Putin lança o programa Mais Soldados

O governo cubano está indignado. Parece que Moscou está pescando em águas cubanas para recrutar soldados para a guerra. O que a reportagem chama de “tráfico”, na verdade, não passa de uma relação comercial: Putin mitiga o seu problema de recrutamento de cidadãos russos, enquanto os cubanos têm a oportunidade de ganhar uns trocos e, com alguma sorte, voltar para casa após o fim do contrato. Uma relação ganha-ganha. A não ser para o governo cubano.

No programa Mais Médicos do governo Dilma, o “tráfico” de cubanos era oficializado, e o governo cubano ficava com a parte do leão dos salários de seus cidadãos. Esse sim era um arranjo que interessava aos dirigentes da ilha de Fidel. Agora, Putin atravessou o intermediário, e está tratando diretamente com a mão de obra. Putin gasta menos e os cubanos recebem mais. Todo mundo sai satisfeito, menos o governo cubano, que denuncia o “tráfico de pessoas” e afirma não ter nada a ver com a guerra.

Pelo jeito, Putin terá que estabelecer o programa Mais Soldados e pagar mais caro, se quiser continuar contando com a prestimosa ajuda dos recrutas cubanos.

A função social do médico

Essa fala de Carlos Marun escancara a diferença entre uma ditadura e uma democracia. Na ditadura o Estado é seu dono e faz de você o que quiser. Já na democracia, você é dono de si mesmo, e faz da sua vida o que bem entender.

Mas Marun tem um ponto: os pagadores de impostos, inclusive aqueles que moram nos rincões mais remotos e desatendidos, financiam a faculdade de milhares de jovens. Qual o retorno social desse investimento?

Não sou daqueles que acham que “retorno social” é somente aquele proporcionado por serviços feitos diretamente aos mais pobres. Qualquer atividade econômica beneficia os mais pobres. Um médico bem sucedido dará emprego a pessoas pobres em sua casa, trabalhará em um hospital que dá emprego a pessoas pobres, consumirá produtos fabricados e vendidos por pessoas pobres. O melhor programa social é um emprego, proporcionado por uma economia que tanto mais cresce quanto mais as pessoas tiverem liberdade para fazer de suas vidas o que quiserem.

Tendo dito isso, há situações emergenciais em um país tão grande e desigual quanto o Brasil. São necessárias medidas de cunho social direto para mitigar o sofrimento dos mais pobres.

Uma forma mais direta dos médicos “devolverem” o dinheiro investido em sua formação seria a prestação obrigatória de serviços após a formatura. Segundo reportagem do Valor Econômico em abril, o Brasil tem 51.000 estudantes de medicina em universidades públicas. Considerando-se 6 anos de formação, teríamos cerca de 8.500 médicos se formando nessas faculdades por ano. Coincidentemente, o mesmo número de médicos cubanos que supostamente estão deixando o Brasil (Mourão jura que metade vai ficar). Ou seja, se fosse estabelecido um serviço obrigatório de um ano para médicos recém-formados, estaria suprida a falta dos médicos cubanos. Esta é basicamente a ideia por trás da fala de Carlos Marun.

Mas, como sempre, o diabo mora nos detalhes. A solução do serviço obrigatório tem alguns pontos que precisam ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, trata-se de médicos recém-formados, com pouquíssima experiência, a não ser os plantões obrigatórios da faculdade. Larga-los no meio do nada, sem recursos materiais, sem a possibilidade de serem monitorados por médicos mais experientes, parece irresponsável.

-Ah, mas são melhores que os médicos cubanos, que nem médicos são!

Pode até ser, mas queremos continuar colocando a saúde da população nas mãos de quase-médicos ou de médicos inexperientes? É uma escolha.

Outro ponto é porque somente os estudantes de medicina estariam submetidos ao tal “serviço obrigatório”? Afinal, são milhares os estudantes que se formam todos os anos em faculdades públicas em todas as carreiras. E os engenheiros, os advogados, os administradores, os professores, não teriam também obrigação de dar a sua contribuição em retorno ao tanto que receberam? Uma ação que inicialmente tinha como objetivo substituir os médicos cubanos acaba causando um efeito dominó em toda universidade pública brasileira. Nada contra, apenas é preciso ter em mente que há consequências não intencionais em todas as iniciativas.

Um terceiro ponto é a questão do contrato. Os atuais estudantes da universidade pública não tinham esta exigência em seu horizonte. O que é combinado não é caro, então o justo seria exigir este serviço obrigatório para os novos entrantes. No caso dos médicos, o serviço somente começaria daqui a 6 anos, na melhor das hipóteses. Portanto, não resolveria o problema agora no curto prazo.

Outro ponto relevante seria a alta rotatividade desses médicos. Um ano de serviço em um lugar remoto, para logo em seguida ser substituído por outro, que igualmente só ficará por um mísero ano. Não me parece algo muito salutar.

