O caminho para termos uma PDVSA

Não há detalhes, mas digamos que o subsídio que a Petrobras irá patrocinar represente R$20 de desconto sobre o preço do botijão de gás. Com R$ 300 milhões, daria para financiar esse subsídio para 1 milhão de famílias durante 15 meses. São 14 milhões as famílias que recebem o Bolsa Família. Portanto, uma gota no oceano.

O problema, no entanto, não é o montante, mas o conceito. A Petrobras está subsidiando o seu produto, subsídio este que deveria ser financiado pelo orçamento do governo. Trata-se, portanto, de um orçamento paralelo.

Claro que as empresas têm liberdade para financiar programas sociais. Aliás, o que mais se exige hoje das empresas é que tenham “consciência social”, não pensem somente no lucro, mas que deem retorno também para a sociedade, não somente para os acionistas.

Ainda que, neste ponto, concorde com Milton Friedman, que afirmava que a principal contribuição social das empresas é gerar lucro para os seus acionistas, reconheço que o zeitgeist hoje favorece a benemerência por parte das empresas. A Petrobras estaria somente reforçando o S da sigla ESG.

Bem, seria assim se fosse assim. Se a Petrobras estivesse doando R$ 300 milhões para, digamos, hospitais, provavelmente não estaria sendo questionada. Trata-se de um montante pequeno perto do seu lucro, e poderia ser separado anualmente para a benemerência social. Isso é uma coisa. Outra coisa bem diferente é subsidiar um de seus produtos.

É diferente porque a empresa está sendo pressionada pelo alto preço dos combustíveis, um item politicamente muito sensível. Nada garante que esses subsídios não sejam aumentados no futuro. Inclusive através de uma política de defasagens de preços. Hoje, os preços da gasolina e do diesel já estão defasados, apesar dos últimos aumentos.

Por enquanto, são só R$ 300 milhões. Mas mostra que o atual governo vê a Petrobras com o mesmo óculos de seu antecessor, uma fonte para “políticas sociais”. Estamos longe de termos uma PDVSA. Mas o caminho é este.

Pode guardar a champagne

Ontem e hoje foram publicadas reportagens sobre a autorização da Funai e do Ibama para a construção do Linhão de Tucuruí, que um dia ligará essa usina a Boa Vista, em Roraima, único estado brasileiro não ligado ao sistema elétrico nacional.

Quem lê a reportagem e não tem nenhuma outra informação, sai com a impressão de que os índios foram “pegos de surpresa” e sequer foram consultados. Bolsonaro, em sua sanha anti-ambientalista, teria forçado os órgãos responsáveis para, finalmente, 10 anos depois do leilão, levantar o linhão.

Nada mais falso. Em abril desse ano, publiquei um post com extensa e detalhada pesquisa a respeito desse assunto. A história é bem longa, mas podemos listar ao menos duas “imprecisões” (eufemismo para falsidades) na narrativa:

1) Os índios foram sim consultados. Todos os detalhes técnicos foram inclusive traduzidos (!) para a língua nativa. A história de que os índios não são contra a obra mas querem somente ser consultados não tem aderência com a realidade.

2) Em 2015, também pressionados pelo então governo Dilma Rousseff, o Ibama e a Funai deram o seu aval para a obra. Portanto, Dilma e Bolsonaro estão de mãos dadas em sua “sanha anti-ambientalista”.

Por fim, para aqueles animados com o início das obras, especialmente a população de Boa Vista, recomendo calma. Não é a primeira vez que o governo federal promete que “agora vai”. O mais provável é que as obras sejam mais uma vez paralisadas por alguma liminar da justiça. É o que tem ocorrido nos últimos 10 anos, e não há motivo para ser diferente agora.

A importância do jornalismo profissional, apesar de tudo

“Apesar de adotar objetivos progressistas, governo democrata enfrenta número excessivo de imigrantes”.

Este é o lead da matéria sobre o imbróglio que o governo Biden está enfrentando nessa questão da imigração. Digamos, em uma realidade alternativa, que o lead fosse o seguinte:

“Por causa de seus objetivos progressistas, governo democrata enfrenta número excessivo de imigrantes”.

Este segundo hipotético lead seria interpretado como propaganda do governo Trump e só poderia ter sido publicado em algum site alt-right. Já o primeiro é, supostamente, neutro. Só que não.

