O petróleo é nosso. E será ainda por muito tempo.

Hoje, publiquei um post analisando artigo publicado no Estadão que criticava a intenção do presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, de acelerar os planos de exploração de petróleo enquanto o ouro negro ainda tem algum valor, antes de completarmos a transição energética. Em resumo, o artigo afirma que em menos de 100 meses (até 2030), as emissões de gases de efeito estufa deveriam ser cortados pela metade se o mundo quisesse cumprir os compromissos do Acordo de Paris, e limitar o aquecimento do global em 1,5o C. Nesse contexto, seria um erro estratégico insistir na produção de petróleo, pois seria um produto com os seus dias contados. Como se intenções, pelo fato de serem boas, automaticamente se materializassem.

Por coincidência, hoje tive acesso a um extenso relatório recém-divulgado pelo J.P. Morgan, em que se analisa de maneira bastante completa o atual balanço entre oferta e demanda de petróleo e o prognóstico até o ano de 2030. O relatório do J.P. corrobora a posição da petroleira, pois prevê que não somente o consumo de petróleo não vai diminuir, como vai aumentar até 2030. A previsão é de um aumento de demanda de 7 milhões de barris entre 2019 e 2030. Sem as iniciativas de de-carbonização que estão sendo colocadas em prática, este aumento seria de 10,9 milhões de barris. Um ganho, sem dúvida, mas muito longe de aposentar o petróleo até 2030.

Vejamos, a seguir, os principais pontos desse relatório.

A estimativa de demanda por petróleo até 2030

O petróleo é a principal fonte de energia no mundo hoje, representando 32% do consumo global de energia, seguido pelo carvão (27%) e gás natural (24%). Só por aqui já vemos a dificuldade que enfrentamos: cerca de 83% de toda a energia produzida no mundo depende de combustíveis fósseis. Mas vamos focar no petróleo.

A primeira coluna mostra o valor calorífico de cada combustível (em megajoule por litro), a segunda traz o preço do litro no varejo de cada combustível nos Estados Unidos e a terceira é simplesmente a divisão entre o preço e o valor calorífico: quanto menor, mais barato é o combustível por unidade de energia produzida. Salta aos olhos a diferença entre os combustíveis fósseis e suas contrapartes sustentáveis. No caso de diesel e biodiesel, por exemplo, a diferença é de quase três vezes.

Mas existe uma questão até anterior ao preço: a viabilidade tecnológica de acesso confiável ao fornecimento de energia a um preço razoável. Na tabela a seguir, adaptada do relatório, listamos os diversos usos de energia, quanto representam da emissão de gases de efeito estufa (usaremos, daqui em diante a sigla GHG – Greenhouse Gas), quanto representam da demanda por petróleo e, mais importante, se há um substituto sustentável tecnologicamente viável no horizonte de tempo do estudo (até 2030).

Podemos observar que, tecnologicamente, temos somente três campos onde é possível a troca do uso do petróleo por energias limpas no curto prazo: geração de eletricidade, aquecimento/refrigeração e veículos leves e motos. Estas áreas representam 41,5% da emissão de GHG globalmente. Ou seja, em tese, seria possível cortar em quase metade as emissões se as tecnologias já existentes fossem empregadas extensivamente nessas três áreas. No caso da fabricação de produtos, em que combustíveis fósseis são empregados diretamente na movimentação de máquinas, até é possível trocar por eletricidade, mas o custo é tão mais alto, que o J.P. coloca como “tecnologia não disponível”, a menos que haja um imposto sobre emissões, o que nivelaria o custo por cima. No caso de veículos pesados, navios e aeronaves, nem isso é possível, pois não há tecnologia no horizonte.

Essa tabela guarda um paradoxo. Cortar GHG significa, na prática, trocar combustíveis fósseis por eletricidade. No entanto, a geração de eletricidade, hoje, representa cerca de 27% da emissão de GHG. Na medida em que mais setores adotarem a eletrificação, se a origem da eletricidade não for limpa, haverá apenas uma transferência de emissão de GHG de um setor da economia para outro, talvez com algum pequeno ganho, mas longe de ser suficiente. Portanto, é essencial que a geração de eletricidade tenha como origem uma fonte limpa e, tão importante quanto, confiável. Apesar de o relatório do J.P. colocar a geração de eletricidade como sendo uma tecnologia economicamente disponível, o aumento do seu uso pela de-carbonização de outros setores coloca um desafio adicional. Somente o desenvolvimento do hidrogênio verde ou o uso extensivo da energia nuclear, que não abordaremos aqui porque o foco é no uso do petróleo, poderá resolver essa equação. Mas esse desenvolvimento não está no horizonte até 2030.

Além disso, uma parte do uso industrial do petróleo não está relacionada com energia, mas com insumo. É o caso da indústria de plásticos, asfalto e outros produtos que usam o petróleo como matéria-prima. Assim, mesmo na hipótese de substituição do petróleo por energia elétrica na indústria, o uso do petróleo neste setor não será zero, assim como a emissão de GHG no processo produtivo.

Considerando todos esses fatores, o relatório do J.P. estima que a demanda por petróleo deve crescer globalmente em 7 milhões de barris, tendo como base o ano de 2019. Os maiores contribuidores para este aumento estão na tabela a seguir:

Note que há uma previsão de queda de uso gasolina equivalente 1,5 milhão de barris/dia, em função do aumento do uso de carros elétricos, que discutiremos em seguida.

