O caos sem os médicos cubanos

O Valor Econômico de hoje trás dados específicos de uma cidade onde a secretaria de saúde diz que haverá caos se os cubanos forem para casa.

Santa Luzia, na região metropolitana de BH, tem 218 mil habitantes e 15 médicos cubanos, o que perfaz 0,07 médicos por mil habitantes. Mesmo se considerarmos apenas os 58 mil habitantes que a secretaria diz que serão afetados, temos uma relação de 0,26 médicos por mil habitantes atendidos. Infelizmente não há dados sobre o total de médicos da cidade, mas para uma média brasileira de 2,18 médicos por mil habitantes, parece não ser suficiente para piorar um caos que já deve existir hoje.

Estes números servem para corroborar o que disse no meu post de ontem: os médicos cubanos mal fazem cócegas nas terríveis estatísticas da saúde pública brasileira.

Também corroborando meu post de ontem, o Valor trás histórias comoventes de pacientes atendidos pelos cubanos, para nos convencer de que farão falta. Sim, para essas pessoas sem dúvida farão falta. Elas tiraram o bilhete de loteria de ter um médico cubano disposto a trabalhar em regime de semiescravidão. Agora, este bilhete lhes será retirado.

A tragédia já existe, nada vai mudar

Cuba vai retirar os seus médicos do Brasil. Segundo os “especialistas” em saúde pública, isto é uma tragédia de grandes proporções que se abaterá sobre os mais pobres, que não tinham acesso a médicos e passaram a ter depois do programa patrocinado pelo PT.

Será isso mesmo? Vejamos.

O último dado no site do Programa Mais Médicos, de 2015, indicava a participação de 18.240 médicos no programa. Destes, cerca de 8.500 são cubanos, o que totaliza cerca de 45% do total do programa.

Por outro lado, no final de 2017, o Brasil contava com 451.777 médicos, segundo censo patrocinado pelo Conselho Federal de Medicina. Os médicos cubanos, portanto, representam 1,9% do total de médicos do país.

Colocando proporcionalmente em termos populacionais, que é normalmente como se mede a cobertura de médicos em um país: o Brasil conta com 2,18 médicos por 1.000 habitantes. Com os cubanos, este número vai para 2,22. Um acréscimo de apenas 0,04. A média dos países da OCDE é de 3,4. Como vimos, os médicos cubanos não fazem nem cócegas nas necessidades do país.

– Ah, mas o problema não é a quantidade, é a distribuição dos médicos pelo país.

Sem dúvida! Segundo o mesmo censo do CFM, Brasília tem 4,35 médicos por mil habitantes (mesmo índice da Suíça), enquanto o Maranhão conta com apenas 0,87 médicos por mil habitantes, um índice africano. Então, os médicos cubanos vieram para suprir esta deficiência de distribuição.

Mas, cuidado com as estatísticas! Segundo vários reportagens por aí, os médicos cubanos estariam beneficiando uma população de 65 milhões de brasileiros, supostamente aqueles com menor cobertura. Isto significa 0,13 médicos/mil habitantes adicionais. Considerando que esses 65 milhões tenham uma cobertura equivalente à do Maranhão, levantada pelo CFM, isto significaria um aumento de quase 15% no número de médicos para este público. Só que a cobertura continuaria (como continua) sendo de país africano.

Em resumo, a saída dos cubanos do Brasil não representa uma tragédia humanitária. A tragédia continua existindo, com ou sem os médicos cubanos. Claro que as reportagens vão entrevistar aquela comunidade que dependia daquele médico cubano, tão bom, tão humano. Sim, há histórias comoventes. Mas para cada história tocante, há outra dez ou vinte de comunidades que continuaram sem ver a cor de um avental branco. A tragédia da saúde pública brasileira não se resolve com golpes publicitários, como foi o desembarque dos médicos cubanos usando justamente aventais brancos. O Brasil é um país continental, e não serão 8 mil médicos que resolverão o problema.

