Quando o jornalismo milita

Às vezes dá dó do jornalismo militante. A ânsia de provar uma tese é tão grande, que os requisitos mínimos da lógica e da aritmética são atropelados e ficam lá, estatelados e moribundos, no meio da via, enquanto o jornalista continua seu caminho como se nada tivesse acontecido.

Esta pequena reportagem do Estadão ilustra o ponto. A pauta é: como o governo Trump está fucking the world com sua visão obtusa e anticientífica sobre o aquecimento global.

Vamos começar pelo ponto mais óbvio: o título. 10% do PIB é coisa pra chuchu. Seria algo com que se preocupar de verdade. Mas aí você vai ver, e as perdas somam US$291 bi. Em um PIB de aproximadamente US$20 trilhões, temos o equivalente a 1,5% do PIB. Claro, qualquer perda do PIB é de se lamentar, mas vamos combinar que 1,5% é bem diferente de 10%. Tem alguma coisa errada nesses números, mas não fica claro onde.

Depois desse erro crasso de aritmética, começam as sutilezas que ferem a lógica. Por exemplo, logo no início do texto, o repórter afirma que as conclusões do relatório contrariam o próprio presidente, que “não acredita na influência humana sobre o aquecimento global”. Ora, a matéria não diz que o estudo da Casa Branca coloca na ação humana a fonte do aquecimento global. São citados uma série de números, mas em nenhum momento é colocada essa relação. Pode ser que exista, mas o jornalista não fez questão de deixar isso claro. O que temos é um diagnóstico do aquecimento, não uma relação de causa e efeito. Mas isso é irrelevante quando se trata de eleger o inimigo público número 1 do meio-ambiente e da humanidade.

Na linha de isolar o belzebu, não pode faltar a figura do “especialista”. Cavaram um cara de uma tal Wesleyan University (qualquer verossimilhança com um filme de Mel Brooks é mera coincidência) para dizer que “se perdermos mais 5 anos, a história piora”. Ok, Trump não está fazendo nada e a história só vai piorar. Mas o que dizer dos 15 anos anteriores? O mesmo professor diz que “perdemos 15 anos de tempo de resposta”. Uau! 15 anos inclui todo o mandato de São Obama, o champion das causas ambientais. Quer dizer então que Obama perdeu “tempo de resposta”? E por que exigir de Trump o que Obama não fez? Ainda bem que convidaram um especialista de uma universidade obscura pra dar palpite, senão eu ia levar isso aí a sério.

Os créditos da reportagem são do New York Times e do Washington Post. Não sei se foi feita uma tradução literal ou se alguém juntou informações de artigos publicados na imprensa americana e cometeu isso aí. Não importa. O fato é que a matéria não para em pé.

Não duvido nem desduvido do aquecimento global e nem da influência humana sobre o mesmo. O que me deixa triste é que toda vez que, de coração aberto, leio uma reportagem sobre o tema e busco informações para me convencer a respeito da influência humana sobre o aquecimento global, saio de mãos vazias. O jornalismo tem feito um trabalho porco nessa área, mais militando do que informando. O resultado é o aumento do ceticismo a respeito do tema, não o inverso.

Quebrado em qualquer moeda

A saída clássica de qualquer governo quebrado é criar a sua própria moeda. A Venezuela nos deu o último exemplo ao criar o Petro, criptomoeda lastreada nas reservas de petróleo do país. A Venezuela continua quebrada, agora também em Petros.

Era assim no Brasil quando os entes federativos podiam lançar títulos de dívida próprios, alavancando o seu potencial de gastar como se não houvesse amanhã. O governo FHC acabou com a farra, monopolizando o poder de emitir dívida nas mãos do governo Federal. Assim, somente a União pode emitir moeda ou quasi-moeda.

Crivella quer usar o bitcoin como moeda para as transações da prefeitura. Precisa avisa-lo que, se o governo continuar gastando mais do que arrecadando, vai quebrar em qualquer moeda, seja em reais ou bitcoins.