Dos 7 milhões de barris adicionais de demanda, os emergentes serão responsáveis por 11,6 milhões, ao passo que os desenvolvidos reduzirão em 4,6 milhões de barris. Este fato é muito importante. Sempre que ouvimos sobre alguma experiência exitosa em algum país da Europa sobre eletrificação de frota (e veremos o case da Noruega mais à frente), podemos ter a impressão de que estamos às portas de uma grande virada global no uso de combustíveis fósseis. Nada mais longe da realidade. A Europa é um caso à parte, inclusive quando comparada com os Estados Unidos. Lá, há uma combinação única entre governos realmente comprometidos com as metas do clima, população mais consciente e com grande poder aquisitivo. Essa combinação não se repete, por enquanto, em nenhum outro lugar do mundo. Portanto, é sempre bom interpretar com um grama de sal qualquer notícia de de-carbonização vinda da Europa, pois não se trata de uma tendência de curto prazo para o restante do planeta.

Eletrificação de veículos leves

A partir deste ponto, o relatório do J.P. entra nas premissas utilizadas em cada setor para a redução do consumo de petróleo. No caso de veículos leves, temos a frente mais promissora. Aqui, vários governos já anunciaram metas de proibição de vendas de veículos movidos a combustíveis fósseis em algum ponto no futuro. Na Europa, região mais adiantada no processo, cerca de 39% dos veículos vendidos foram elétricos ou híbridos em 2021. Na China, este número está em 21% e nos Estados Unidos, em 11,6% agora em 2022, até fevereiro.

Temos aqui uma frente que, de fato, tem avançado de maneira cada vez mais rápida. O único problema é que, apesar de demandar 28% do petróleo utilizado no mundo, esse setor é responsável por somente 7,5% da emissão de GHG. Ou seja, ajuda, mas não é a bala de prata que alguns pensam ser. O caso da Noruega é emblemático.

A Noruega tem o programa de eletrificação de frota mais avançado do mundo. Graças a incentivos governamentais dos mais diversos, cerca de 21% da frota norueguesa de veículos leves é elétrico, contra uma média global de apenas 3,6%. No entanto, apesar desse avanço significativo, a demanda por petróleo vem crescendo a 6% ao ano desde 2016, e atingiu novo recorde em 2021. O consumo de GLP cresceu mais de 40% no país desde 2016, mais que compensando a queda no consumo de gasolina, que de fato ocorreu.

A substituição da frota é bem mais lenta do que sugere o número de veículos vendidos anualmente. Como vimos, atualmente, apenas 3,6% da frota global de veículos leves, estimada em um bilhão, é de veículos elétricos. Estima-se que esse número suba para 20% até 2030, mesmo nível da Noruega hoje. Considerando o crescimento vegetativo da frota nesse período, o número de veículos movidos a combustíveis fósseis será praticamente o mesmo daqui a 8 anos, ou seja, um bilhão. A diminuição do uso do petróleo para este fim virá mais da mistura de biocombustíveis à gasolina do que pela diminuição da frota. Mas essa mistura tem uma limitação dada pela capacidade de produção dos biocombustíveis. Ou seja, a queda do uso do petróleo por veículos leves se reduzirá, mas muito marginalmente.

Eletrificação de veículos pesados, aeronaves e navios

A viabilidade de eletrificação desses veículos é inversamente proporcional ao seu peso. Nesse sentido, dentre os veículos pesados, os ônibus são os candidatos mais naturais a serem eletrificados, pois levam cargas mais leves. Da mesma forma, os pequenos caminhões urbanos. Com os caminhões de grande porte, por outro lado, a dificuldade é maior. Para que um caminhão possa rodar 1.000 km sem recarregar, é necessária uma bateria de 14 toneladas. Como o caminhão em si pesa 18 toneladas e a carga máxima permitida nas estradas americanas é de 40 toneladas, sobrariam apenas 8 toneladas livres para carga, contra 22 toneladas para caminhões com motor a combustão. No caso de uma viagem de 1.500 km, a bateria pesaria 22 toneladas, simplesmente zerando o espaço para carga. Por isso, a eletrificação de caminhões pesados, por enquanto, é inviável economicamente. Sendo assim, o caminho para a de-carbonização de caminhões no curto prazo passa pelo desenvolvimento de biocombustíveis. Mas, como vimos, os biocombustíveis ainda são mais caros do que os combustíveis fósseis, e sua adoção ocorre somente por mandato legal. Para além de 2030, a solução deverá ser o hidrogênio verde.

No caso de aeronaves o problema é ainda pior, e certamente não passa por eletrificação. Se o combustível fóssil representa algo entre 20% e 40% do peso da aeronave, uma bateria para gerar a energia equivalente deveria pesar 30 vezes o peso da aeronave. A IATA tem um plano de substituir combustíveis fósseis por uma mistura de biocombustível (principalmente) e hidrogênio (secundariamente) até 2050. Mas até 2030, nada deve acontecer de relevante. O mesmo se pode dizer dos combustíveis para navios.

Para que o plano da IATA seja cumprido, a produção de biocombustível de aviação deve crescer dos atuais 100 milhões de litros para 450 bilhões de litros produzidos anualmente. No caso do hidrogênio, além dos problemas de produção, deve-se encontrar uma solução de engenharia para os aviões, pois o tanque para o hidrogênio deve ser 4 vezes maior do que atual tanque para combustível fóssil. Fora o problema da própria produção do hidrogênio, que consome uma quantidade grande de energia. Hoje, 99% da energia usada para produzir hidrogênio tem origem em combustíveis fósseis. No futuro, mas não até 2030, espera-se que a produção de hidrogênio utilize principalmente fontes limpas.

