Rumo ao ostracismo

Mais importante do que entender os motivos pelos quais João Doria desistiu de sua candidatura presidencial é avaliar o impacto da decisão na disputa. Entendo que seja pequeno e explico porque.

A única mudança significativa na campanha seria o aumento da probabilidade de um dos dois candidatos que lideram as pesquisas serem ultrapassados por um terceiro. A chance de um evento desse tipo aumentou com a desistência de Doria? Provavelmente não. Para que isso acontecesse, seria necessário que o PSDB desistisse de lançar um candidato. Vai acontecer? Pouco provável.

Com uma candidatura na rua, o PSDB continua dividindo os votos da chamada “terceira via”. A não ser que fosse um candidato que atraísse votos dos atuais lulistas e bolsonaristas. Até pode ser, mas não vejo isso acontecendo em escala suficiente para mudar o quadro eleitoral.

Enfim, a desistência de Doria tem muito mais influência nas eleições paulistas do que na nacional, onde o PSDB vai disputar votos com o candidato bolsonarista Tarcísio de Freitas. A depender do arranjo do partido que exerce o governo do Estado há quase 30 anos, Tarcísio pode ser o mais beneficiado nesse imbróglio.

Doria, por fim, somente adiantou um fim que o aguardava de qualquer forma depois das eleições: o ostracismo.

Nasce empresa lá?

Meu pai era fã de Zé Vasconcelos, um humorista precursor do gênero stand up comedy no Brasil. Tínhamos em casa alguns LPs de seus shows e, por incrível que pareça, ríamos sempre das mesmas piadas. É uma das doces lembranças de minha infância.

Em uma dessas piadas, Zé Vasconcelos faz referência jocosa ao Acre, perguntando, incrédulo, “mas, nasce gente lá?” Tratava-se de uma auto-piada, dado que ele mesmo havia nascido em Rio Branco.

Bem, essa foi a minha primeira reação ao ler a reportagem sobre a confeitaria de Rondônia que ganhou o mundo após ter um de seus posts no Instagram sendo compartilhado por ninguém menos que Britney Spears. Pensei sem pensar, “mas, nasce empresa lá?”

Depois pensei, desta vez raciocinando, “o que seria dessa empresa se não fosse o Instagram?”

O Facebook comprou o Instagram em 2012, quando a rede social tinha acumulado meros 30 milhões de downloads (hoje tem 1,4 bilhão). Na época era um negócio pequeno para o Facebook, que já tinha, naquela altura, 800 milhões de usuários. No entanto, Zuckerberg ”viu” o potencial da rede de compartilhamento de fotografias. Assim como “viu” o que o negócio de redes sociais representaria para o capitalismo do século XXI.

Muito acusam o Facebook de práticas monopolistas, das quais a aquisição do Instagram seria uma prova incontestável. A questão, no entanto, não é saber onde estaria o Facebook sem o Instagram hoje. A questão é saber onde estaria o Instagram sem o Facebook. Uma miríade de produtos nascem e morrem na internet todos os dias. Não basta ter um “bom produto”, é preciso “ver” como aquele produto muda o mundo ao seu redor. Mark Zuckerberg, assim como Bill Gates, Steven Jobs e alguns poucos outros, é desses raros empresários que veem mais longe. Não há o contrafactual, mas sou capaz de apostar que o Instagram, hoje, seria irrelevante fora das asas de Zuckerberg, porque um bom produto é apenas uma parte de uma estratégia empresarial de sucesso.

Hoje, o Instagram permite que uma empresa de Rondônia ganhe o mundo. O Instagram da Flakes (nome da confeitaria) já contava com mais de 600 mil seguidores antes do evento Britney Spears. Além disso, vende cursos on-line de confeitaria, e tem 40 mil alunos de 33 países. Esse é o capitalismo do século XXI, sem fronteiras. Zuckerberg “viu” esse “outro mundo possível”, e foi o responsável por tê-lo trazido à luz. Ao fornecer ferramentas que nivelam o acesso aos consumidores, fez mais pela distribuição da riqueza no mundo do que uma miríade de programas governamentais.

Candidatura sob encomenda

Gilberto Kassab é uma das raposas mais felpudas do cenário político nacional. Recebeu três nãos públicos em sua busca por um candidato ao palácio do Planalto. Há algumas coisas esquisitas nessa história.

Primeiro, Kassab estar caçando um candidato. O PSD nunca lançou candidato à presidência, sempre foi um partido de Congresso. Uma candidatura à presidência custa caro e retira recursos das candidaturas a deputado e senador. Ok, dá visibilidade ao partido. Mas Kassab realmente quer tornar seu partido “visível”? Para quem sempre operou nos bastidores, parece, no mínimo, esquisito.

Depois, receber três negativas públicas depõe contra a sua fama de político hábil. Parecem mais lances de desespero do que jogadas planejadas, de alguém que está cumprindo uma tarefa e não está tendo sucesso. É neste ponto que entra a minha desconfiança.

Minha hipótese é de que Lula, de quem Kassab sempre foi próximo, lhe “encomendou” uma candidatura presidencial. A ideia seria congestionar ainda mais a chamada “terceira via”, diminuindo ainda mais a chance de Bolsonaro ficar de fora do 2o turno. Lula prefere enfrentar Bolsonaro e vice-versa.

Viajei?

Em busca da âncora fiscal

Gosto do Felipe Salto. Acho que é um dos quadros mais bem preparados do país na área econômica, e pode vir a ocupar qualquer cargo nessa área no futuro. Mas, às vezes, acho que lhe falta a experiência de sentar-se em uma mesa de operações de uma tesouraria de banco ou de um fundo de investimento para entender a cabeça do credor da dívida pública. Tenho certeza que, em tendo essa experiência, ele pensaria duas vez antes de publicar a sua proposta de controle da dívida no Estadão de hoje.

O artigo começa com uma tese correta, mas inócua: a de que a Constituição de 1988 já traz os mecanismos de controle de dívida, não é preciso inventar mais nada.