Garantia de trabalho só em Cuba

Os médicos cubanos que querem ficar no Brasil reclamam que o governo não lhes dá “garantia de trabalho”.

Amigos cubanos, bem-vindos ao mundo capitalista, onde o governo não dá garantia de trabalho a ninguém. Que o digam os 12 milhões de desempregados brasileiros!

Os médicos cubanos estão enfrentando um dilema típico da liberdade que tanto reclamam: suas decisões implicam riscos e um deles, no caso, é o de ficar desempregado por um tempo. É o mesmo risco assumido por qualquer indivíduo no Brasil, ou em qualquer outro país capitalista, que resolve mudar de emprego ou empreender. Em Cuba não há este risco, mas também não há esta liberdade de escolha.

Com todo respeito, o Ministério da Saúde tem mais o que fazer do que garantir emprego a médicos cubanos. Se o edital que convoca médicos brasileiros não for suficiente, então médicos estrangeiros serão convocados. E os cubanos entrarão na fila, como quaisquer outros. Se este for um risco muito grande, sempre há a alternativa de voltar a Cuba, com tudo o que isso implica em termos profissionais e pessoais. Trata-se de um cálculo de risco/retorno a que estão acostumados todas pessoas que vivem em sociedades capitalistas.

A julgar pelo fluxo de imigrantes da ilha dos irmãos Castro, a maioria decide pelo risco do mundo capitalista. Pois onde não existe risco, também não existe retorno.

O novo que é velho

Romeu Zema foi o único governador eleito pelo Novo. Ao ser perguntado sobre a privatização da Cemig e de outras estatais de Minas Gerais, respondeu com o que vai abaixo. Ciro Gomes não responderia outra coisa.

Começa a ficar claro porque Gustavo Franco não topou ser o secretário de Finanças de Zema. Se esta for a vitrine do Novo, receio que o partido terá problemas.

A função social do médico

Essa fala de Carlos Marun escancara a diferença entre uma ditadura e uma democracia. Na ditadura o Estado é seu dono e faz de você o que quiser. Já na democracia, você é dono de si mesmo, e faz da sua vida o que bem entender.

Mas Marun tem um ponto: os pagadores de impostos, inclusive aqueles que moram nos rincões mais remotos e desatendidos, financiam a faculdade de milhares de jovens. Qual o retorno social desse investimento?

Não sou daqueles que acham que “retorno social” é somente aquele proporcionado por serviços feitos diretamente aos mais pobres. Qualquer atividade econômica beneficia os mais pobres. Um médico bem sucedido dará emprego a pessoas pobres em sua casa, trabalhará em um hospital que dá emprego a pessoas pobres, consumirá produtos fabricados e vendidos por pessoas pobres. O melhor programa social é um emprego, proporcionado por uma economia que tanto mais cresce quanto mais as pessoas tiverem liberdade para fazer de suas vidas o que quiserem.

Tendo dito isso, há situações emergenciais em um país tão grande e desigual quanto o Brasil. São necessárias medidas de cunho social direto para mitigar o sofrimento dos mais pobres.

Uma forma mais direta dos médicos “devolverem” o dinheiro investido em sua formação seria a prestação obrigatória de serviços após a formatura. Segundo reportagem do Valor Econômico em abril, o Brasil tem 51.000 estudantes de medicina em universidades públicas. Considerando-se 6 anos de formação, teríamos cerca de 8.500 médicos se formando nessas faculdades por ano. Coincidentemente, o mesmo número de médicos cubanos que supostamente estão deixando o Brasil (Mourão jura que metade vai ficar). Ou seja, se fosse estabelecido um serviço obrigatório de um ano para médicos recém-formados, estaria suprida a falta dos médicos cubanos. Esta é basicamente a ideia por trás da fala de Carlos Marun.

Mas, como sempre, o diabo mora nos detalhes. A solução do serviço obrigatório tem alguns pontos que precisam ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, trata-se de médicos recém-formados, com pouquíssima experiência, a não ser os plantões obrigatórios da faculdade. Larga-los no meio do nada, sem recursos materiais, sem a possibilidade de serem monitorados por médicos mais experientes, parece irresponsável.