Processos industriais

Cerca de 31% da emissão de GHG e 28% da demanda por petróleo vem de processos industriais. Desses 28%, cerca de metade vai para a indústria petroquímica, principalmente na produção de plásticos. Não temos, hoje, como produzir plástico sem emitir carbono. A reciclagem poderia ser uma saída, mas tem suas limitações. Hoje, apenas 9% de todo o plástico produzido no mundo é reciclado. Isso acontece porque reciclar plástico é caro, e sua qualidade se deteriora rapidamente, permitindo apenas uma ou, no máximo, duas reciclagens.

Outros usos industriais do petróleo incluem a produção de ferro, aço e cimento, que demandariam soluções de eletrificação que não existem no momento e tampouco estão no horizonte.

Uso residencial e na agricultura

O uso residencial refere-se principalmente ao aquecimento de casas e apartamentos no inverno, que usam combustíveis fósseis no inverno. O relatório do J.P. nos informa que, na União Europeia, 36% do total de GHG emitido vem dos sistemas de aquecimento, sendo que a média global é de 7%. Não é à toa que os governos da região vêm emitindo regulamentações para aumentar a eficiência do uso de energia residencial, enquanto a eletrificação não é possível.

Na agricultura, que representa 19% das emissões de GHG, as soluções são ainda muito incipientes, enfrentando os mesmos problemas dos caminhões de grande porte.

Geração de eletricidade

A geração de eletricidade é um setor onde a substituição do petróleo está mais adiantada, mas ainda há um longo caminho a seguir. Nesse setor, a demanda por petróleo deve cair até 2030, mas o setor representa apenas 5% da demanda global por petróleo atualmente.

Conclusão

Aparentemente, o presidente da Petrobras tem razão ao apontar para a aceleração da produção de petróleo no curto prazo. O seu consumo deve continuar crescendo nos próximos anos, e o seu declínio deve estar ainda a uma geração de distância, no mínimo. Se isso significa que as mudanças climáticas terão consequências mais catastróficas, então é melhor já começarmos a pensar em um plano B para enfrentá-las.

Autoritarismo do bem

Um abaixo-assinado publicado hoje no Estadão (na verdade é um artigo, mas tem tantos autores que virou abaixo-assinado) dá um conselho à Petrobras: ao invés de investir em uma fonte de energia que será abandonada em breve, a empresa deveria investir em “alternativas neutras em carbono”.

O abaixo-assinado é uma reação a um artigo do presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, em que se defende a aceleração da exploração do pré-sal enquanto o petróleo ainda tem algum valor. O interessante é que tanto o abaixo-assinado quanto o artigo de Silva e Luna concordam no essencial: um dia, o petróleo deixará de ser uma fonte importante de energia. A divergência está no timing: para os abaixo-assinados, “em menos de 100 meses” as emissões de gases de efeito estufa terão de ser cortadas pela metade para que tenhamos alguma chance de limitar o aquecimento global em 1,5o, ao passo que, para o presidente da Petrobras, ainda teremos um bom tempo antes que isso aconteça, tempo suficiente para ganhar algum dinheiro com o petróleo do pré-sal.

Não vou entrar no mérito de quem está certo, mas esse artigo é, no mínimo, estranho. Será que os abaixo-assinados estão realmente preocupados com o futuro da Petrobras enquanto empresa e estariam dando um conselho de amigo? Pouco provável. Parece mais uma tentativa de empurrar uma profecia auto-realizável: sem produtores de petróleo daqui a alguns anos, o consumo cairá por falta de oferta, não de demanda. Ou seja, por trás desse “aviso amigo” de que a demanda despencará no futuro, está a tentativa de reduzir a oferta. Nice try, abaixo-assinados.

Além disso, soa patético o pedido de que a Petrobras se dedique à produção de “energias limpas”. É um pouco como pedir para um ortopedista realizar uma cirurgia cardíaca. “Mas não é tudo médico?”, perguntará o leigo. Com essa “proposta”, os abaixo-assinados demonstram a sua completa ignorância de como funciona o mercado de energia. Em determinado trecho, é mencionado que a empresa chegou a investir em etanol e biodiesel anos atrás, mas “deixou as renováveis de lado para focar no petróleo”. Fica difícil de saber de onde tiraram isso. A Petrobras tem papel marginal na produção de etanol e biodiesel, indústrias dominadas pelos grandes conglomerados do agronegócio, como Cargill e Raízen. O máximo que a petrolífera faz é comprar o etanol e o biodiesel e misturar na gasolina e no diesel. E só faz isso por determinação legal, não por estratégia de negócio.

O que se tem aqui é uma tentativa de introduzir um elemento estranho ao balanço da demanda/oferta de petróleo: o “custo ambiental”. Diminuindo a oferta artificialmente, teríamos um novo equilíbrio, com o preço do petróleo nas alturas (porque a demanda continuará lá) viabilizando fontes alternativas de energia. O resultado será menos gases de efeito estufa e energia bem mais cara do que a que temos hoje. Claro, as energias alternativas ficarão mais baratas com o tempo. Mas o caminho para o céu é a morte, e por mais que gostemos da ideia do paraíso, ninguém está a fim de morrer para chegar lá. Se energias alternativas mais baratas estivessem no horizonte, não estaríamos tendo essa conversa.