Está correto. Mas no Brasil, sabemos que há dois tipos de lei: as que pegam e as que não pegam. No caso, a lei sobre limite de dívida foi dessas que não pegaram. E, neste caso, nem é por culpa do famoso “jeitinho brasileiro”. A exemplo do limite para a taxa de juros de 12%, também inscrito na Constituição Cidadã, o limite para a dívida pública é inexequível sem a quebra de algum contrato ou a intervenção no mercado de dívida. Limitar a dívida, por si só, poderia levar ao calote, pois os juros a aumentam.

Nos EUA há um limite de dívida. De vez em quando, vemos a ameaça de um shutdown nos serviços públicos porque a dívida está se aproximando do teto, até que o Senado aprova um “waiver” para a dívida subir até um novo patamar. Por que eles podem fazer isso lá e nós não podemos fazer isso aqui? Parece injusto. Só porque eles têm quase 250 anos de estabilidade democrática, sem nunca ter dado calote na sua dívida e poderem imprimir a moeda de reserva global, os credores não exigem deles a mesma disciplina que exigem do Brasil?

Voltemos ao nosso caso. Para que o limite da dívida não levasse a uma situação de calote ou a seguidos “waivers” que desmoralizariam a regra, Salto repete a proposta de um outro artigo seu: o limite da dívida levaria ao cálculo de um teto para os gastos. Voltaríamos, então, à situação atual, em que o teto da dívida substitui o teto de gastos como fator de tensão entre necessidade de gastos e disciplina fiscal. É neste ponto que Salto propõe uma inovação: as ”bandas” para o teto da dívida. O problema é que essa é uma “solução” que só empurra o problema com a barriga e, portanto, não é capaz de ancorar as expectativas do mercado. Vejamos.

Salto usa como exemplo as bandas de inflação que guiam a atuação do BC. Se a projeção da inflação futura está acima da meta, o BC eleva a taxa de juros, se está abaixo, diminui. Este sistema, chamado de “metas de inflação”, e introduzido no Brasil em 1999, tem sólida comprovação acadêmica e é usado com sucesso por inúmeros países. A sua premissa básica é que a inflação é fruto, em grande medida, das expectativas dos agentes econômicos. Se o BC, o guardião da moeda, tem credibilidade, os agentes econômicos sabem que, mais cedo ou mais tarde, a inflação vai cair, porque o BC vai agir para tanto. Não por outro motivo, a inflação projetada pelo relatório FOCUS, que reúne o palpite de bancos, fundos de investimento e consultorias, está por volta de 3% para 2024 em diante. E são esses agentes que formam os preços dos títulos públicos. Assim, o sistema de metas para a inflação, com o seu mecanismo de bandas, funciona com sucesso para ancorar as expectativas com relação à inflação futura e as taxas de juros de prazos mais longos.

Já para um sistema de “bandas de endividamento”, a questão é saber se é suficiente para ancorar as expectativas dos agentes econômicos com relação à trajetória da dívida. Não conheço literatura a respeito, mas desconfio que lhe falte ao menos um elemento para que funcione: a credibilidade. O BC, como emissor da moeda, conquistou sua credibilidade ao longo das últimas décadas e, recentemente, mais um pilar foi assentado, com a aprovação da sua independência formal. À União, como emissora da dívida, lhe falta essa credibilidade, que é a verdadeira âncora das expectativas.

A União leva uma vantagem sobre o BC: ao contrário da autoridade monetária, que tem apenas um instrumento indireto para lidar com a inflação, a taxa de juros, a União tem o poder de afetar diretamente o tamanho da dívida, através do controle dos gastos. Por isso, o teto de gastos é o sistema mais crível para controlar a dívida, dado que é matemático: se o governo controlar seus gastos, a dívida estará automaticamente sob controle. Ocorre que o teto se mostrou inviável politicamente. Então, se inventam maneiras de calcular o teto que pareçam “suficientemente flexíveis” para os políticos e “suficientemente inflexíveis” para os credores da dívida. Um pouco como aquelas dietas “sem sacrifício”, em que a pessoa continua tendo o prazer de comer mas o corpo entende que o número de calorias milagrosamente caiu.

É neste ponto que me parece faltar um pouco de experiência de “mesa de operações” para Felipe Salto. Um sistema como o proposto, cheio de “buracos” por onde podem passar as despesas necessárias para atender às necessidades do povo brasileiro, não tem a mínima chance de ancorar as expectativas dos agentes econômicos. Se esta é a solução política possível, a verdade é que teremos taxas de juros que correspondem a essa solução política possível. Isso, no cenário benigno, em que o BC continua no controle da situação. No maligno, teremos um descontrole inflacionário.

A Conta de Estabilização dos Preços dos Combustíveis: mais uma distorção na já distorcida economia brasileira

No dia 10/03, foi aprovado no Senado o PL 1472/2021, que dispõe, entre outras coisas sobre a criação da Conta de Estabilização de Preços de Combustíveis (CEP-C daqui em diante). A ideia de uma conta de estabilização desse tipo não é nova. Toda vez que o preço do petróleo sobe no mercado internacional, essa ideia é ressuscitada.

Neste artigo vamos, em primeiro lugar, entender o mecanismo de funcionamento da CEP-C. Em seguida, estudaremos as suas potenciais fontes de financiamento. E, por fim, vamos entender por que essa é uma ideia que não deve ir para frente.

A lei aprovada no Senado

A redação da lei é a seguinte (os grifos são meus):

Art. 68-J. É criada a Conta de Estabilização de Preços de Combustíveis (CEP-Combustíveis), com a finalidade de reduzir, observadas as regras fiscais e orçamentárias, o impacto da volatilidade dos preços dos combustíveis derivados de petróleo e GLP, inclusive o derivado de gás natural, para o consumidor final.

O mecanismo utilizado está descrito no parágrafo primeiro:

§ 1º A CEP-Combustíveis:

III – utilizará os limites superior e inferior da banda de que trata o art. 68-I e os preços de referência, discriminados em regulamento por produto, considerando a seguinte sistemática, visando sua sustentabilidade financeira:

a) a diferença a mais entre o preço de referência e o limite superior será compensada em favor dos agentes produtores e importadores de combustíveis derivados de petróleo e GLP, inclusive o derivado de gás natural, considerando as quantidades comercializadas;

b) a diferença a mais entre o limite inferior e o preço de referência será recolhida em favor da CEP-Combustíveis, considerando as quantidades comercializadas pelos agentes produtores e importadores de combustíveis derivados de petróleo e GLP, inclusive o derivado de gás natural.