-Ah, mas são melhores que os médicos cubanos, que nem médicos são!

Pode até ser, mas queremos continuar colocando a saúde da população nas mãos de quase-médicos ou de médicos inexperientes? É uma escolha.

Outro ponto é porque somente os estudantes de medicina estariam submetidos ao tal “serviço obrigatório”? Afinal, são milhares os estudantes que se formam todos os anos em faculdades públicas em todas as carreiras. E os engenheiros, os advogados, os administradores, os professores, não teriam também obrigação de dar a sua contribuição em retorno ao tanto que receberam? Uma ação que inicialmente tinha como objetivo substituir os médicos cubanos acaba causando um efeito dominó em toda universidade pública brasileira. Nada contra, apenas é preciso ter em mente que há consequências não intencionais em todas as iniciativas.

Um terceiro ponto é a questão do contrato. Os atuais estudantes da universidade pública não tinham esta exigência em seu horizonte. O que é combinado não é caro, então o justo seria exigir este serviço obrigatório para os novos entrantes. No caso dos médicos, o serviço somente começaria daqui a 6 anos, na melhor das hipóteses. Portanto, não resolveria o problema agora no curto prazo.

Outro ponto relevante seria a alta rotatividade desses médicos. Um ano de serviço em um lugar remoto, para logo em seguida ser substituído por outro, que igualmente só ficará por um mísero ano. Não me parece algo muito salutar.

Enfim, o tal “serviço médico obrigatório” seria uma distorção para mitigar outra distorção: o ensino público gratuito. Somos o país das distorções distributivas e ao invés de atacar a raiz dos problemas preferimos fazer gambiarras para mitigar os problemas. As universidades federais têm um orçamento de R$ 6 bilhões anuais (já foi de R$ 9 bilhões nos bons tempos). Se os alunos tivessem que pagar, em média, metade do seu custo para a universidade, teríamos R$ 3 bilhões adicionais para financiar, por exemplo, o Mais Médicos. Este montante seria o suficiente para dobrar o valor da bolsa (de 10 para 20 mil) para 25.000 médicos, ou o triplo dos médicos cubanos que estão deixando o país. E isso sem contar com as universidades estaduais. Quem sabe com R$20 mil de bolsa, mais médicos não se sentiriam atraídos para trabalhar nos rincões do Brasil.

Em busca de um emprego

Se você perde o seu emprego, o que você faz? O mesmo que 13 milhões de desempregados estão fazendo no Brasil: saem à luta para procurar outro emprego.

Ora, os nobres congressistas que perderam seus empregos estão fazendo a mesma coisa, cavando uma vaguinha em alguma estatal. Cada um luta com as armas que tem.

Não faltam médicos, falta dinheiro

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80 médicos. Este é o número de profissionais que trabalham nas unidades básicas de saúde em Ponta Grossa-PR.

Ponta Grossa tem uma população estimada de 348 mil habitantes. Este número de profissionais representa 0,23 médicos por mil habitantes. Um índice pior do que em países africanos. A média brasileira, que já deixa muito a desejar, é de 2,18 médicos por mil habitantes. Não é de se admirar que empresas como Dr. Consulta fazem tanto sucesso.

Mas agora, 75% desses poucos médicos vão embora. O que fazer? O que a prefeitura de Ponta Grossa deveria ter feito antes e não fez: não terceirizar 75% da saúde da população mais pobre para uma entidade que poderia pedir o boné e ir embora a qualquer momento. A prefeitura economizou em saúde (pois quem paga os médicos é o governo federal), usou o dinheiro para outras finalidades e agora tem um pepino na mão. A isso chamamos de gestão porca de risco.

A solução? Contratar médicos para substituir os que estão indo embora. Ponta Grossa é uma cidade rica, certamente tem mais de 2,18 médicos por mil habitantes e há médicos dispostos a trabalhar. Só que precisa pagar e a prefeitura certamente não contava com esse gasto extra. No final, não é um problema de falta de médicos, mas de falta de dinheiro. Como sempre.