Enfim, o tal “serviço médico obrigatório” seria uma distorção para mitigar outra distorção: o ensino público gratuito. Somos o país das distorções distributivas e ao invés de atacar a raiz dos problemas preferimos fazer gambiarras para mitigar os problemas. As universidades federais têm um orçamento de R$ 6 bilhões anuais (já foi de R$ 9 bilhões nos bons tempos). Se os alunos tivessem que pagar, em média, metade do seu custo para a universidade, teríamos R$ 3 bilhões adicionais para financiar, por exemplo, o Mais Médicos. Este montante seria o suficiente para dobrar o valor da bolsa (de 10 para 20 mil) para 25.000 médicos, ou o triplo dos médicos cubanos que estão deixando o país. E isso sem contar com as universidades estaduais. Quem sabe com R$20 mil de bolsa, mais médicos não se sentiriam atraídos para trabalhar nos rincões do Brasil.

Não faltam médicos, falta dinheiro

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80 médicos. Este é o número de profissionais que trabalham nas unidades básicas de saúde em Ponta Grossa-PR.

Ponta Grossa tem uma população estimada de 348 mil habitantes. Este número de profissionais representa 0,23 médicos por mil habitantes. Um índice pior do que em países africanos. A média brasileira, que já deixa muito a desejar, é de 2,18 médicos por mil habitantes. Não é de se admirar que empresas como Dr. Consulta fazem tanto sucesso.

Mas agora, 75% desses poucos médicos vão embora. O que fazer? O que a prefeitura de Ponta Grossa deveria ter feito antes e não fez: não terceirizar 75% da saúde da população mais pobre para uma entidade que poderia pedir o boné e ir embora a qualquer momento. A prefeitura economizou em saúde (pois quem paga os médicos é o governo federal), usou o dinheiro para outras finalidades e agora tem um pepino na mão. A isso chamamos de gestão porca de risco.

A solução? Contratar médicos para substituir os que estão indo embora. Ponta Grossa é uma cidade rica, certamente tem mais de 2,18 médicos por mil habitantes e há médicos dispostos a trabalhar. Só que precisa pagar e a prefeitura certamente não contava com esse gasto extra. No final, não é um problema de falta de médicos, mas de falta de dinheiro. Como sempre.

O caos sem os médicos cubanos

O Valor Econômico de hoje trás dados específicos de uma cidade onde a secretaria de saúde diz que haverá caos se os cubanos forem para casa.

Santa Luzia, na região metropolitana de BH, tem 218 mil habitantes e 15 médicos cubanos, o que perfaz 0,07 médicos por mil habitantes. Mesmo se considerarmos apenas os 58 mil habitantes que a secretaria diz que serão afetados, temos uma relação de 0,26 médicos por mil habitantes atendidos. Infelizmente não há dados sobre o total de médicos da cidade, mas para uma média brasileira de 2,18 médicos por mil habitantes, parece não ser suficiente para piorar um caos que já deve existir hoje.

Estes números servem para corroborar o que disse no meu post de ontem: os médicos cubanos mal fazem cócegas nas terríveis estatísticas da saúde pública brasileira.

Também corroborando meu post de ontem, o Valor trás histórias comoventes de pacientes atendidos pelos cubanos, para nos convencer de que farão falta. Sim, para essas pessoas sem dúvida farão falta. Elas tiraram o bilhete de loteria de ter um médico cubano disposto a trabalhar em regime de semiescravidão. Agora, este bilhete lhes será retirado.

A tragédia já existe, nada vai mudar

Cuba vai retirar os seus médicos do Brasil. Segundo os “especialistas” em saúde pública, isto é uma tragédia de grandes proporções que se abaterá sobre os mais pobres, que não tinham acesso a médicos e passaram a ter depois do programa patrocinado pelo PT.

Será isso mesmo? Vejamos.

O último dado no site do Programa Mais Médicos, de 2015, indicava a participação de 18.240 médicos no programa. Destes, cerca de 8.500 são cubanos, o que totaliza cerca de 45% do total do programa.

Por outro lado, no final de 2017, o Brasil contava com 451.777 médicos, segundo censo patrocinado pelo Conselho Federal de Medicina. Os médicos cubanos, portanto, representam 1,9% do total de médicos do país.

Colocando proporcionalmente em termos populacionais, que é normalmente como se mede a cobertura de médicos em um país: o Brasil conta com 2,18 médicos por 1.000 habitantes. Com os cubanos, este número vai para 2,22. Um acréscimo de apenas 0,04. A média dos países da OCDE é de 3,4. Como vimos, os médicos cubanos não fazem nem cócegas nas necessidades do país.

– Ah, mas o problema não é a quantidade, é a distribuição dos médicos pelo país.