A questão de fundo e que sequer foi arranhada pelo Mais Médicos é porque a distribuição dos médicos é tão desigual no Brasil. Se conseguíssemos que 10% dos médicos brasileiros que hoje estão em regiões mais favorecidas se deslocassem para regiões menos favorecidas, isto significaria um contingente equivalente a 5 vezes os médicos cubanos. Por que os médicos cubanos topam ir para regiões carentes e os brasileiros não?

A resposta é simples: os cubanos são funcionários do governo de Cuba e obedecem às ordens de seu chefe. Com um detalhe: não há outro emprego possível. Ou trabalha para o governo ou… bem, melhor nem pensar. Quando o Ministério do Trabalho autua empresas por condições de trabalho similares à escravidão, normalmente o que ocorre é que a empresa arma uma espécie de armadilha para o funcionário, obrigando-o a trabalhar na empresa para pagar dívidas. Não tenho dúvidas de que o Ministério do Trabalho, sob os mesmíssimos critérios, autuaria o governo de Cuba por trabalho similar à escravidão com relação aos seus médicos.

Então, somente com “contratos de trabalho” desta natureza foi possível preencher, mal e mal, as vagas do Mais Médicos. Há algo de muito errado nisso. Espanta-me que “especialistas” encarem a situação dos médicos cubanos como “normal” e até “essencial” para a saúde pública brasileira. Se as mesmas condições de trabalho fossem oferecidas aos médicos brasileiros (25% da bolsa recebida retida pelo governo, proibição de atuar em qualquer outra atividade, família presa em uma ilha) um clamor popular se levantaria. Mas como se trata da gloriosa Revolução Cubana, fica tudo por isso mesmo.

Outro ponto importante, e que merece reflexão, é a formação desses médicos. O programa Mais Médicos não exige a revalidação do diploma obtido por médico no exterior. Ou seja, o sujeito pode atuar como médico no território brasileiro sem ter sido reconhecido oficialmente como médico pelas autoridades competentes locais.

Ok, talvez essa seja uma saída para a falta de médicos: relaxar as exigências na formação. Por exemplo, formandos que não passassem no exame do Cremesp ou dos outros conselhos regionais poderiam trabalhar apenas em regiões com cobertura de até 1 médico por mil habitantes. Médicos sem exame de validação por médico sem exame de validação, prefiro dar chance aos estudantes brasileiros do que aos cubanos. Eu particularmente acho que esta seria uma alternativa interessante para prestar atenção básica a populações carentes, que não precisam de grandes especialistas.

– Ah, mas é muito arriscado deixar a saúde das pessoas nas mãos de médicos com formação fraca.

Pois é. Os médicos cubanos não são obrigados a prestar o Revalida. Quem garante a qualidade? Fidel Castro? Há uma lenda urbana que reza que os médicos cubanos estão entre os melhores do mundo. Se é assim, por que não podem prestar o Revalida?

O Mais Médicos, como tudo o que foi feito no governo do PT, foi mais uma jogada de marketing do que uma solução estrutural para o problema da saúde pública brasileira. E, de quebra, ajudou as finanças de um governo amigo. O fim dessa vergonha vai causar transtornos localizados, mas não será nem de longe a tragédia que dizem, como espero ter mostrado através das estatísticas. E, quem sabe, permitirá ao novo governo pensar em formas mais estáveis e estruturais de distribuir os médicos pelo país.

Cuidado com o seu ponto de vista

O tal do”bônus ético” pago pelo PSG aos seus jogadores tem causado polêmica no mundo do futebol. Segundo uma reportagem publicado ontem no Estadão, Neymar e companhia ganhariam o tal bônus por não criticarem o técnico em público, não serem expulsos, não chegarem atrasados aos treinos e até por aplaudirem a torcida após o jogo. Afinal, é ético que os atletas sejam pagos para fazer aquilo que não passa de uma obrigação de qualquer ser humano, que é agir bem?

A polêmica é indevida e mostrarei porque.