Esse abaixo-assinado seria cômico se não fosse trágico. Se a Petrobras seguisse o seu conselho, passaríamos a depender cada vez mais de petróleo importado. E, na heróica hipótese de que as metas para o clima fossem cumpridas, teríamos um petróleo cada vez mais caro no mercado internacional. Apostar que ”daqui a menos de 100 meses” teremos energia limpa a preços competitivos é jogar com a sorte dos mais pobres, que dependem de energia barata para sobreviver. Os abaixo-assinados dirão que o meteoro do aquecimento global está se aproximando, e não adiantará nada ter energia barata se todos estivermos mortos sob os escombros do seu impacto. É uma forma de ver a coisa. Fariam melhor, neste caso, se voltassem suas baterias para promover a diminuição da demanda. Atacar a oferta é uma forma autoritária de atingir o seu objetivo, na medida em que se colocam como aqueles que sabem o que é melhor para a humanidade, sem se dar ao trabalho de convencer a humanidade sobre a sua verdade.

Quem vai pagar a conta?

Existe energia suja, muito suja e imunda. A energia gerada a partir da queima do carvão enquadra-se nessa última categoria. Reportagem de página inteira hoje no Valor nos faz saber que o uso do carvão bateu o recorde histórico de uso em 2021. Mesmo os EUA de Biden, o amigo do clima, queimou mais carvão em 2021 do que os EUA de Trump, o arqui-inimigo do clima, havia queimado em 2019. Só não vou gargalhar porque rir em velório é de mau tom. Agora, a Europa procura desesperadamente alternativas ao gás russo. Adivinha no colo de quem a Europa vai cair. E tome carvão.

A reportagem nos conta que novas plantas de produção de carvão não estão recebendo financiamento, em função de exigências ESG. Resultado: o preço do carvão foi para as alturas (assim como, de resto, os preços dos combustíveis fósseis de maneira geral). A transição para energias limpas (solar e eólica principalmente) vem sendo exasperantemente lenta. Há claramente um problema de sincronismo. Resultado: energia (bem) mais cara no curto prazo.

Energia cara não é, de modo algum, popular. Não por outro motivo, governos em todo o mundo buscam formas de subsidiar os combustíveis fósseis neste momento. Na mesma reportagem, o secretário-geral da ONU, António Guterres, chama de “loucura” essa “corrida para os combustíveis fósseis”. Gosto de pensar no secretário da ONU proferindo essas graves palavras em seu gabinete na ONU com calefação obtida com a queima de carvão. O preço pode subir quanto for, a calefação na ONU estará garantida. O mesmo não se pode dizer de seus quase vizinhos do Bronx.

O problema da transição energética é que se trata de algo que tem um custo. E esse custo não é dos governos ou mesmo das empresas. Esse custo é de quem paga pela energia. Cúpulas do clima sempre terminam repletas de promessas. Só falta avisar quem vai pagar por elas.

A última palavra é a minha

Entrevista com especialista que condena o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras. Muito cedo ainda, diz a especialista, sem dar uma pista de quando exatamente seria o momento para isso.

O que me chamou a atenção foi a citação da Coreia do Sul como contra-exemplo. Apesar de distribuírem máscaras de boa qualidade para a população, a baixa taxa de vacinação teria posto tudo a perder.

Bem, está tudo errado. Em primeiro lugar, achei estranha a afirmação de que a Coreia estaria atrasada na vacinação a essa altura do campeonato. Fui checar. Na verdade, o país é um dos mais adiantados, conforme podemos ver no gráfico abaixo. Além disso, é matematicamente impossível, em um país com uma grande população de idosos como a Coreia, vacinar 87% da população sem vacinar os idosos.

Se houve vacinação, decorre que a distribuição de máscaras em si aparentemente não foi suficiente para evitar um grande surto na Coreia. Então temos três falhas no raciocínio da especialista, uma factual e duas de lógica:

1) a factual é a informação sobre a vacinação;

2) a primeira falha lógica se refere à baixa vacinação na Coreia como causa do surto. Ora, se a vacinação lá estivesse baixa, o problema não estaria na falta de máscaras, mas na falta de vacinação. Um país como o Brasil, com alta taxa de vacinação, poderia, em determinado momento, abrir mão das máscaras. A referência à baixa vacinação da Coreia, na verdade, reforça o case pelo abandono das máscaras em países com alta taxa de vacinação;

3) a segunda falha lógica é afirmar que a Coreia distribui máscaras de excelente qualidade para toda a população. Se isso for verdade e, mesmo assim, o país enfrenta um surto, isso depõe contra as máscaras, não a favor.

Mas essas falhas de argumentação não são nem o ponto mais contraditório da matéria. A grande questão é que uma decisão tomada com base no parecer de um comitê científico está sendo contestada por especialistas. Fica parecendo que a ciência tem a última palavra, desde que eu concorde com ela.

Menos narrativa, mais jornalismo

Meu amigo Carlos Alberto Di Franco escreve artigo no Estadão criticando seus colegas jornalistas por criarem narrativas anti-governo ao invés de se aterem aos fatos. Para tanto, cita uma série de dados econômicos supostamente objetivos, levantados pelo também jornalista José Fucs, para corroborar a sua tese, a de que não estamos caminhando para o abismo.

Parafraseando a piada, perco o amigo mas não perco a crítica. O que vai nesse artigo não passa de narrativa bolsonarista. Escrevi acima “supostamente objetivos” para qualificar os dados apresentados no artigo porque não existe isso de “dados objetivos”. Existem os dados e sua interpretação dentro de um contexto. Infelizmente, da forma como foram apresentados, não passam de narrativa. Vejamos.

