.

– FHC citou dois grandes números importantes em sua entrevista: 20% das despesas do governo eram com pessoal e 20% eram com aposentadorias. O governo ainda gastava 40% do seu orçamento com outros itens obrigatórios e tinha somente 20% de espaço para gastos discricionários. Segundo FHC, esses 20% eram muito pouco espaço para o governo fazer suas políticas, de modo que o pacote fiscal incluía algum nível de desvinculação de receitas. Pois bem: esses números hoje são os seguintes: os mesmos 20% para os funcionários públicos, 45% para aposentadorias, 30% para outros gastos obrigatórios e 5% para gastos não obrigatórios. Não por outro motivo, a primeira coisa que fez o governo Lula foi aprovar um pacote de gastos adicionais de R$ 200 bi, pois aqueles 5% não dão para nada. Hoje, o orçamento público é absolutamente engessado, e a questão das aposentadorias vai somente piorar ao longo do tempo, comendo uma parte cada vez mais relevante dos impostos pagos. A situação, hoje, é muitas vezes pior do que na época de FHC.

O Plano Real foi apenas o início, não o fim, do processo de estabilização. Várias iniciativas foram realizadas para recolocar as contas públicas nos eixos, desde o fechamento dos bancos estaduais, passando pelas grandes privatizações até a LRF e o estabelecimento de um comitê de política monetária independente. Voltamos para trás na disciplina dos entes sub-nacionais e não avançamos em outros pontos, como o equacionamento da previdência (a reforma foi muito pouco, muito tarde). A inflação, que servia para fechar as contas que não fechavam, parece domada. Mas, se não pactuarmos uma forma de financiar o orçamento, é questão de tempo para que volte. Primeiro, devagar. Depois, de repente.