O uso do “apesar” também faz uma ligação entre as “políticas progressistas” e o “número excessivo de imigrantes”: trata-se de uma relação de não causalidade. Ao usar “apesar”, o jornalista está afirmando que as políticas progressistas NÃO SÃO responsáveis pelo número excessivo de imigrantes. A causa da crise humanitária deve ser procurada em outro lugar.

Sairá de mãos abanando os que procurarem, na matéria, possíveis explicações para o aumento do número de imigrantes. Parece mais uma força incontrolável da natureza, uma catástrofe que calhou de cair sobre os ombros do presidente democrata. Um azar, dado que justamente ele adotou “políticas progressistas”.

A matéria seria neutra se deixasse essa bobagem de “políticas progressistas” de lado. Existe uma crise humanitária e o governo Biden não está conseguindo enfrentá-la, ponto. Avaliações sobre “políticas progressistas”, em clara contraposição às “políticas reacionárias” de seu antecessor, só mostram o lado do jornalista. E abrem o flanco para um leitor medianamente inteligente chegar à óbvia conclusão de que são exatamente essas “políticas progressistas” que estão causando a vaga de imigrantes.

Para terminar: em favor do jornalismo profissional, é de se notar que esse tipo de reportagem sequer teria espaço em um veículo puramente militante. O Granma não publica os problemas do sistema cubano, como o fazem o NYT ou o Washington Post em relação aos problemas do governo americano, apesar dos vieses. O fato de se publicar matérias sobre a crise dos imigrantes, apesar da tendência do jornalista, mostra a importância de termos uma imprensa profissional independente em uma democracia. Cabe a nós, leitores conscientes, separar o joio do trigo, evitando jogar o bebê junto com a água suja da banheira.

O Brasil tá lascado!

“Os governadores têm de se sensibilizar, têm que dar sua cota de sacrifício”.

Falou em redução de impostos, eu sou o primeiro na fila a aplaudir. O problema é quando essa redução de impostos não vem acompanhada de redução de gastos. Então, a redução de impostos se transforma em aumento de dívida.

A maior parte dos estados está quebrada. O que Lira está sugerindo é que os estados se endividem ainda mais. Tenho uma outra sugestão: que tal o governo federal subsidiar a gasolina, devolvendo para os estados uma eventual renúncia fiscal do ICMS? Ah, não tem dinheiro? Pois é…

Lira estava falando desde a sua base eleitoral, em Alagoas, estado governado pelo seu desafeto Renan Filho, do clã Calheiros. Não por outro motivo, Fernando Collor o estava acompanhando no palanque. Ao pedir “sensibilidade” aos governadores, Lira estava fazendo política paroquial com um assunto nacional de extrema importância. É desse nível de “estadista” que dependem os destinos da nação. Como dizia o Gil do Vigor, o Brasil tá lascado.

O problema está na demanda, não na oferta

Adriano Pires, um dos maiores especialistas brasileiros em energia, escreve artigo no Brazil Journal em que explica o aumento absurdo dos preços dos combustíveis fósseis, principalmente gás, no mundo inteiro.

Resumindo a ópera: a demanda encontra-se em patamar muito maior que a oferta. Por trás desse truísmo econômico encontra-se uma realidade para a qual precisamos nos preparar: a oferta de energia “limpa” é instável e não confiável. Depende essencialmente da boa vontade da Mãe Natureza, que pode simplesmente se negar a colaborar, como temos visto na estiagem desse ano, que praticamente desligou Belo Monte, e na falta de ventos no Mar do Norte, que diminuiu a produção de energia eólica na Inglaterra.

Combustíveis fósseis, grandes lagos de hidroelétricas e átomos de plutônio são reservatórios de energia que servem como estoque para essas ocasiões em que mamãe natureza não colabora. Ocorre que a retirada de energia desses reservatórios gera poluição (ou, no caso dos lagos, a morte de muitas espécies), o que não combina com uma sociedade moderna e atenta aos problemas causados por esses processos.

O resultado é um descompasso entre oferta e demanda. Destaquei o trecho do artigo que acredito ser o mais importante.

Tenho repisado esse ponto toda vez que escrevo sobre o assunto: o problema está na demanda, não na oferta. Não existe uma migração de energias “sujas” para energias “limpas” sem custo. A energia limpa é mais cara, pelo simples fato de não ter fornecimento confiável ao longo do tempo. A solução é diminuir a demanda. Queremos um mundo mais limpo? Desliguemos nossos ar-condicionados e nossos sistemas de aquecimento (no caso do hemisfério norte). Achar que vamos continuar consumindo a mesma quantidade de energia, só que limpa, é pura ilusão. É isso que Adriano Pires mostra nesse artigo.