Crescimento: os dados de crescimento de 2021 são apresentados como prova de que o país está indo de vento e popa, calando a boca dos críticos. Nada mais fora do contexto. Há várias formas de se interpretar esse número, e analisá-lo a seco da forma como foi feito é a única que lhe empresta algum mérito. O número é baixo comparado com o que se esperava no início do segundo semestre do ano passado, é baixo se comparado com o crescimento de outros emergentes e é baixo se analisarmos o conjunto dos anos 2020-2021. O artigo continua, afirmando que o crescimento vai “surpreender” esse ano. Bem, se crescer 1% já será uma surpresa positiva, ainda que seja um número ridiculamente baixo. Os números mostram que esse governo não conseguiu tirar o país do baixo crescimento econômico. Os números são catastróficos? Não, apenas medíocres.

Inflação: a queda da inflação programada para esse ano é destacada para mostrar que a tese dos catastrofistas de plantão não se sustenta. Sim, verdade, ainda que os 5,6% citados já estejam ultrapassados pelos choques produzidos pela guerra na Ucrânia. Mas, como eu disse, há formas e formas de mostrar os números. Por exemplo, eu poderia dizer que já faz 6 meses que a inflação está rodando acima de 10% ao mês, ao passo que, no governo Dilma, a inflação rodou acima de 10% somente durante quatro meses. Objetivo? Sim. Quer dizer alguma coisa? Não. O fato é que as pessoas estão sentindo a carestia no bolso, e não há narrativa que dê jeito nisso.

Contas Públicas: talvez seja este o item em que mais brilha a narrativa bolsonarista. Afinal, produzimos superávit primário em 2021 contra todas as expectativas! Como se esse número não tivesse sido alcançado na base de um congelamento de salários insustentável no tempo e uma inflação bem acima das expectativas, que inflou as receitas no ano. O número em si é positivo, mas falta muito contexto para entendê-lo. Curiosamente, este é o único item para o qual não se arrisca uma previsão para este ano. Sem falar no bombardeamento do teto de gastos.

Em uma coisa o meu amigo Di Franco tem razão: não é nenhuma catástrofe, nada comparável aos piores anos do governo Dilma Rousseff. Mas também não se trata de nada de que se possa ter orgulho. Minha sugestão é, em uma próxima vez, se quiser defender este governo de maneira objetiva, destacar as realizações microeconômicas, com a aprovação de diversos marcos regulatórios que irão, ao longo do tempo, aumentar a produtividade do país. Se for para citar números macroeconômicos fora do contexto, Lula tem números muito melhores para apresentar.

A mágica dos números

Já comentei aqui algumas vezes a mágica que se pode fazer com números. Basta mudar a escala, e um número pequeno parece grande e vice-versa. Foram exemplos o número de óbitos por Covid na Índia em determinado momento (um óbito a cada 3 segundos, o que não significava nada para um país como a Índia), ou o desmatamento de centenas de campo de futebol na Amazônia, o que também não significa muita coisa.

Pois bem. Notinha do Estadão usa esse velho truque para passar a impressão de que o livro de Guilherme Boulos está bombando de vender. “Um livro a cada 2 minutos”, de fato, parece um ritmo alucinante. Nesse ritmo, seriam 260 mil livros por ano, o que faria de Boulos um dos maiores best sellers do mercado editorial brasileiro.

A pegadinha está nas palavras “na primeira hora”. Foram 30 livros na primeira hora. Dito dessa maneira, não parece lá muito impressionante. Eu mesmo devo ter vendido algo parecido na primeira hora depois de ter anunciado meu livro aqui no Facebook e nos meus grupos de WhatsApp. A primeira hora é dos amigos que têm piedade do autor e compram não somente para si, mas para presentear os parentes. Na verdade, o primeiro dia é o melhor dia de vendas para o livro de um autor desconhecido. O teste de fogo é do segundo dia em diante. É sintomático que o jornalista não tenha sequer mencionado as vendas do primeiro dia, mas somente as da primeira hora, e usando um truque manjado.

A única eleição de destaque de Boulos foi a última pela prefeitura de São Paulo, quando chegou ao segundo turno contra Bruno Covas. Perdeu por 60 a 40, mas não pela falta de apoio de jornalistas como o autor da nota, que não medem esforços para inflar a bola do novo queridinho das esquerdas. Nem que, para isso, tenha que usar truques manjados de estatística.

Comemorando a vitória

Ontem fui a um bar, desses com mesinhas na rua, para o happy hour semanal com minha esposa. Foi a primeira vez, desde março de 2020, que saímos na rua e entramos no bar sem precisar usar máscaras.

O bar e a rua estavam fervilhando de gente. Grupos de amigos e casais em sua vida normal, curtindo o início do fim de semana. Mas havia uma energia diferente. Lembrei da foto que ilustra este post.

Trata-se, talvez, da foto mais icônica da história da fotografia. O regozijo transborda da foto e o beijo apaixonado do marinheiro na enfermeira marca a alegria de ter deixado uma guerra terrível para trás.

Tive a mesma sensação ontem. Deixar de usar máscaras marca o fim de uma guerra, em que ficamos enfurnados em casa, longe da família e dos amigos, com as ruas vazias e o comércio e escolas fechados. Uma guerra triste, em que muitos entes queridos foram levados pela doença. Mas uma guerra que ficou para trás, graças ao engenho humano, que conseguiu desenvolver vacinas em tempo recorde. As pessoas na rua, sem máscaras, estavam como que extravasando essa alegria.