O artigo 68-I, que define as “bandas” dos preços é o seguinte:

Art. 68-I. O Poder Executivo regulamentará, ouvida a ANP e observadas as regras fiscais e orçamentárias, a utilização de bandas móveis de preços com a finalidade de estabelecer limites para a variação de preços dos combustíveis derivados de petróleo e GLP, inclusive o derivado de gás natural, definindo a frequência de reajustes e os mecanismos de compensação.

§ 1º Os mecanismos de compensação referidos no caput não devem inviabilizar a competitividade dos biocombustíveis.

§ 2º Os limites das bandas móveis serão definidos de maneira a refletir variações extraordinárias de preço.

Vamos a um exemplo para entender este mecanismo.

O mecanismo da Conta de Estabilização de Preços de Combustíveis

A lógica da CEP-C é relativamente simples: quando o preço do petróleo sobe, o dinheiro acumulado no CEP-C é utilizado para compensar a Petrobrás por não subir os preços dos combustíveis. Ou seja, a empresa recebe a mesma remuneração que receberia se tivesse aumentado os preços. Desta forma, o lucro da Petrobrás não é penalizado pelo controle dos preços. Por outro lado, quando os preços internacionais do petróleo caem, ao invés de essa queda ser transmitida para os preços dos combustíveis, os preços permanecem mais altos, e a Petrobrás transfere essa arrecadação adicional para a CEP-C.

Antes de explorarmos um exemplo numérico, vamos lembrar que o preço no posto inclui impostos, a mistura de etanol e a margem do posto de gasolina, além do valor da gasolina cobrado pela Petrobrás na refinaria, conforme podemos observar na figura a seguir, retirado do site da Petrobrás:

Para o nosso exercício, digamos que se queira limitar o preço nas bombas em R$ 5,00 por litro (preço de referência), com uma banda de R$ 0,50 para cima e para baixo. Assim, temos:

Agora, digamos que o preço do petróleo no mercado internacional, que é a referência para a determinação do preço da gasolina, esteja em R$ 350 o barril (este preço é resultado do preço do barril em dólares multiplicado pelo câmbio). Para descobrir qual seria o preço da gasolina equivalente, vamos usar a relação histórica entre o preço da gasolina e o preço do barril de petróleo. Para tanto, usei os preços da gasolina e do petróleo (em reais) desde 2017, quando a Petrobrás inicia a nova política de preços, referenciada nos preços internacionais do petróleo. O resultado está no gráfico a seguir:

Cada ponto deste gráfico representa a relação entre o preço médio da gasolina no país e o preço do barril de petróleo (em reais) no final de cada mês, desde janeiro de 2017 até março de 2022. Este último ponto corresponde ao último aumento de combustíveis anunciado pela Petrobrás, e é representado pelo ponto mais à direita no gráfico.

Em primeiro lugar, podemos observar que, de fato, os preços da gasolina seguem de maneira bastante fiel os preços do petróleo. As pequenas distorções se devem a eventuais movimentos naturais dos preços entre os reajustes. A linha de regressão nos permite calcular o preço teórico da gasolina para cada patamar do preço do petróleo. A tabela abaixo nos dá os preços da gasolina para alguns preços selecionados do barril de petróleo (destacamos os preços que nos levam ao limite da política do preço de referência e suas bandas:

Observamos, então, que o preço da gasolina deveria ser de R$ 5,15 quando o preço do petróleo está em R$ 350. Portanto, neste ponto, a gasolina está um pouco acima do preço de referência definido pelo governo, que é de R$ 5,00, mas abaixo do teto da banda, que é de R$ 5,50. Como estamos dentro da banda definida, a CEP-C não é acionada.

Digamos, agora, que o preço do barril de petróleo dê um salto de R$ 50, para R$ 400. Neste caso, o preço da gasolina deveria ser elevado para R$ 5,64, segundo a tabela acima. No entanto, este preço está acima da banda superior do preço da gasolina definida pelo governo. Qual a solução? Simples: a CEP-C compensa a Petrobrás com a diferença. Assim, a Petrobrás cobra um preço que resulta em R$ 5,50 pelo combustível na bomba, e os outros R$ 0,14 são transferidos da CEP-C para a Petrobrás.

Por outro lado, se o preço do barril de petróleo cai para R$ 250, a Petrobrás poderia cobrar um preço pela gasolina que resultaria em R$ 4,18 por litro de gasolina na bomba, conforme a tabela acima. No entanto, a banda inferior é de R$ 4,50. Então, a Petrobrás cobra um preço que resulta em R$ 4,50 na bomba e transfere os R$ 0,32 adicionais para o CEP-C.

O esquema está ilustrado na figura a seguir:

O mecanismo é esse. Vamos agora colocar alguma realidade nesses números. Digamos que queiramos diminuir o preço do combustível na bomba dos atuais R$ 7,50 para o nosso preço de referência, R$ 5,00. Para calcular quanto a Petrobrás precisaria receber em compensação para manter o preço da gasolina em R$ 5,50 na bomba (topo da banda definida), precisamos saber o preço que a Petrobras cobra das distribuidoras. Lembre-se que o preço cobrado pela Petrobrás é apenas uma parte do preço da bomba, e é essa parte que precisa ser compensada. Para isso, vamos fazer uma correspondência entre o preço da gasolina na bomba e os preços da Petrobrás na tabela abaixo (essa correspondência foi calculada com base na proporção atual entre impostos, margem da distribuidora e preço de realização da Petrobrás):

Podemos observar que, para fazer essa redução, a Petrobrás precisaria reduzir o seu preço em aproximadamente R$ 1,25.