No final, quem sofre, como sempre, são os mais pobres. A migração para energias “limpas” torna a energia mais cara, e o preço é pago por todos, inclusive os mais pobres. Claro que as alterações climáticas afetarão também os mais pobres. Estamos no típico caso do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. A solução? Não vejo outra, a não ser diminuir o consumo. Conseguiremos abrir mão do conforto? Pouco provável.

O resultado é um preço de energia estruturalmente mais alto. É bom nos acostumarmos com a ideia.

O dia da marmota do subdesenvolvimento

Vamos para o 3o ano com o chamado “auxílio emergencial”. O governo já poderá pedir música no Fantástico.

Só relembrando: o auxílio emergencial foi aprovado para suplementar a renda daqueles que, por força da pandemia, não podiam sair de casa para trabalhar. Hoje, com a economia praticamente toda aberta e funcionando totalmente, perde o sentido. Mas aí começam as justificativas: “o desemprego está alto!”. “A inflação está alta!”. Quer dizer, enquanto tivermos desemprego e inflação “altos”, vamos continuar pagando o tal do auxílio emergencial. Estou tentando lembrar alguma época em que o desemprego não fosse alto no Brasil. Foram raros os momentos em que tivemos desemprego abaixo de 10%. O que seria um desemprego “baixo” que dispensasse o auxílio emergencial?

Alguns poderão dizer: “ah, pra você é fácil ficar ditando regras, você está empregado e tem 5 refeições por dia! Queria ver você na situação desses necessitados!”. Pois é, os pobres (“invisíveis”, na nova nomenclatura) são sempre o escudo usado para deixar tudo como está. Afinal, quem é o desalmado que vai negar esse auxílio aos mais necessitados? São só R$ 40 bilhões em um orçamento de R$1,6 trilhões.

O problema é essa maldita regra do Teto de Gastos. Os tais R$ 40 bilhões não cabem. Precisa ser por fora. E, assim, usando os pobres como escudo, mantém-se intactos os outros R$ 1,6 trilhões de gastos federais, como se fossem gastos determinados no Monte Sinai pelo próprio Deus e não pudessem ser discutidos. O auxílio emergencial é só mais um na longa lista, construída em décadas, de “gastos sociais” do governo. Na verdade, cada real dos R$ 1,6 trilhões gastos anualmente se justificam como uma ação para minorar a desigualdade de renda no país. Afinal, saúde gratuita, educação gratuita, justiça gratuita, tudo isso custa dinheiro. O fato é que, gastando 1/3 do PIB nas 3 esferas do governo para prover serviços gratuitos para a população, ainda assim temos uma das piores distribuições de renda do mundo. Quanto mais precisaremos gastar para sermos um país mais “igualitário”?

Como o governo não cria dinheiro, os recursos para pagar o auxílio emergencial e todos os outros R$ 1,6 trilhões de gastos só podem ter duas fontes: impostos e dívidas. Hoje, o governo federal arrecada cerca de R$ 1,45 trilhões em impostos e toma R$ 150 bilhões em dívida para fechar as contas. Aliás, desde 2014 precisamos nos endividar para pagar as contas. Quem empresta o dinheiro, tem confiança de que, em algum momento do futuro, terá seu dinheiro de volta. Se a confiança diminui, cobrará mais caro para se proteger do calote. E “calote”, neste caso, significa inflação. Inflação alta e juros altos levam a crescimento baixo, o que torna mais difícil a tarefa de diminuir o desemprego. Mas nada que um novo “auxílio” não resolva. E assim, vivemos o nosso dia da marmota do subdesenvolvimento.

Acredita quem quiser

Mailson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e respeitado consultor do mercado financeiro, bem longe de ser um petista comunista, aposta que o mercado vai preferir Lula a Bolsonaro, caso sejam essas as duas opções que restarem em 2022.

Lembro das eleições de 2006. Lula vinha de um primeiro mandato que, do ponto de vista econômico, havia sido um sucesso. Apesar de marcado pelo mensalão, o primeiro termo de Lula é sempre lembrado pelas suas medidas ortodoxas e pelo timaço de craques na Fazenda e no BC. Claro, teve a ajuda da China, mas o governo petista se ajudou, fazendo a coisa certa. Foi apenas no segundo mandato que o governo Lula mostrou a sua verdadeira cara, inchando o Estado, intervindo cada vez mais na atividade econômica e cevando o desastre que o governo Dilma iria colher.