Os realistas de plantão dirão que a guerra ainda está longe de acabar. Casos aumentam na Europa e na Ásia, e é questão de tempo para que aumentem aqui também. Sim, isso é verdade. Agora, imagine que um realista desse tipo batesse no ombro do marinheiro e interrompesse o beijo apaixonado, para falar que a guerra, na verdade, ainda não tinha terminado. Veríamos ainda um muro sendo erguido em Berlim, a crise dos mísseis de Cuba, as guerras da Coreia, do Vietnam, do Afeganistão, do Iraque, da Ucrânia, as torres gêmeas…

O realista está correto. A guerra nunca acaba de verdade. Mas há momentos em que é preciso comemorar. As máscaras são um símbolo da guerra contra a Covid, e a sua dispensa é um sinal de vitória. A mensagem é que deixamos o pior para trás, e vamos conviver com a doença como convivemos com muitas outras, na base da vacina e do tratamento. Definitivamente, não voltaremos ao quadro que vivemos em 2020 e parte de 2021. Poderemos lutar em outras guerras. Mas essa está vencida.

PS.: aqui não vai absolutamente nenhuma crítica a quem deseja e acha importante continuar usando máscara. Cada um faz a sua avaliação particular de risco e benefício, e toma a decisão que melhor se adequa a essa avaliação. O que inclui também respeitar quem toma a decisão de não usar máscara, porque fez a mesma avaliação e chegou a uma conclusão diferente.

O paradoxo que assombra o governo Bolsonaro

Roberto Castelo Branco foi escolhido como presidente da Petrobras por Paulo Guedes. Um dos chamado “Chicago Oldies” – assim como Guedes, egresso da Universidade de Chicago – a escolha de Castelo Branco servia para demonstrar que o Brasil estava entrando em uma nova era de racionalidade na economia e no trato da coisa pública. O novo presidente era a garantia de que a Petrobras não seria mais utilizada como instrumento desenvolvimentista, nem tampouco para a implementação de políticas demagógicas às expensas de seus acionistas minoritários.

Pois bem. Castelo Branco não sobreviveu ao primeiro choque de preços do petróleo, e foi defenestrado por Bolsonaro em abril de 2021. A acusação era de que o Chicago Oldie não tinha “sensibilidade social” e, além disso, fazia o que bem entendia antes de conversar com o presidente da República. Como se a Petrobras não fosse uma empresa de economia mista regida por estatutos internos bastante rígidos. Aliás, a não interferência da presidência da República era exatamente o que diferenciava o novo governo do governo do PT. Mas, segue o jogo.

Castelo Branco caiu e, em seu lugar, Bolsonaro nomeou um militar de sua confiança (era, pelo menos, o que ele pensava), o ex-presidente da Itaipu Binacional, general Joaquim Silva e Luna. O mercado reagiu mal, pois precificou a volta da intervenção do Planalto na empresa. Estavam, o mercado e Bolsonaro, redondamente enganados. Silva e Luna tem se mostrado um liberal tão ou mais ortodoxo do que seu antecessor. As reclamações de Bolsonaro e sua entourage são um deja vu (estou abusando do francês hoje), parece que estamos vivendo abril de 2021 com outro personagem, até os termos usados são os mesmos.

A questão, agora, é saber o que Bolsonaro pretende fazer. Vai substituir Silva e Luna por alguém que, finalmente, ”converse com o presidente”? Ou continuará com Silva e Luna, apenas marcando sua posição em entrevistas como se fosse mais um brasileiro que não tem nada a ver com isso? Substituir Silva e Luna por outro liberal que vai “respeitar a lógica econômica da empresa” não resolveria nada.

O grande paradoxo que assombra o governo Bolsonaro (e não é só na questão da Petrobras) é ter um governo liberal liderado por um demagogo populista. Claro que os preços dos combustíveis são um problema político sensível, e o presidente da República não pode deixar de se posicionar a respeito. Isso é uma coisa. Outra coisa é demonizar a Petrobras ou o seu presidente por decisões que qualquer empresa privada tomaria no mesmo contexto. A não ser que se considere a Petrobras como um puxadinho do governo. Mas, nesse caso, já não se trataria de um governo liberal. Então, temos uma empresa que age de acordo com o perfil liberal e é criticada pelo presidente que lidera um governo auto-intitulado liberal. Esta é a esquizofrenia.

De qualquer modo, há que se reconhecer que estamos a anos-luz do que os governos do PT fizeram com a empresa, e prometem fazer novamente se forem eleitos. É melhor um governo esquizofrênico que reclama das suas próprias virtudes do que outro com discurso coerente mas terrivelmente equivocado.

Enquanto isso, na Sala da Justiça…

Super-Homem: amigos, temos uma emergência. O nosso presidente Mito está sob ataque desde que Despero aumentou os preços dos combustíveis.

Robin: mas Super-Homem, o Despero não foi colocado na Petrobras pelo próprio presidente?

SH: Sim, menino-prodígio. Mito e Despero foram colegas de escola, e ele acreditava que poderia contar com a lealdade do velho amigo. O nosso Mito é muito ingênuo. É por isso que estamos aqui, para defendê-lo de suas escolhas desastrosas.

Mulher-Maravilha: e agora, o que vamos fazer?

Aquaman: por que não acabamos com a raça do Despero e forçamos a Petrobras a diminuir os preços?

SH: Não é fácil. A Petrobras é defendida pela Liga da Injustiça, que só pensa em seus lucros. E o Mito não quer briga com esse pessoal.

Batman: tive uma ideia. Vamos à raiz do problema. Podemos arrancar Prometheus do poder na Rússia. A guerra acaba, os preços do petróleo derretem e a Petrobras pode baixar os preços dos combustíveis.