Sem dúvida! Segundo o mesmo censo do CFM, Brasília tem 4,35 médicos por mil habitantes (mesmo índice da Suíça), enquanto o Maranhão conta com apenas 0,87 médicos por mil habitantes, um índice africano. Então, os médicos cubanos vieram para suprir esta deficiência de distribuição.

Mas, cuidado com as estatísticas! Segundo vários reportagens por aí, os médicos cubanos estariam beneficiando uma população de 65 milhões de brasileiros, supostamente aqueles com menor cobertura. Isto significa 0,13 médicos/mil habitantes adicionais. Considerando que esses 65 milhões tenham uma cobertura equivalente à do Maranhão, levantada pelo CFM, isto significaria um aumento de quase 15% no número de médicos para este público. Só que a cobertura continuaria (como continua) sendo de país africano.

Em resumo, a saída dos cubanos do Brasil não representa uma tragédia humanitária. A tragédia continua existindo, com ou sem os médicos cubanos. Claro que as reportagens vão entrevistar aquela comunidade que dependia daquele médico cubano, tão bom, tão humano. Sim, há histórias comoventes. Mas para cada história tocante, há outra dez ou vinte de comunidades que continuaram sem ver a cor de um avental branco. A tragédia da saúde pública brasileira não se resolve com golpes publicitários, como foi o desembarque dos médicos cubanos usando justamente aventais brancos. O Brasil é um país continental, e não serão 8 mil médicos que resolverão o problema.

A questão de fundo e que sequer foi arranhada pelo Mais Médicos é porque a distribuição dos médicos é tão desigual no Brasil. Se conseguíssemos que 10% dos médicos brasileiros que hoje estão em regiões mais favorecidas se deslocassem para regiões menos favorecidas, isto significaria um contingente equivalente a 5 vezes os médicos cubanos. Por que os médicos cubanos topam ir para regiões carentes e os brasileiros não?

A resposta é simples: os cubanos são funcionários do governo de Cuba e obedecem às ordens de seu chefe. Com um detalhe: não há outro emprego possível. Ou trabalha para o governo ou… bem, melhor nem pensar. Quando o Ministério do Trabalho autua empresas por condições de trabalho similares à escravidão, normalmente o que ocorre é que a empresa arma uma espécie de armadilha para o funcionário, obrigando-o a trabalhar na empresa para pagar dívidas. Não tenho dúvidas de que o Ministério do Trabalho, sob os mesmíssimos critérios, autuaria o governo de Cuba por trabalho similar à escravidão com relação aos seus médicos.

Então, somente com “contratos de trabalho” desta natureza foi possível preencher, mal e mal, as vagas do Mais Médicos. Há algo de muito errado nisso. Espanta-me que “especialistas” encarem a situação dos médicos cubanos como “normal” e até “essencial” para a saúde pública brasileira. Se as mesmas condições de trabalho fossem oferecidas aos médicos brasileiros (25% da bolsa recebida retida pelo governo, proibição de atuar em qualquer outra atividade, família presa em uma ilha) um clamor popular se levantaria. Mas como se trata da gloriosa Revolução Cubana, fica tudo por isso mesmo.

Outro ponto importante, e que merece reflexão, é a formação desses médicos. O programa Mais Médicos não exige a revalidação do diploma obtido por médico no exterior. Ou seja, o sujeito pode atuar como médico no território brasileiro sem ter sido reconhecido oficialmente como médico pelas autoridades competentes locais.

Ok, talvez essa seja uma saída para a falta de médicos: relaxar as exigências na formação. Por exemplo, formandos que não passassem no exame do Cremesp ou dos outros conselhos regionais poderiam trabalhar apenas em regiões com cobertura de até 1 médico por mil habitantes. Médicos sem exame de validação por médico sem exame de validação, prefiro dar chance aos estudantes brasileiros do que aos cubanos. Eu particularmente acho que esta seria uma alternativa interessante para prestar atenção básica a populações carentes, que não precisam de grandes especialistas.

– Ah, mas é muito arriscado deixar a saúde das pessoas nas mãos de médicos com formação fraca.

Pois é. Os médicos cubanos não são obrigados a prestar o Revalida. Quem garante a qualidade? Fidel Castro? Há uma lenda urbana que reza que os médicos cubanos estão entre os melhores do mundo. Se é assim, por que não podem prestar o Revalida?

O Mais Médicos, como tudo o que foi feito no governo do PT, foi mais uma jogada de marketing do que uma solução estrutural para o problema da saúde pública brasileira. E, de quebra, ajudou as finanças de um governo amigo. O fim dessa vergonha vai causar transtornos localizados, mas não será nem de longe a tragédia que dizem, como espero ter mostrado através das estatísticas. E, quem sabe, permitirá ao novo governo pensar em formas mais estáveis e estruturais de distribuir os médicos pelo país.