A função social do médico

Essa fala de Carlos Marun escancara a diferença entre uma ditadura e uma democracia. Na ditadura o Estado é seu dono e faz de você o que quiser. Já na democracia, você é dono de si mesmo, e faz da sua vida o que bem entender.

Mas Marun tem um ponto: os pagadores de impostos, inclusive aqueles que moram nos rincões mais remotos e desatendidos, financiam a faculdade de milhares de jovens. Qual o retorno social desse investimento?

Não sou daqueles que acham que “retorno social” é somente aquele proporcionado por serviços feitos diretamente aos mais pobres. Qualquer atividade econômica beneficia os mais pobres. Um médico bem sucedido dará emprego a pessoas pobres em sua casa, trabalhará em um hospital que dá emprego a pessoas pobres, consumirá produtos fabricados e vendidos por pessoas pobres. O melhor programa social é um emprego, proporcionado por uma economia que tanto mais cresce quanto mais as pessoas tiverem liberdade para fazer de suas vidas o que quiserem.

Tendo dito isso, há situações emergenciais em um país tão grande e desigual quanto o Brasil. São necessárias medidas de cunho social direto para mitigar o sofrimento dos mais pobres.

Uma forma mais direta dos médicos “devolverem” o dinheiro investido em sua formação seria a prestação obrigatória de serviços após a formatura. Segundo reportagem do Valor Econômico em abril, o Brasil tem 51.000 estudantes de medicina em universidades públicas. Considerando-se 6 anos de formação, teríamos cerca de 8.500 médicos se formando nessas faculdades por ano. Coincidentemente, o mesmo número de médicos cubanos que supostamente estão deixando o Brasil (Mourão jura que metade vai ficar). Ou seja, se fosse estabelecido um serviço obrigatório de um ano para médicos recém-formados, estaria suprida a falta dos médicos cubanos. Esta é basicamente a ideia por trás da fala de Carlos Marun.

Mas, como sempre, o diabo mora nos detalhes. A solução do serviço obrigatório tem alguns pontos que precisam ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, trata-se de médicos recém-formados, com pouquíssima experiência, a não ser os plantões obrigatórios da faculdade. Larga-los no meio do nada, sem recursos materiais, sem a possibilidade de serem monitorados por médicos mais experientes, parece irresponsável.

-Ah, mas são melhores que os médicos cubanos, que nem médicos são!

Pode até ser, mas queremos continuar colocando a saúde da população nas mãos de quase-médicos ou de médicos inexperientes? É uma escolha.

Outro ponto é porque somente os estudantes de medicina estariam submetidos ao tal “serviço obrigatório”? Afinal, são milhares os estudantes que se formam todos os anos em faculdades públicas em todas as carreiras. E os engenheiros, os advogados, os administradores, os professores, não teriam também obrigação de dar a sua contribuição em retorno ao tanto que receberam? Uma ação que inicialmente tinha como objetivo substituir os médicos cubanos acaba causando um efeito dominó em toda universidade pública brasileira. Nada contra, apenas é preciso ter em mente que há consequências não intencionais em todas as iniciativas.

Um terceiro ponto é a questão do contrato. Os atuais estudantes da universidade pública não tinham esta exigência em seu horizonte. O que é combinado não é caro, então o justo seria exigir este serviço obrigatório para os novos entrantes. No caso dos médicos, o serviço somente começaria daqui a 6 anos, na melhor das hipóteses. Portanto, não resolveria o problema agora no curto prazo.

Outro ponto relevante seria a alta rotatividade desses médicos. Um ano de serviço em um lugar remoto, para logo em seguida ser substituído por outro, que igualmente só ficará por um mísero ano. Não me parece algo muito salutar.

Enfim, o tal “serviço médico obrigatório” seria uma distorção para mitigar outra distorção: o ensino público gratuito. Somos o país das distorções distributivas e ao invés de atacar a raiz dos problemas preferimos fazer gambiarras para mitigar os problemas. As universidades federais têm um orçamento de R$ 6 bilhões anuais (já foi de R$ 9 bilhões nos bons tempos). Se os alunos tivessem que pagar, em média, metade do seu custo para a universidade, teríamos R$ 3 bilhões adicionais para financiar, por exemplo, o Mais Médicos. Este montante seria o suficiente para dobrar o valor da bolsa (de 10 para 20 mil) para 25.000 médicos, ou o triplo dos médicos cubanos que estão deixando o país. E isso sem contar com as universidades estaduais. Quem sabe com R$20 mil de bolsa, mais médicos não se sentiriam atraídos para trabalhar nos rincões do Brasil.

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