O mesmo vale para o diesel. Para fazer o mesmo cálculo que fizemos com a gasolina, precisamos do break-down do preço do diesel, também fornecido pela Petrobrás, conforme figura abaixo:

Fazemos a mesma regressão entre o preço do petróleo e o preço do diesel na bomba, considerando a atual configuração entre preço de realização da Petrobrás, margem do posto e impostos:

E, por fim, calculamos quanto precisaríamos reduzir o preço cobrado pela Petrobrás. Para tanto, vamos considerar que o preço de referência do diesel na bomba fosse determinado em R$ 4,25, também com bandas de R$ 0,50 para cima e para baixo, e que o preço atual do diesel na bomba seja de R$ 6,40. Temos então:

Portanto, precisamos de dinheiro suficiente no CEP-C para reduzir o preço do litro da gasolina em R$ 1,25 e o preço do litro do diesel em R$ 1,30 na refinaria. De acordo com o seu balanço do 4o trimestre, a Petrobras vendeu aproximadamente 400 mil barris/dia de gasolina e 800 mil barris/dia de diesel para o mercado doméstico em 2021, o que equivale a aproximadamente 63 milhões de litros de gasolina e 127 milhões de diesel por dia. Portanto, se fizesse um desconto de R$ 1,25 por litro de gasolina e R$ 1,30 por litro de diesel, a Petrobrás estaria deixando de arrecadar um total de R$ 244 milhões por dia. Ou R$ 7,3 bilhões por mês. Ou R$ 88 bilhões/ano.

De onde viria este dinheiro hoje? As fontes de recursos estão descritas no parágrafo segundo da lei aprovada.

As fontes de recursos do CEP-C

Vejamos a redação da parte da lei que nos informa sobre as fontes de recursos:

§ 2º É autorizada a transferência para a CEP-Combustíveis, no caso de esgotamento ou inexistência do saldo oriundo da banda de que trata o art. 68-I, observadas a disponibilidade orçamentária e financeira e as regras fiscais, de recursos:

I – de participações governamentais relativas ao setor de petróleo e gás destinadas à União resultantes do regime de concessão e resultantes da comercialização do excedente em óleo no regime de partilha de produção, ressalvadas as vinculações estabelecidas na legislação;

II – de excesso de arrecadação, relativo à previsão da lei orçamentária anual, dos dividendos da Petrobrás pagos à União;

III – de receitas públicas não recorrentes relativas ao setor de petróleo e gás, em razão da evolução das cotações internacionais do petróleo bruto, desde que haja previsão em lei específica, observado como limite o valor que exceder ao previsto na lei orçamentária anual; e

IV – do superávit financeiro de fontes de livre aplicação disponíveis no balanço da União, em caráter extraordinário.

Comecemos pelo primeiro item, royalties. Em 2021, foram arrecadados com royalties o equivalente a R$ 74 bilhões, um recorde. Deste montante, cerca de 35% ficam livres para a União, ou R$ 26 bilhões. O resto é distribuído a Estados, municípios e para vinculações obrigatórias. Devemos ter em mente que este é um valor excepcional, muito acima da média, que foi de R$ 35 bilhões nos 5 anos anteriores.

O segundo item refere-se aos dividendos da Petrobrás. Também esse ano tivemos uma distribuição excepcional de dividendos. Foram quase R$ 73 bilhões desembolsados em 2021, e mais um dividendo suplementar a ser pago em maio deste ano, totalizando R$ 101 bilhões. Para termos uma ideia, a média dos dividendos pagos nos 5 anos anteriores totalizou menos de R$ 4 bilhões por ano. Daquele montante, cerca de R$ 29 bilhões foram ou virão para os cofres da União. Vamos considerar, para simplificação do raciocínio, que não houve nenhuma previsão orçamentária de recebimento de dividendos (a lei fala em usar para o CEP-C o excesso de arrecadação de dividendos). Portanto, seriam mais R$ 29 bilhões disponíveis para alimentar o CEP-C.

Os outros dois itens são incertos e de difícil estimativa, de modo que não consideraremos em nosso raciocínio.

Temos, então, um montante de R$ 55 bilhões (R$ 26 bilhões dos royalties e R$ 29 bilhões dos dividendos) para alimentar o CEP-C em um ano realmente excepcional. Podemos raciocinar de duas formas (sempre considerando estabilidade do consumo de combustíveis em relação a 2021. Se o consumo aumentar, as contas serão menos favoráveis):

  1. Este montante seria suficiente para bancar cerca de 7,5 meses do subsídio calculado acima. Depois disso, teríamos que rezar para o preço do petróleo ter recuado.
  2. Considerando 12 meses de subsídio, o preço do diesel poderia ser reduzido de R$ 6,40 para R$ 4,90 (um pouco acima do teto de R$ 4,75), sem qualquer redução do preço da gasolina. Ou, o preço da gasolina poderia ser reduzido para R$ 5,50 (o teto da banda), e o preço do diesel para R$ 5,65, abaixo dos atuais R$ 6,40, mas bem acima do teto de R$ 4,75.

Uma outra conta possível é a seguinte: quanto o CEP-C teria acumulado se tivesse sido estabelecido no início da vigência da nova política de preços da Petrobrás? A paridade internacional começou a ser adotada oficialmente em outubro de 2016. Digamos que o CEP-C tivesse entrado em vigor em janeiro de 2017. Vamos considerar um preço mínimo de R$ 4,50 para a gasolina e de R$ 3,75 para o diesel durante este período. Os gráficos a seguir mostram que, em grande parte desse tempo, os preços ficaram abaixo do limite mínimo.

Como os preços ficaram abaixo da banda mínima até o início de 2021, teria sido possível acumular um bom montante no CEP-C durante esse período. Considerando o mesmo consumo de 2021 nos anos anteriores apenas para fins do exercício, teríamos a seguinte evolução do montante acumulado no CEP-C:

Observe que o pico teria sido atingido no início de 2021, com aproximadamente R$ 155 bilhões na conta. A partir de 2021, com a disparada dos preços do petróleo e do dólar, a conta começaria a ser consumida, e teríamos hoje ainda algo como R$ 100 bilhões, montante mais do que suficiente para manter os preços na parte superior da banda por mais um ano pelo menos, se os preços do petróleo não subirem além do patamar atual.

