O paraíso do crime

Cena 1: Bernard Madoff, ex-presidente da NASDAQ, era o gestor de um dos mais badalados fundos de investimento nos EUA, que produzia retornos bastante interessantes sem volatilidade alguma. Ou seja, uma espécie de mágica. Descobriu-se que era tudo falso, desde a contabilidade até os relatórios, e não se tratava de nada mais do que uma gigantesca pirâmide, no valor de 50 bilhões de dólares. O esquema foi descoberto, e no dia 11 de dezembro de 2008 Madoff foi preso em Nova York, tendo confessado o seu crime em 11 de março de 2009. Seu julgamento ocorreu em 28 de junho de 2009, e o fraudador foi condenado a 150 anos de prisão. Sem direito a recurso.

Cena 2: Pimenta Neves, à época jornalista do O Estado de São Paulo, assassina a também jornalista Sandra Gomide no dia 20 de agosto de 2000. Em 24 de agosto do mesmo ano, o jornalista confessa o crime. Depois de várias condenações e recursos, o STF condena Pimenta Neves no dia 23 de maio de 2011 a 15 anos de prisão.

A tabela abaixo resume tudo.

Recordei-me destes dois casos ontem, quando se discutia o indulto do presidente Temer. A justiça no Brasil é lenta e está cheia de fissuras bem aproveitadas por advogados regiamente pagos. Ano que vem a prisão em 2a instância será novamente discutida e mais uma fissura será aberta. E quando tudo o mais der errado, um indulto sempre pode resolver a questão.

O crescimento econômico não é apenas uma questão de políticas econômicas corretas. Os países que “dão certo” têm instituições que funcionam, sendo que a justiça para todos não é a menor delas. Se o crime compensa, por que respeitar as regras?

O Brasil é o paraíso dos criminosos que podem pagar bons advogados. A Lava-Jato foi apenas um breve interregno, em que sonhamos tornar o Brasil um país onde o crime não compensa. Moro é o ministro da Justiça, mas tem contra si todo um aparato formado por uma casta intocável. A luta é titânica para libertar o Brasil das corporações que o sequestraram. Não estou otimista hoje.

O governo e a vontade do povo

Estes são dois trechos da coluna de César Felício, editor de política do Valor Econômico, publicada hoje.

No primeiro, Felício elege Paulo Guedes como o “fiador” da democracia brasileira. Seria ele o responsável por segurar os ímpetos autoritários do presidente e de seu entorno. Para isso, teria como instrumento a “ameaça à governabilidade” como fator de instabilidade econômica. Ou seja, para ter sucesso como ministro da Fazenda, Paulo Guedes deveria servir como contraponto democrático ao presidente eleito.

Já no segundo trecho, o articulista praticamente lamenta a existência da TJLP, do teto de gastos e da independência do BC, pois esses seriam instrumentos que “manietariam” o poder do povo.

O primeiro trecho simplesmente não conversa com o segundo.

No primeiro, Felício pede que o presidente eleito respeite os limites das instituições democráticas. Já no segundo, lamenta a existência de instituições que estabelecem limites à atuação dos representantes do povo. E, sempre importante enfatizar, instituições essas que foram aprovadas nos devidos fóruns democráticos. Relacionar regras que regulam os gastos públicos com governos autoritários de direita, como faz o articulista, é de uma má fé sem limites. Nesse sentido, todas as leis aprovadas pelo Congresso, de uma maneira ou de outra, “manietam” a “vontade do povo”. Toda lei limita, de uma forma ou de outra, certos comportamentos. Sugerir que isso seja “autoritário” é contradizer a essência mesma da democracia representativa, onde o povo fala através de seus representantes eleitos. Contradiz o próprio desejo do articulista, que quer que Bolsonaro “ande na linha”, o que poderia ser interpretado como “manietar a vontade do povo”. Afinal, a maioria do povo poderia querer uma ditadura. Limitar essa vontade do povo seria autoritário?

Vergonha, ultraje, escárnio

O Supremo está discutindo se o indulto de Michel Temer para condenados por corrupção é válido.

O fato de existir tal indulto já é uma vergonha.