Robin: Santa astúcia, Batman!

SH: Não, Batman. Seria muito arriscado, ele é defendido por uma tropa de Marcianos Brancos. Além disso, o Mito tem uma quedinha por Prometheus, não sei se convém tirá-lo do poder.

Mulher-Maravilha: então vamos lançar mão de nossa especialidade, a bomba de fumaça.

SH: como seria isso, Mulher-Maravilha?

MM: Simples. Precisamos encontrar uma escorregada de algum inimigo do Mito. Jogamos isso nas redes, lideramos um linchamento moral e o pessoal esquece os preços dos combustíveis.

SH: parece uma boa ideia, Mulher Maravilha. Mas quem? Acho que já terminou a lista de inimigos do Mito que jogamos na lama das redes.

MM: Aí é que você se engana, Super-Homem. Sempre tem mais um que apoiava o MIto e depois se tornou um traíra. Estava pensando aqui no Darkseid.

SH: Sim, é verdade! Darkseid era um entusiasta do Mito, mas passou a criticá-lo sem dó nem piedade. Mas o que temos contra ele?

Batman: enquanto vocês falavam, pesquisei na minha bat-biblioteca eletrônica, e encontrei a cena de um filme de 5 anos atrás que Darkseid roteirizou, em que o protagonista é pedófilo.

MM: Uau! É disso que precisamos!

Todos assistem atentamente ao achado de Batman. Com exceção de Robin, que não tem idade para isso.

SH: Mas esse cara é o vilão da história. O fato de ser pedófilo depõe contra a pedofilia, não a favor. Além disso, se fosse assim, todo filme em que ocorrem assassinatos ou gente fumando drogas poderia ser considerado uma apologia aos assassinatos ou às drogas.

MM: Super-Homem, você já deveria saber que isso pouco importa. As mães preocupadas com a saúde moral dos seus filhos e que não conseguem controlar o que eles veem no Netflix vão reagir à palavra “pedofilia” como cães de Pavlov. Ninguém vai assistir ao filme pra conferir do que se trata. Além disso, você sabe como essas coisas funcionam, existem outros 3.451.890 filmes com conteúdos impróprios na Netflix, mas quando começarmos a nossa campanha bomba de fumaça, esse filme, que ninguém assiste há muitos anos, se tornará o principal problema moral do país.

SH: Estou começando a gostar da ideia. Mas vejo um problema exatamente nisso: esse filme tem 5 anos, vai fazer sentido ressuscita-lo agora? Não vai parecer estranho?

MM: Ora, Super-Homem, até parece que você é neófito nessas campanhas. Tanto faz, o que importa é a palavra “pedófilo” junto da palavra “Darkseid”. O resto é detalhe a que ninguém presta atenção.

Batman: Além disso, não sei se vocês notaram, o roteiro é do Darkseid, mas o ator da cena é o Starro, inimigo bem conhecido do Mito. Essa combinação é explosiva.

SH: Sim, concordo. Mãos à obra, então, amigos da Liga da Justiça!

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Na verdade, Darkseid estava disfarçado de Mulher-Maravilha na reunião da Liga da Justiça. Seu plano era promover o seu filme, no que teve estrondoso sucesso.

A Argentina, o FMI e o sonho do financiador perpétuo

O economista Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia e um dos mais famosos defensores de teorias desenvolvimentistas no mundo, escreve artigo publicado no Valor Econômico de 14/03, comemorando o novo acordo entre a Argentina e o FMI. O economista elogia a nova postura do FMI, que estaria privilegiando o crescimento econômico ao invés da costumeira austeridade para resolver o problema da dívida argentina. Segundo o artigo de Stiglitz, a austeridade se mostrou um veneno que somente piorou a vida do paciente. Agora, a nova abordagem tem muito mais chance de sucesso por não ignorar o componente político, pois atende às necessidades dos argentinos mais pobres.

Vamos começar pelo começo. Tanto economistas do mainstream quanto os desenvolvimentistas vão concordar que não é possível viver eternamente em déficit, a não ser que se encontre um financiador benévolo que cubra as necessidades de caixa sem contrapartidas. Ou, o que é mais comum, que se imprima dinheiro (orçamento monetário) para cobrir o déficit, gerando inflação. O que difere ortodoxos de heterodoxos é como resolver o problema do déficit eterno. Os ortodoxos defendem a redução de gastos. Já os desenvolvimentistas acreditam que o déficit deve ser coberto com as receitas geradas pelo crescimento econômico. E, para fomentar o crescimento econômico, é preciso gastar mais, não menos. Vamos explorar um pouco essa ideia.

Imagine que um país tenha um déficit primário (antes do pagamento dos juros) de 3% do PIB. Este déficit, por construção, não está sendo utilizado para fomentar o crescimento econômico pois, se estivesse, em tese, estaria gerando os recursos para o fechamento desse mesmo déficit. Como o déficit se repete ano após ano, claramente não está funcionando como indutor do crescimento. Se estivesse, repito, o déficit estaria fechando. Então, das duas uma: ou este déficit de 3% deveria ser usado para fomentar o crescimento econômico, ou o déficit deveria ser aumentado para fomentar o crescimento econômico. Manter o déficit em 3% significa retirar recursos de algum lugar para direcionar ao fomento do crescimento. Mas isso significa encontrar gastos estatais que podem ser cortados, o que normalmente esbarra na preservação de “direitos adquiridos” ou em cortes de programas sociais. Como isso geralmente é politicamente inviável, resta aumentar o déficit. Digamos, então, que o déficit seja aumentado de 3% para 4%, e esse 1% adicional seja usado em programas estatais de fomento ao crescimento. Estes programas teriam um “efeito multiplicador”, que gerariam para a sociedade mais do que os 1% investidos. No caso, teriam que gerar 4 vezes mais, para pagar o 1% de déficit adicional mais os 3% de déficit originais. Haja multiplicação dos pães! Poderíamos aumentar ainda mais o déficit, o que diminuiria o efeito multiplicador necessário para que o plano desse certo. Mas aí esbarraríamos em outra questão: a eficiência do investimento estatal.