Podemos testar outras bandas de preços. No gráfico abaixo, observamos o saldo do CEP-C para preços de referência da gasolina em R$ 4,50 e R$ 4,00, e do diesel em R$ 3,80 e R$ 3,40, respectivamente (sempre com as mesmas bandas de flutuação).

Observe como, nos dois casos em que os preços dos combustíveis são determinados mais para baixo, o CEP-C não é suficiente para manter os preços nesses patamares. No pior caso, estaríamos hoje devendo R$ 150 bilhões para o CEP-C. E a conta ainda estaria crescendo.

Este exercício nos será útil para entender por que o CEP-C não tem como dar certo.

O CEP-C é uma péssima ideia e eu vou provar

O CEP-C é uma ideia muito ruim em várias dimensões. Vejamos.

  1. Como determinar o preço de referência?

A determinação do preço de referência é um pepino político. Quando temos um preço determinado pelas forças do mercado, podemos espernear e nos revoltar, mas o preço é o preço, o culpado é o mercado. Quando o governo (ou o Congresso) trazem para si a responsabilidade de determinar o preço, qualquer critério será questionado.

Hoje o governo já é criticado pelo preço dos combustíveis porque o povo entende que o governo tem o poder de determinar os preços, dado que a Petrobrás é uma empresa estatal. Imagine quando o governo tiver realmente este poder, a pressão política que vai sofrer. Hoje, pelo menos, existe a desculpa (que não é uma desculpa, é a realidade) de que este é o preço de mercado e a Petrobrás precisa praticar preços de mercado.

Vimos acima que, para juntar um montante razoável de dinheiro na CEP-C, é preciso praticar preços muito mais altos do que os que tivemos até 2021. No caso da gasolina, por exemplo, o preço médio entre 2017 e 2020 foi de R$ 3,85, ao passo que, se houvesse o preço de referência de R$ 5,00, o preço médio teria sido de R$ 4,50 (limite inferior da banda), ou seja, 17% mais alto. E isso ao longo de 4 anos. Quando se trata de cortar preço todo mundo quer uma CEP-C. O problema é que isso significa preços mais altos ao longo do tempo. Isso nos leva ao segundo ponto, a seguir.

2. O problema não é a volatilidade. O problema é o preço alto.

Vou aqui recuperar o texto da lei:

Art. 68-J. É criada a Conta de Estabilização de Preços de Combustíveis (CEP-Combustíveis), com a finalidade de reduzir, observadas as regras fiscais e orçamentárias, o impacto da volatilidade dos preços dos combustíveis derivados de petróleo e GLP, inclusive o derivado de gás natural, para o consumidor final.

Note que a intenção declarada do legislador não é ter preços mais baixos dos combustíveis, mas menor volatilidade. O problema é que o consumidor não quer menor volatilidade. Ele quer menor preço mesmo. Ninguém realmente reclama quando o preço cai. O problema é quando o preço sobe. Não por outro motivo, ninguém falava de CEP-C quando os preços do petróleo estavam em US$ 40. Aquele era o momento de se pensar em uma conta de compensação, elevando o preço dos combustíveis para começar a montar um fundo de compensação. Mas quem é louco de propor um troço desses quando está todo mundo curtindo preços baixos de combustíveis?

Claro que, agora que sabemos a que altura pode subir o preço do petróleo, todo mundo quer colocar um trinco na porta arrombada. O problema é que não fizemos uma poupança precaucional para este momento. A questão é: quando o preço do petróleo ceder (se um dia ceder), vamos realmente segurar os preços? A questão é política (vide item 1 acima). Mas digamos que o governo/Congresso consigam esta proeza. O que pode acontecer?

3. Dinheiro na mão é vendaval

Imagine chegarmos em 2021 com uma conta de quase R$ 160 bilhões acumulados, ali, dando sopa. O que você acha que aconteceria?

Já consigo ouvir os discursos no Congresso: esse dinheiro é do povo brasileiro, deve ser usado para o seu benefício. A tentação de usar essa montanha de dinheiro para outras finalidades não é fácil de ser vencida. Na prática, funcionaria como um imposto sobre combustíveis: os combustíveis ficam mais caros do que deveriam, e a diferença seria usada para outros fins muito nobres.

Mas este é um problema teórico. O problema prático é o inverso.

4. Dinheiro não tem carimbo

Hoje, o nosso problema é arrumar dinheiro extra para subsidiar os combustíveis, dado que não usamos o período de bonança para montar o CEP-C. Como vimos acima, esse dinheiro viria dos royalties e dos dividendos da Petrobrás. Mas este dinheiro, se não houvesse o CEP-C, seria usado para outros fins. A grande questão não respondida é a seguinte: subsidiar combustíveis é o melhor uso possível para este dinheiro?

Dinheiro não tem carimbo. Não é porque o dinheiro veio da alta dos preços do petróleo no mercado internacional que deve ser usado necessariamente para compensar os efeitos dessa mesma alta. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A alta dos preços do petróleo pode ser uma benção: o governo brasileiro arrecadou R$ 55 bilhões adicionais (como vimos mais acima) e pode usar esse dinheiro extra na área social, ao invés de subsidiar os custos de indivíduos e empresas com combustíveis. Alguns dirão que esses custos acabam nas costas dos mais pobres, na forma de preços mais altos dos produtos. Ao que eu respondo que existem muitas linhas no balanço das empresas entre o preço do combustível e o preço final do produto, e nada garante que subsídios terminarão lá nos preços. Nunca há essa garantia para os subsídios concedidos, a bem da verdade.

O fato é que controlar preços com recursos orçamentários não parece ser uma boa ideia. Na verdade, controlar preços de qualquer maneira não parece ser uma boa ideia. Preços são a forma de o sistema capitalista se autoajustar. É o que veremos a seguir, no ponto de argumentação que considero o mais importante.

5. A intervenção nos preços sempre envia uma sinalização errada para os agentes econômicos

Quando o preço de uma mercadoria sobe, isso significa que há mais demanda do que oferta por aquele produto. Pode ser que a demanda tenha subido ou a oferta tenha se reduzido, e então o preço se ajusta para cima em um novo equilíbrio entre oferta e demanda. O novo preço mais acima diminui a propensão das pessoas em consumir aquela mercadoria, reduzindo a demanda, ao passo que atrai novos produtores, aumentando a oferta.