O Supremo estar discutindo se vale ou não vale é um ultraje.

Se for aprovado então, será um escárnio.

Depois ficam estupefatos quando um Jair Bolsonaro ganha a eleição presidencial.

Analfabetismo conveniente

Maria Bethânia, beneficiária da Lei Rouanet, diz que quem critica a lei não sabe ler. Pois então, vamos juntos ler o texto da Lei Rouanet:

“Os contribuintes poderão deduzir do imposto de renda devido as quantias efetivamente despendidas nos projetos elencados no § 3o, previamente aprovados pelo Ministério da Cultura, …”

Pelo visto, quem não sabe ler é Bethânia. Se um contribuinte pode deduzir do IR o montante doado a um projeto cultural aprovado sob os critérios da lei, então o governo está abrindo mão de uma receita líquida e certa que, de outro modo, iria para os cofres do Tesouro. Esse assunto de “benefício fiscal” é mesmo difícil. Um dinheiro que não entra é um dinheiro que não existe, então não fica claro que é um dinheiro que faz falta. Até acredito que os artistas tenham dificuldade de entender isso, que realmente acreditem que o dinheiro sai dos cofres das empresas patrocinadoras. Trata-se de uma sutileza contábil, mas que tem um efeito bastante prático: o governo fica com menos dinheiro no cofre do que teria sem a lei.

Pode-se defender a lei, dizendo que a promoção da cultura tem o seu mérito. O que não se pode dizer é que o governo não gasta nada com isso, que o dinheiro é dos patrocinadores. Não é.

Bethânia não sabe ler. Ou faz de conta que não sabe. Não sei o que é pior.

Minando as bases do capitalismo

Uma das grandes virtudes da economia americana é a sua flexibilidade. Os agentes econômicos têm grande liberdade para decidir onde investir o seu capital, seja financeiro, seja humano. Assim, por exemplo, em poucos lugares do mundo se vê o número enorme de pessoas que mudam de cidade em busca de melhores condições de trabalho. O mesmo ocorre com os investimentos das empresas.

Esta flexibilidade permite que as empresas nos EUA possam responder rapidamente à demanda dos consumidores, que são, em última instância, aqueles que decidem quais empresas devem sobreviver e quais devem morrer. Não à toa, o desemprego nos EUA é o menor do mundo desenvolvido (não de hoje, mas estruturalmente) e sua produtividade é das maiores.

Donald Trump parece não concordar com nada disso. Para o presidente americano, as empresas americanas deveriam manter fábricas produzindo bens não desejados pelos consumidores com o objetivo de “preservar empregos”. Ao ameaçar a GM, Trump na verdade ameaça um dos pilares da economia mais dinâmica do ocidente: a liberdade dos agentes econômicos de escolherem o melhor destino para os seus recursos, de acordo com sua melhor avaliação da produtividade desses recursos. O que quer Trump? Que a GM continue produzindo carros que ninguém quer comprar?

É verdade que o governo americano interveio e “salvou” a GM na crise de 2008. Dinheiro dos contribuintes foi usado para salvar empregos e, de quebra, dar uma forcinha aos acionistas da empresa. Houve muita controvérsia a respeito: seria este o melhor destino para os impostos? Os governos Bush e Obama entenderam que sim, com o objetivo de preservar empregos.

Agora, Trump ameaça tirar os subsídios para os carros elétricos da GM. Qual o efeito de uma medida desse tipo a não ser obrigar a empresa a também fechar a planta de carros elétricos? Nesse caso, a situação dos empregos pioraria ainda mais. A única saída seria mais uma ajuda governamental, de modo a subsidiar a manutenção dos empregos. Será esta a solução? Em 2008, Bush e Obama pelo menos tinham como desculpa a maior recessão depois da Grande Depressão. Hoje, pelo contrário, os EUA vivem o que podemos chamar de pleno emprego. Faz sentido subsidiar empregos em um cenário de pleno emprego?

Talvez Trump esteja esperando que a GM rasgue dinheiro em nome de um sentimento de gratidão pelo país. A GM deve achar que o melhor retorno para o país é preservar sua própria saúde financeira. É uma questão de ponto de vista.