É muito comum e estamos todos acostumados a que os clubes multem seus atletas por mau comportamento. Chegou atrasado no treino? Multa. Foi expulso? Multa. Criou confusão? Multa. Isso está previsto no contrato e a ninguém ocorre que seja estranho ou injusto. Pelo contrário, a quem quer que se pergunte, todos acharão muito justo e razoável.

Do ponto de vista estritamente econômico, não faz a mínima diferença uma multa por mau comportamento ou um bônus por bom comportamento. Levar uma multa por chegar atrasado ou um bônus por chegar na hora terá exatamente o mesmo efeito no bolso do atleta, correspondente a exatamente o mesmo ato. Por que então aceitamos naturalmente a multa e torcemos o nariz para o bônus? Esta pergunta foi respondida por dois psicólogos israelenses, Daniel Kahneman e Amos Tversky, que criaram o que se convencionou chamar de Finanças Comportamentais. Kahneman ganhou o prêmio Nobel de economia em 2002 (Tversky já havia falecido) por este trabalho, publicado em 1979.

O artigo de Kahneman e Tversky que mereceu o Nobel chama-se The Prospect Theory, o que, em uma tradução livre, seria algo como A Teoria da Perspectiva. Segundo os dois psicólogos, as pessoas tomam decisões diferentes para o mesmo problema conforme o problema lhes é apresentado.

Um exemplo clássico (vou citar de memória, os números podem não ser estes), é a decisão sobre adotar uma vacina em uma comunidade. A um grupo de pessoas, o problema foi apresentado da seguinte forma: “uma comunidade de 600 pessoas vai receber a vacina. Destas, estima-se que 400 se salvarão. Você adotaria esta vacina?” Para um segundo grupo, o enunciado era diferente: “uma comunidade de 600 pessoas vai receber a vacina. Destas, estima-se que 200 irão morrer. Você adotaria esta vacina?”

A maioria (cerca de 70%) dos que leram a pergunta em sua primeira forma respondeu que adotaria a vacina. Já no segundo grupo, surpreendentemente ocorreu o inverso: 70% das pessoas disse que NÃO adotaria a vacina! Note novamente que o problema é estritamente o mesmo. Mas a forma de apresentá-lo leva a respostas completamente diferentes.

A isto os dois psicólogos deram o nome de Prospect Theory, ou seja, a decisão de um agente depende da sua perspectiva em relação ao problema. Isto tem muitas implicações práticas.

Por exemplo, se o governo quiser aprovar a reforma da Previdência, precisa apresentá-la como o fim dos privilégios e não como uma retirada de direitos. No fim, o efeito financeiro é absolutamente o mesmo. Mas a aceitação pública é totalmente diferente.

Outro exemplo foram as eleições: Bolsonaro somente se tornou uma opção palatável para uma parcela da população porque foi quem melhor encarnou o anti-petismo. Assim como o PT se tornou palatável para uma parcela da população porque era a alternativa anti-Bolsonaro. A pergunta respondida por esses eleitores não foi “você vota no Bolsonaro?” ou “você vota no PT?”, mas sim “você vota contra o PT?” ou “você vota contra o Bolsonaro?”. O efeito final é o mesmo, mas a mudança de perspectiva faz com que a escolha fique muito mais palatável.

Portanto, antes de criticar Neymar por ganhar um bônus por bom comportamento, preste atenção na forma como você pensa no problema. Pode estar aí o verdadeiro problema.

A pior precarização é o desemprego

A maior “precarização” do mercado de trabalho é o desemprego ou o emprego informal. Ao permitir que funcionários possam ser contratados em regimes flexíveis, a reforma trabalhista de Temer inclui mais trabalhadores formais no mercado de trabalho. O justo contrário da tal “precarização”.

Gente na rua

Quando li “setores que têm experiência em colocar pessoas nas ruas”, logo pensei no MBL e no Vem Pra Rua. Confesso que fiquei preocupado, o governo brigando logo de cara com esses movimentos.

Mas não, são só os sindicatos sem imposto sindical e manifestantes movidos a mortadela. Podemos seguir em frente.