Claro que há mercados em que esses ajustes são mais ou menos imediatos. No caso dos combustíveis, a demanda tem uma certa inelasticidade (sensibilidade ao preço), pois as pessoas precisam continuar a se movimentar, e reduzem seu consumo de outros produtos em um primeiro momento para acomodar o aumento do preço dos combustíveis. No entanto, em um segundo momento, mudam hábitos e encontram alternativas. Além disso, a diminuição do seu poder de compra de outros produtos acaba por levar a uma desaceleração da atividade econômica, o que, por si, já diminui a demanda por combustíveis. No lado da oferta é a mesma coisa: é difícil aumentar a produção do dia para a noite, e normalmente o que ocorre é o uso de estoques reguladores. Em um segundo momento, no entanto, produtores menos eficientes são atraídos pelos preços mais altos da mercadoria, ajustando a oferta.

Ao intervir nos preços, o governo está destruindo este delicado balanço. Os indivíduos e empresas não procuram reduzir a sua demanda, e novos produtores não são atraídos para normalizar a oferta. A tendência é termos uma demanda estruturalmente maior do que a oferta ao longo do tempo, o que pressionará os preços para cima cada vez mais, exigindo montantes cada vez maiores de subsídios. Este é um mecanismo, portanto, de retroalimentação, que exige cada vez mais recursos orçamentários para ser mantido. Obviamente, como todo processo artificial, esse modelo tem um limite, e a sua saída costuma ser caótica, como em toda manutenção de preços em níveis artificiais durante muito tempo.

Por fim, em tempos de substituição de energias sujas por limpas, o preço alto do petróleo é uma benção, pois viabiliza a adoção de fontes alternativas de energia. Não deixa de ser interessante que mesmo governos que se dizem defensores da agenda ambiental estejam, neste exato momento, procurando meios de reduzir os preços dos combustíveis. As boas intenções sempre terminam na próxima campanha eleitoral.

Conclusão

A ideia da CEP-C parece ser boa em princípio, pois não intervém diretamente na política de preços da Petrobrás, usando recursos orçamentários para reduzir os preços dos combustíveis. Mas é sintomático que este tipo de ideia somente seja discutida quando os preços estão nas alturas, e não quando temos eventualmente espaço para construir o lastro da conta de compensação. Hoje, este projeto parece mais um cala-boca da classe política diante do clamor popular diante dos preços dos combustíveis, um preço simbólico determinado por uma empresa simbólica.

Parece pouco provável que este projeto vá para frente, dadas as dificuldades técnicas apontadas acima e porque, até ser aprovado e regulamentado, o preço do petróleo terá recuado, tirando a pressão política por sua implementação. E não será ruim que este projeto seja esquecido. Não precisamos de mais um artificialismo em nossa economia já repleta deles.

A Fiesp e a marcha batida para a desindustrialização

A Fiesp, sob a nova liderança de Josué Gomes, oxigenou o seu conselho, chamando nomes como Luciano Huck e Michel Temer para dar pitaco. Ok, é sempre bom ver lideranças empresariais abertas a ouvir pontos de vista fora da caixinha. No entanto, quando vemos os economistas que foram chamados para compor o novo conselho, fica claro de que massa a Fiesp é feita.

André Lara Resende é o principal arauto da Modern Monetary Theory (MMT) no Brasil. E o que diz o MMT? Simples. Um país que tem a capacidade de arrecadar impostos na própria moeda que emite pode imprimir dinheiro à vontade para fazer investimentos produtivos, sendo que não há, para isso, limite para a dívida pública ou para a base monetária. O MMT surgiu da tentativa de explicar porque os países desenvolvidos ultrapassaram em muito o limite de dívida pública que se imaginava, há não muitos anos, catastrófico, sem que a inflação desse as caras. Além disso, políticas de “quantitative easing”, em que os bancos centrais monetizam a dívida (compram dívida com dinheiro literalmente emitido para isso) também não tiveram efeito na inflação. Lara Rezende defende que a mesma experiência pode ser transplantada para países como o Brasil, ou seja, podemos imprimir dinheiro e nos endividar à vontade sem que haja efeito inflacionário relevante, desde que esse dinheiro seja usado de maneira “sábia”.

Para essa segunda parte, o uso sábio do dinheiro, a Fiesp vai ouvir os conselhos de Luciano Coutinho, o pai intelectual e operador da política de Campeões Nacionais dos governos do PT. Coutinho vai usar o dinheiro criado do nada do MMT de Lara Rezende para as “políticas de fomento ao crescimento econômico” tão caras aos desenvolvimentistas e tão importantes para manter a indústria nacional em seu estado zumbi.

Não há que se espantar. Essa é a Fiesp sendo a Fiesp. Novos nomes, velhas práticas. Daqui a 20 anos, vamos estar nos perguntando porque o Brasil continuou em sua marcha batida para a desindustrialização e colocando a culpa nos chineses e nos juros altos.

Segredo de polichinelo

A única vantagem de ser velho é ter vivido o suficiente para não se deixar enganar por grandes novidades que deveriam estar em museus, como dizia Cazuza. A última é a união da FIESP com a Febraban para “descobrir” as causas dos juros altos no Brasil.

Faz-me lembrar a epopeia, na década de 80, para “descobrir” as causas da inflação. Não se tratava, na época como hoje, de algo realmente difícil de descobrir. O dinheiro é uma mercadoria como outra qualquer. Se perde valor com o tempo (inflação) ou se seu preço é alto (juros altos), é preciso buscar no fabricante os motivos pelos quais a mercadoria tem péssima qualidade ou tem custo alto. E quem fabrica o dinheiro de um país?

O Plano Real adotou um mecanismo genial (a URV) para quebrar a inércia inflacionária. Muitos acham que esse foi o principal truque do plano, acabando com a hiperinflação como em uma espécie de passe de mágica. Nada mais falso. O Plano Real funcionou porque trocou uma inflação alta por alguma disciplina fiscal e juros mais altos. O problema é que, quase 30 anos depois, ainda não acabamos de fazer a lição de casa para que a nossa moeda não perca valor no tempo sem que seja preciso colocar os juros nas alturas.