Ninguém aqui está negando o drama humano por trás de cada emprego perdido. O desemprego é sempre uma tragédia familiar. Mas não tenha dúvida: um emprego mantido artificialmente hoje significa mais desemprego no futuro, porque a economia se vinga quando fatores de produção são utilizados de maneira pouco produtiva. O Brasil deveria servir de exemplo: seguidos governos com cunho marcadamente social não conseguiram evitar taxas de desemprego muito superiores às dos EUA, país dos desalmados capitalistas.

O funcionário da fábrica da GM de Ohio é o típico eleitor de Trump. Ao buscar agradar sua base eleitoral, defendendo empregos que, em última análise, não têm mais sentido econômico, Trump mina os próprios fundamentos do capitalismo que tanto diz defender.

A suruba mal explicada

Silvio Santos está no ar desde 1964. 54 anos, portanto.

Chacrinha manteve um programa de 1956 a 1988, quando morreu. 32 anos.

Faustão mantém o Domingão desde 1989. 29 anos.

Ana Maria Braga mantém seu programa matinal desse 1999. 19 anos.

Jô Soares manteve seu talk show de 2000 a 2016. 16 anos. E, detalhe: foi ele que quis se aposentar.

Fátima Bernardes está há 6 anos no ar e o programa já cansou. Talvez porque falte didática para explicar porque poliamor não é suruba.

Marte é aqui

Reportagem na Globo News (sim, de novo, resolvi pegar no pé) sobre a sonda que pousou em Marte.

Imagem de um cientista americano, explicando que Marte era habitável há 3 bilhões de anos e hoje é um deserto gelado. A missão tem como objetivo estudar o solo do planeta para tentar entender o que aconteceu.

Corta para a inefável Leilane Neubarth, que complementa com o óbvio “para que nós não façamos o mesmo”.

Então, para a apresentadora do GN, nem precisa de sonda, a explicação é óbvia: a civilização marciana fucked o planeta vermelho e aquilo virou um deserto inóspito. Só faltou dizer que o líder dos marcianos tinha cabelo laranja, apesar de sabermos que os marcianos eram verdes.

O que deu errado no Chile

A Globo News debate os destinos da economia brasileira, agora que estamos nas mãos dos desalmados “Chicago Boys”.

Além das observações de praxe sobre as reformas impostas por Pinochet, a ditadura e blá, blá, blá, os bravos jornalistas estavam genuinamente preocupados com os efeitos negativos das reformas empreendidas pelos Chicago Boys chilenos. Parece que algumas coisas deram errado por lá.

Fui checar.

A inflação média brasileira desde 1996 foi de 6,80% ao ano, enquanto a chilena foi de 3,67% ao ano. Ou seja, se tivéssemos a inflação do Chile, os preços teriam subido praticamente metade do que subiram no Brasil nos últimos 22 anos (deixei de fora os anos da hiperinflação pra coisa não ficar mais feia para o nosso lado).

-Ah, mas inflação é uma tara dos Chicago Boys. Eles sacrificam tudo ao deus da estabilidade. Aposto que o crescimento econômico foi anêmico nesse período.

Vamos lá. O crescimento econômico médio do Brasil desde 1980 foi de 2,32% ao ano. Do Chile foi de 4,31% ao ano. Se o Brasil tivesse crescido tanto quanto o Chile nos últimos 38 anos, a renda per capita brasileira seria mais do que o dobro da atual. 108% maior, para ser mais exato.

– Ah, mas PIB não quer dizer nada. O que importa é o bem estar das pessoas.

Ok. Também o desemprego foi menor no Chile. Desde 1991 (primeiro dado disponível para o Brasil), o desemprego médio chileno foi de 7,8%, contra 10,9% de desemprego médio no Brasil. Hoje, o desemprego no Chile está em 6,9%, contra 11,8% no Brasil. Se tivéssemos hoje o desemprego do Chile, cerca de 5 milhões de brasileiros a mais estariam trabalhando.

– Ok. Mas e a desigualdade? Qual a preocupação dos Chicago Boys com a distribuição de renda? Aposto que nenhuma!