Pois bem. Mesmo tendo sido um sucesso do ponto de vista econômico, a ida de Alckmin para o 2o turno, em uma eleição que, tudo indicava, seria vencida por Lula no 1o turno, fez com que o mercado, no dizer de um consultor político, ficasse alegre como “pinto no lixo”. Entre o Lula ortodoxo e Geraldo Alckmin, não havia dúvida sobre quem o mercado preferia.

Passaram-se 15 anos desde então. O mercado viu o 2o mandato de Lula, o Petrolão, as lambanças no BNDES e na Petrobras e, sobretudo, o desastre do governo Dilma, onde a agenda econômica do PT foi aplicada em sua plenitude. O mercado aprendeu nesses anos todos.

Pode ser que o mercado se deixe enganar pelos “sinais” enviados por Lula, e dê um voto de confiança no início de seu hipotético terceiro mandato. Além disso, o governo Bolsonaro pode estar sendo ruim para a atividade econômica, pela instabilidade institucional constante. Mas daí a tirar que o mercado preferirá, durante as eleições, um novo mandato petista, vai uma distância cósmica. Neste ponto, discordo de Mailson.

Para a economia, nada pode ser pior do que o programa de governo do PT. Cabe ao mercado acreditar que Lula jogará o programa do seu próprio partido no lixo, como fez provisoriamente no seu primeiro mandato. Acredita quem quiser.

Jornalismo militante

Por ocasião do discurso de Bolsonaro na ONU, várias agências de fact checking saíram a campo para checar as afirmações do presidente. Algumas foram classificadas como “verdadeiras, mas falta contextualizar”. Por exemplo, a afirmação “o Brasil vai crescer 5% neste ano” é verdadeira, mas faltaria dizer que as previsões para 2022 estão ficando cada vez mais pessimistas. Alguém consegue imaginar Bolsonaro dizendo “estamos muito bem esse ano, mas ano que vem iremos muito mal”?

Bem, se a moda da “contextualização” pegar, uma boa parte das notícias (supostamente algo a que devemos prestar atenção) virarão uma “não notícia”. É o caso dessa manchete: “Prevent está entre as operadoras com mais processos na ANS”.

Segundo a matéria, a operadora está em 39o lugar entre as mais reclamadas pelos usuários e em 7o lugar em número de processos. A reportagem não explora o porquê dessa diferença entre número de reclamações e de processos, o que seria o mínimo para contextualizar o dado. Mas, sigamos.

Fui pesquisar um dado básico para interpretar esses números: as maiores operadoras do país. A tabela abaixo mostra que a Prevent é a 8a maior, o que torna o seu 7o lugar em número de processos absolutamente compatível com o seu tamanho. Incompatível era a sua posição anterior, que mostrava uma satisfação dos clientes bem acima da média.

O aumento das reclamações poderia ser alvo de uma reportagem, mas não o número em si. Aliás, 150 reclamações por mês resulta em 1.800 por ano, o que representa 0,3% da base de clientes da operadora. Este número não me parece especialmente alto, mas caberia aqui uma pesquisa sobre satisfação de clientes de outras operadoras, o que, obviamente, o jornalista não fez, pois, se fizesse, provavelmente se depararia com uma “não notícia”.

É interessante como a imprensa exige de políticos uma narrativa absolutamente fidedigna da realidade, como se políticos não fossem agentes que, por natureza, criam narrativas edulcoradas para ganhar votos. Cabe aos formadores de opinião e às pessoas em geral separar o joio do trigo no discurso dos políticos. Ou alguém imagina políticos dando tiros no próprio pé em nome da “verdade dos fatos”?

Por outro lado, espera-se da imprensa a correta contextualização das notícias. Aqui não cabe edulcorar ou carregar nas tintas, mas, simplesmente, informar da forma mais imparcial possível. Essa reportagem sobre a Prevent mostra, em sua falta de contextualização, uma “notícia” que entra no campo da narrativa política. Aí já não é mais jornalismo, é militância.

Ligue os pontos

Três notícias hoje no jornal:

1. PT e PSOL se pintam para a guerra contra a proposta do prefeito de São Paulo de reforma da previdência dos servidores municipais. Hoje o déficit do sistema é de R$ 6 bilhões por ano.

2. Membros do MTST ocupam a B3 em protesto contra a fome.

3. A prefeitura diminui de 1000 para 750 as marmitas diárias distribuídas no programa Rede Cozinha Cidadã.

Ligue os pontos.