O problema nem é tanto o tamanho da dívida. Países com moedas muito mais estáveis têm dívidas maiores do que a brasileira. O problema é de credibilidade, o que leva os financiadores a exigirem taxas de juros mais altas e prazos mais curtos para rolar a dívida pública. Construímos nosso déficit de credibilidade ao longo das décadas, e é muito difícil reverter no curto prazo. Foram confiscos explícitos e implícitos, calotes explícitos e implícitos, e um histórico de leniência com a inflação alta, mesmo depois do plano Real. A última picareta fincada no pilar da credibilidade foi a mudança casuística na regra do teto de gastos, no ano passado. Seria preciso um trabalho longo e perseverante na direção correta, sem jeitinhos malandros, para que, ao fim do processo, pagássemos taxas de juros mais civilizadas. É preciso reconhecer que nossa situação, hoje, é muito melhor que no início do Plano Real. Não há atalhos para continuarmos a progredir.

Isso quando falamos da taxa básica de juros. Quando se trata dos juros pagos em empréstimos para empresas e indivíduos, devemos acrescentar a este custo básico, já em si alto, os impostos cobrados pelo governo, que tornam caras todas as mercadorias que compramos. E não seria diferente com o dinheiro. Acrescente-se a isso a incerteza própria de um país instável como o Brasil e um sistema judiciário que tende a beneficiar o devedor, e temos um spread maior para compensar o risco de crédito.

Achar que os juros altos são o resultado da ganância dos bancos é o mesmo que atribuir os preços altos no supermercado à ganância dos empresários. Esse tipo de discurso é bom para distrair a atenção do povo da causa última dos preços e dos juros altos. Funcionou na década de 80, quando populares fecharam supermercados, para descobrirem, consternados, que a inflação, mesmo assim, não havia acabado. Hoje, essa história não cola mais, já sabemos quem é o culpado pelo fato de o dinheiro ser uma mercadoria cara. O relatório FIESP/Febraban deverá revelar esse segredo de polichinelo.

O PT desaparecerá após Lula

Em qualquer pesquisa que se faça, o PT aparece como o partido que, de longe, tem a maior preferência do eleitorado brasileiro. Também aparece como o partido de maior rejeição. Arriscaria dizer que o PT é o único verdadeiro partido brasileiro, sendo que a política brasileira, desde a redemocratização, gira em torno do partido: ou se é petista, ou se é anti-petista. Aqueles que não são nem uma coisa nem outra tampouco têm partido de preferência.

Lula fundou o PT e mantém o partido sob mão de ferro. Esse domínio sobre o único partido brasileiro foi mantido inclusive durante suas férias na carceragem da PF de Curitiba. Políticos do PT e de vários outros partidos (quer dizer, filiados a alguma sopa de letrinhas) não arriscavam nenhum passo sem beijar o anel do capo.

Aliás, o petismo é muitas vezes chamado de “lulopetismo”, em referência ao seu fundador, tal a simbiose entre o criador e a criatura. Muitos colocam Lula na mesma altura de Getúlio Vargas, ainda que lhe falte a obra do ditador, como a CLT e a Petrobras, que sobreviveram (e ainda sobrevivem) décadas após a sua morte. Talvez o bolsa-família seja o legado de Lula que sobreviverá ainda por décadas, mas não há como comparar.

De qualquer forma, é inegável que Lula exerce, para a esquerda brasileira e, porque não dizer, latino-americana, esse papel de Messias, o ungido para levar a redenção às massas. E do ungido não se pode esperar nada a não ser a mensagem da salvação. Não há pecado, e o que aparenta serem erros são apenas interpretações equivocadas de seus atos, que são sempre puros.

No entanto, ao contrário do que ocorre na Argentina, onde o peronismo sobrevive firme e forte até hoje, o getulismo praticamente morreu junto com Getúlio. Os presidentes eleitos após a sua morte (Dutra, Juscelino e Jânio) nada tinham a ver com o seu legado. Jango e Brizola tentaram manter o getulismo vivo, sem sucesso.

Arrisco dizer que o mesmo ocorrerá quando Lula se mudar para outro plano (deixo a critério de cada um especular se mais acima ou mais abaixo do atual). O lulopetismo morrerá com Lula, e o PT será apenas uma sombra do que é hoje. O brasileiro não é como o argentino, gostamos dos vivos, não dos mortos. A Recoleta, cemitério de Buenos Aires onde descansam personalidades da história argentina, é um ponto turístico da cidade. É lá que se dá o culto a Evita, símbolo maior do peronismo. Aqui, o túmulo de Getúlio Vargas está esquecido em algum canto.

Este post me foi inspirado por um excelente artigo de meu companheiro do blog Papo de Boteco, Marcio Herve, “Lula emburreceu a esquerda brasileira. E isso é ruim prá todo mundo”. Sua tese é que a esquerda brasileira, antes repleta de inteligência, tornou-se uma massa bovina que segue Lula acriticamente. Sua capivara não foi suficiente para essa esquerda questionar os pressupostos do lulopetismo, com raras exceções (consigo pensar em Eduardo Jorge, por exemplo). A derrota nas eleições de 2018 fez surgir uma pequena onda de auto-crítica por parte de alguns simpatizantes, ainda que dirigida mais à desconexão do partido com as pautas realmente populares do que aos “malfeitos” dos seus dirigentes (lembro do discurso de Mano Brown às vésperas das eleições em um evento do partido, por exemplo). Mas esse movimento foi como onda que quebra na areia e desaparece. Lula decretou que não há do que se arrepender, e o rio voltou ao seu leito.