A verdadeira liberal

Abaixo vai o trecho final do artigo de Mônica de Boule hoje, no Estadão.

Em primeiro lugar, Mônica não aceita que alguém seja liberal na economia e conservador nos costumes. Ela diz que este não seria o “verdadeiro liberalismo”. Na verdade, Mônica é “ultraortodoxa” em seu liberalismo dos costumes e uma “social-democrata” quando se trata do liberalismo econômico. Nada contra. Só não venha querer dar lições do que seja o “verdadeiro liberalismo”, como se houvesse apenas uma ideologia “correta”.

Mas vamos focar no que me interessa aqui: a tal “primazia dos mercados sobre a sociedade”, espécie de mantra supostamente entoado pelos que a economista pejorativamente chama de “ultraortodoxos”.

Do ponto de vista conceitual, não consigo entender o que significa essa “primazia dos mercados sobre a sociedade”. Essa frase só faria sentido em se considerando uma visão estreita dos “mercados”, que seriam somente as mesas de operações dos bancos e, talvez estendendo um pouco mais o conceito, as gerências das grandes empresas. Não concebo que uma economista com a formação de Mônica de Boule tenha esse entendimento estreito do que sejam os mercados.

Os “mercados” somos todos nós. Toda vez que um indivíduo toma uma decisão de consumo ou de investimento (e não tomar uma decisão também é uma decisão) está movendo os preços da economia. Os operadores do mercado financeiro são apenas isso: operadores, que procuram maximizar os ganhos dos verdadeiros senhores do mercado, os indivíduos e as empresas. Quando dizemos “a bolsa subiu”, é porque subiu o sentimento de confiança de que as empresas gerarão lucro no futuro. Lucro esse, adivinha, que depende dos consumidores, que são, no final do dia, aqueles que decretam o sucesso ou o fracasso das empresas.

Portanto, podemos definir os mercados como a sociedade tomando suas decisões de consumo e investimento. É apenas mais um aspecto da sociedade, uma das muitas formas de ver a sociedade, assim como há muitas formas de ver um ser humano. Dizer que existe uma “primazia dos mercados sobre a sociedade” é colocar os mercados fora da sociedade, como um alienígena que nada tem a ver com nossas vidas. Um agente a mais, que suga os recursos da “sociedade”.

Claro, assim como um indivíduo não se reduz às suas condições materiais, a sociedade não se reduz aos mercados. Isso é coisa de marxistas, para os quais não existe nada além da dimensão material da vida. Para um liberal, os mercados são apenas e tão somente a base material da sociedade. Cuidar para que a sociedade tenha uma base material sólida é condição sine qua non para que consiga desenvolver todas as suas potencialidades. Como diz o ditado, “em casa que falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão”.

Mônica de Boule se esconde atrás desses rótulos (ultraortodoxos, primazia dos mercados sobre a sociedade) para não colocar claramente o que pensa sobre os diversos desafios práticos que qualquer governo precisa enfrentar:

1) Se Mônica fosse presidente da República, de que forma enfrentaria o déficit fiscal? Procuraria ajustar como preconiza o atual e o futuro governo? Ou seria adepta do “déficit é vida” do governo Dilma? Um “verdadeiro liberal” ajustaria ou não as contas públicas?

2) Se Mônica fosse presidente da República, procuraria ajustar o déficit de maneira rápida ou lenta? O futuro governo quer ajustar de maneira rápida. Seria esta uma visão “ultraortodoxa”? Macri tentou um ajuste lento na Argentina e foi parar no colo do FMI. É isso o que preconiza o “verdadeiro liberalismo”? Não seria mais razoável deixar os adjetivos de lado e focar naquilo que importa, no caso, a paciência dos credores?

3) Se Mônica fosse presidente da República, que tipo de reforma de Previdência faria? Uma que colocasse o sistema em equilíbrio atuarial de longo prazo, ou outra, que preservasse os privilégios do funcionalismo público e da classe média? O atual e o futuro governo defendem a primeira hipótese. Isso é “ultraortodoxia”?