Para que o esquema todo funcionasse, seria necessário que o governo investisse o déficit em empreendimentos com um retorno excepcional. Sabemos, no entanto, que a eficiência dos investimentos feitos por governos é prejudicada por escolhas políticas que se sobrepõem às escolhas técnicas, falta de agilidade em função das amarras típicas do uso do dinheiro público e corrupção. Portanto, e é essa experiência que temos de programas como o PAC, FIES, fomento da indústria naval e de sondas petrolíferas, campeões nacionais e uma longa lista de etceteras, o que normalmente temos é um multiplicador negativo. Em outras palavras, investimentos governamentais normalmente queimam dinheiro ao invés de multiplicarem dinheiro. Uma boa parte da recessão que nos assolou no biênio 2015/16 teve como origem os investimentos desenvolvimentistas dos anos anteriores, que cobraram o seu preço. Claro, os desenvolvimentistas dirão que o culpado pela recessão foram os esforços ortodoxos feitos em 2015, eliminando gastos que cortaram o oxigênio do crescimento econômico. Mas nem Dilma Rousseff, a rainha dos desenvolvimentistas, aguentou a cobrança dos credores que batiam à porta exigindo taxas de juros maiores se algo não fosse feito. Os credores não costumam entender a lógica do multiplicador. Sigamos.

Existe um pequeno elemento que normalmente é esquecido nas propostas dos desenvolvimentistas: a inflação. Stiglitz cita a inflação “en passant”, concedendo que “pode ser um problema para o funcionamento de uma economia de mercado”.

“Pode ser um problema”, vejam só.

A inflação, como sabemos, é o imposto mais perverso que existe, pois corrói a renda das pessoas na proporção inversa de sua riqueza. Não se trata somente do bom funcionamento dos mercados, que também é o caso. Trata-se de uma questão de justiça social, defendida com tanto denodo pelos desenvolvimentistas. Déficits são inflacionários, investimentos governamentais malfeitos são inflacionários. Não é à toa que a inflação seja invariavelmente o preço cobrado pelas políticas desenvolvimentistas. Mas este é somente um detalhe, tratado “en passant” nesse tipo de proposta. A Argentina tem a quarta maior inflação do mundo, cerca de 50% ao ano, perdendo somente para Venezuela (outra campeã de políticas desenvolvimentistas), Zimbabwe e Sudão.

Voltemos ao novo acordo com o FMI. Este acordo é resultado de uma renegociação do acordo fechado pelo ex-presidente Maurício Macri em 2018, que por sua vez foi fechado para cobrir os empréstimos tomados no exterior para fazer frente ao duplo déficit fiscal e de conta corrente do país, pois o governo Macri se recusou a usar os instrumentos heterodoxos (principalmente imprimir dinheiro) para fechar a conta. Como o programa de austeridade de Macri não funcionou (os desenvolvimentistas dirão que nunca funcionam, os ortodoxos dirão que foi muito pouco, muito tarde), Macri teve que recorrer ao FMI. E, agora, estamos em meio à renegociação dessa dívida. A Argentina pretende usar o dinheiro do novo acordo para pagar o serviço da dívida com o próprio FMI e cobrir o déficit fiscal. A novidade está nas condicionalidades, muito mais leves do que no acordo anterior. Por exemplo, no campo fiscal, existem metas de diminuição do déficit primário ao longo do tempo, mas garantindo um “crescimento real das despesas” de modo a permitir o investimento em infraestrutura e ciência e tecnologia (vide carta de intenções, item 12). São várias outras “condicionalidades” que condicionam pouco. E, como cereja do bolo, a inflação está sendo controlada pela assinatura de um acordo com mais de 150 empresas para garantir aumento de preços no máximo de 2% ao mês em produtos básicos (item 21 do mesmo documento). O FMI definitivamente não é mais o mesmo.

No dizer de Alejandro Werner, ex-diretor do FMI para o hemisfério ocidental, em artigo na Americas Quaterly crítico ao acordo, o problema da Argentina é a “inconsistência entre um ambicioso Estado de Bem-Estar Social e a falta de um acordo de como financiá-lo”. Se isso não for resolvido, todo o resto é paliativo, e não há crescimento econômico que resolva. A questão é saber quanto tempo o FMI vai levar para descobrir que continua em uma barca furada. Stiglitz, em seu artigo, recomenda que o FMI tenha paciência com a Argentina e não desista ao primeiro sinal de “descarrilamento”, ou seja, de não cumprimento das metas de déficit. Afinal, segundo o prêmio Nobel, esse não cumprimento só pode ser devido a choques externos e não a dificuldades políticas domésticas, e o país não pode ser abandonado simplesmente por não ter cumprido metas que estão acima de sua capacidade. Este, afinal, é o sonho de todo desenvolvimentista: encontrar um financiador eterno, que não exige metas para continuar emprestando dinheiro ad aeternum. Ou até o efeito multiplicador funcionar.