Agora, engana-se o meu amigo Marcio Herve se pensa que a passagem de Lula dessa para a melhor servirá para recuperar a inteligência da esquerda de que ele tanto sente falta. Isso pode ser verdade até o surgimento de um novo Messias, convencido de seu carisma divino. Sempre aparece um, e estamos sempre prontos a entregar nossos destinos nas mãos daquele que sabe o caminho. E isso vale também para a direita, igualmente pronta a acreditar no primeiro que promete o paraíso aos “homens de bem”. É necessária uma boa dose de ceticismo para não se deixar seduzir. Ceticismo este que pode ser confundido, não sem uma dose de razão, com a falta de idealismo dos que estão sempre criticando sem apontar soluções. Bem, este é o preço da liberdade de pensamento, que nos permite criticar o que achamos errado e elogiar o que achamos correto, sem ficarmos presos aos dogmas de uma seita.

As consequências dos subsídios

Muito interessante artigo sobre as distorções causadas pelos subsídios.

São quase R$ 350 bilhões gastos para emitir sinais distorcidos sobre preços ou sobre a lucratividade de negócios pouco produtivos. O resultado é a diminuição da produtividade da economia brasileira como um todo, levando a um crescimento medíocre.

Mas o artigo deixa de fora (até porque não é o seu escopo) os dois gigantescos subsídios implícitos que causam as maiores distorções de alocação de recursos públicos, e que continuam minando a produtividade brasileira, deixando no chinelo os subsídios explícitos cobertos neste artigo. São eles a má distribuição da carga tributária e o déficit da previdência.

O projeto de emenda constitucional 45/2019 tinha como objetivo nivelar a tributação de todas as atividades produtivas. Com uma alíquota única incidindo sobre o valor agregado de cada atividade, ficaria claro para os investidores onde estão as melhores oportunidades de lucro, carreando mais recursos para essas atividades e aumentando a produtividade do capital. Adivinha de onde veio a gritaria? Exato, do setor menos produtivo, o de serviços. A desindustrialização do país não é obra do acaso: a indústria (setor mais produtivo) subsidia o setor de serviços (setor menos produtivo).

O sistema previdenciário é outro que vive de subsídios. O seu déficit é financiado pelos impostos dos setores produtivos. Assim, parte do valor agregado gerado pelas atividades produtivas, que poderia estar sendo reinvestido em outras atividades produtivas, é usado para financiar a renda de pessoas que poderiam estar ainda em atividade (gerando valor) mas estão aposentadas. Mesmo aqueles aposentados ainda na ativa estão recebendo uma renda acima daquela correspondente à sua produtividade. A última reforma da previdência mal arranhou o problema.

O Brasil caiu na chamada “armadilha da renda média”, em que países enriquecem somente até o ponto em que as demandas sociais e de grupos de interesse sufocam o aumento da produtividade, que é o único caminho sustentável para o crescimento econômico. Queremos retomar o crescimento econômico sem truques ilusionistas que não resistem ao teste do tempo? Façamos a reforma tributária e a reforma da previdência que realmente resolvam as distorções de alocação de recursos públicos. Vai acontecer? Não.

A necessária polarização

A palavra “polarização” não é exatamente nova na política. Mas o seu uso intensificou-se de 2018 para cá. É o que podemos observar em uma breve pesquisa no acervo do Estadão (gráficos abaixo), colocando a palavra “polarização” como chave para a busca de notícias. Houve uma explosão do uso do termo desde 2018 e, em pouco mais de dois anos na década de 20, a palavra já apareceu mais do que em toda a década de 90 e anos 2000 somados.

Essa pequena estatística demonstra que a polarização é um fenômeno que foi trazido pelo surgimento de Bolsonaro no cenário político nacional como polo oposto ao PT. De 1994 a 2014, PT e PSDB não protagonizaram uma polarização, mas uma oposição. Qual a diferença?

Na oposição, os dois oponentes têm pautas diferentes, mas reconhecem o direito do oposto existir. Na polarização, por outro lado, esse direito não é concedido. A retórica é de destruição do oponente, não de discordância.

Acredito que a Lava-Jato tenha sido o turning point que levou o país à polarização. Já não bastava fazer oposição ao PT da forma como o PSDB vinha fazendo há 25 anos. Era necessário destruir, eliminar o PT da vida política nacional. Afinal, a organização criminosa que surgiu das denúncias da Lava-Jato podia ser tudo, menos um oponente legítimo. Bolsonaro soube captar esse sentimento majoritário da sociedade brasileira.

Isso já poderia ter acontecido em 2006. O mensalão foi o primeiro grande esquema de corrupção nacional protagonizado pelo PT. Alckmin era o então candidato do PSDB. Lembro de um debate entre os dois candidatos no 2o turno, em que Alckmin tentou usar o mensalão para encostar Lula na parede. Lula, com toda a verve que Deus lhe deu, minimizou o ataque, dizendo que o seu adversário estava ”um pouco nervoso”. Lula estava confortável. O fato de ter chegado até ali já era uma vitória e tanto, graças, em boa parte à pusilanimidade do PSDB, que optou por deixar Lula “sangrar” até as eleições ao invés de patrocinar um pedido de impeachment que tinha boas chances de prosperar. Lembrando que o PT não teve pejo de pedir o impeachment de FHC em seus dois mandatos. O PT polariza, o PSDB faz oposição. Em 2018, o PT encontrou um adversário que também polariza.

Chegamos em 2022, com o mesmo Alckmin cerrando fileiras para destruir um adversário comum.

Sob o manto da “defesa da democracia”, Alckmin se junta ao partido que fez o que pôde para destruir os pilares mesmo das instituições democráticas. Sim, é inegável que PSDB e PT têm afinidades ideológicas. Mário Covas subiu no palanque de Lula em 1989 contra Fernando Collor. Mas isso foi antes do mensalão e do petrolão, o que deixa para Covas o benefício da dúvida. Alckmin é cria de Covas, e repete o gesto de seu mentor 33 anos depois, como se nada tivesse ocorrido em todos esses anos. A história se repete como farsa.

Bolsonaro é, hoje, o personagem que polariza com o PT. Está na frente nas pesquisas em relação a todos os candidatos da chamada “terceira via” justamente por causa disso. No entanto, a sua eventual derrota nas eleições não tirará das páginas dos jornais a palavra “polarização”. Este é um sentimento que veio para ficar em boa parte da sociedade brasileira. Enquanto o PT existir, haverá polarização, porque aprendeu-se que fazer oposição não basta para um partido com essa natureza.