Segundo dados do Banco Mundial, o índice de Gini do Chile caiu de 54,8 em 1987 para 47,7 em 2015. Já o índice do Brasil caiu de 59,7 para 51,3 no mesmo período (quanto menor, melhor a distribuição de renda). Ou seja, além de mostrar uma distribuição de renda melhor do que a brasileira, o índice de Gini do Chile recuou só um pouco menos do que a o brasileiro nesse período de 28 anos. Parece ok para um país que adota um modelo econômico neoliberal selvagem.

Resumindo: o Chile, administrado segundo a escola de Chicago, teve metade da inflação, o dobro do crescimento, menos desemprego e melhor distribuição de renda do que o Brasil, administrado segundo a melhor escola unicampiana de preocupação social. E ainda ficamos discutindo “o que deu errado” no modelo chileno.

PS.: antes que alguém levante a questão, dá sim para usar o Chile como exemplo. Apesar de ser um país menor e com maior dependência de exportações, há muitos países ainda menores que não dão certo. E há países bem maiores que têm uma performance bem superior à brasileira por seguirem os cânones econômicos ortodoxos. Vide EUA e Alemanha, por exemplo.

Quem é o culpado?

O título chama atenção: os EUA seriam os responsáveis pela violência na América Central e agora estariam colhendo os frutos amargos dessa semeadura.

Aí você vai ler a reportagem. Tudo começou com Ronald Reagan, que teria resolvido “limpar” Los Angeles em 1984, para receber os Jogos Olímpicos. Isso dentro do contexto da Guerra Fria. Ou seja, antes os EUA não prendiam bandidos. Mas, para impressionar o mundo e a URSS, realizou “prisões em massa” de traficantes e gangues. Ok.

Mas aí, mesmo com todo mundo preso, as gangues de traficantes continuavam ativas, espalhando o terror. Então, ocorreu uma “janela de oportunidade”: os tratados de paz de 1992 em El Salvador e em 1996 na Guatemala. Com o fim das guerras nesses países, o governo Clinton deportou criminosos “em massa” para esses países. Esta seria a tal “semente” que vingou e deu origem à violência que expulsa os imigrantes atualmente.

É realmente do balacobaco! O jornalista quer nos fazer crer que, não fosse a deportação em massa de criminosos na década de 90, a América Central seria o paraíso na Terra, com índices de criminalidade suíços. Acho que alguns desses criminosos devem ter vindo para o Brasil, pois nossos índices de criminalidade não ficam atrás dos desses países. Não consigo pensar em história mais sem pé nem cabeça.

Claro, não falta a figura do “especialista” na reportagem. Segundo o tal, os governos Obama e Trump (pelo menos nesse caso Trump não assume isoladamente o papel de Belzebu) estariam errando no diagnóstico: o motivo da imigração seria a violência, não a pobreza. Por isso, as políticas anti-imigração estariam atacando o alvo errado.

Bem, digamos que o diagnóstico estivesse “correto”. O que faria de diferente o governo americano? Deixaria entrar somente os criminosos para prendê-los em território dos EUA? Deixaria entrar somente os não criminosos, fazendo com que, no limite, a América Central fosse habitada somente por criminosos? Qual exatamente a mudança de política imigratória proposta? A reportagem não esclarece.

É óbvio para quem tenha um pouco de bom senso e não esteja contaminado por uma ideologia antiamericana, que o problema imigratório é de responsabilidade das próprias elites dos países centro-americanos, que não conseguem organizar suas sociedades em bases minimamente democráticas. Jogar a culpa nas costas do suspeito de sempre é o modo de não resolver o problema.

Império da lei. Separação de poderes. Imprensa livre. Respeito aos contratos. Capitalismo competitivo (em oposição ao capitalismo de laços). Isso é o que faz a riqueza das nações. Se as elites desses países (Brasil incluído) não conseguirem caminhar nessa direção, continuarão culpando terceiros pelas suas desgraças.

Os EUA continuarão com suas políticas anti-imigratórias. Não, eles não têm culpa pelo fato dos outros países não fazerem a sua lição de casa.