4) Se Mônica fosse presidente da República, manteria o Bolsa Família, como preconiza o futuro governo? Essa posição do presidente eleito é a “primazia dos mercados sobre a sociedade”?

5) Se Mônica fosse presidente da República, privatizaria todas as estatais, ou manteria as que têm “valor estratégico”, como defende o presidente eleito? Onde está a “ultraortodoxia”? De que lado Mônica está neste quesito?

6) Se Mônica fosse presidente da República, defenderia que uma carga tributária de 37% do PIB é razoável? É esse o tamanho do Estado que um “verdadeiro liberal” preconiza? Ou seria ainda maior, para que “a sociedade tenha primazia sobre os mercados”?

7) Se Mônica fosse presidente da República, estaria satisfeita com o atual sistema tributário? Ou procuraria simplifica-lo, como defende o “ultraortodoxo” ministro da Fazenda do presidente eleito?

Enfim, poderíamos continuar indefinidamente. Adoraria ler um artigo onde Mônica de Boule e outros economistas “verdadeiramente liberais” descrevessem suas soluções para os problemas práticos de qualquer governo, ao invés de simplesmente enfileirar adjetivos e frases de efeitos sem sentido, só para marcar uma posição. Seria muito mais útil para a sociedade que tanto dizem defender.

A raposa Kassab

A primeira vez que ouvi falar de Gilberto Kassab foi nas eleições para prefeito de São Paulo de 2004. Vice na chapa de José Serra, Kassab assumiu o cargo em 2006, quando Serra saiu para ser candidato a governador. Nos dois anos que transcorreram até as eleições de 2008, Kassab conseguiu emplacar o grande marco da sua administração, a Lei Cidade Limpa, em que se proibiam outdoors e quaisquer outros tipos de publicidade externa na cidade. Foi uma lei bastante popular, que lhe garantiu a reeleição em 2008, contra nada menos que Geraldo Alckmin e Marta Suplicy. E reeleger-se na cidade de São Paulo não é para qualquer um: o último prefeito da cidade reeleito havia sido José Pires do Rio, no longínquo ano de 1928. Costumo dizer que a cidade de São Paulo é uma máquina de moer prefeito.

A aprovação da lei Cidade Limpa foi o que me fez definitivamente prestar atenção em Kassab. Não pela lei em si, mas pela forma como foi aprovada. O prefeito assumiu o cargo em março e já em setembro aprovou a lei. Detalhe: por UNANIMIDADE da Câmara dos Vereadores. Quer dizer, a lei que iria levá-lo à reeleição foi aprovada inclusive com os votos do PT! Ok, tem fisiologismo, toma lá, dá cá, tudo isso faz parte do “prefeiturismo de coalização”. Mas unanimidade? Havia aí um talento para a articulação política que merecia ser acompanhado.

Em 2010, eleito deputado federal, já em março de 2011 Kassab fundou o PSD para cooptar deputados do PSDB e do DEM então insatisfeitos com o fato de serem oposição ao governo Dilma. Ao ser perguntado sobre a posição ideológica do novo partido, Kassab definiu-se como “nem de direita, nem de esquerda, nem de centro”, definição lapidar para o que se convencionou chamar de Centrão.

O PSD foi criado para ser governo. Qualquer governo. Aliou-se ao PT, mas pulou fora do barco no impeachment. Apoiou a candidatura de Alckmin, mas Kassab já anunciou que está pronto a apoiar qualquer projeto do novo governo “pelo bem do país”.

Agora, Kassab faz mais um gambito que merece atenção: será chefe da Casa Civil do governo Doria. Vale lembrar que Kassab é cria de José Serra, de quem foi vice-prefeito, e a quem é ligado até hoje. O PSDB está conflagrado e a ida de Kassab para este posto chave indica que o campo de Serra entrou na órbita de Doria. Além disso, Doria conta agora com um articulador político de primeira, um ponto sabidamente fraco de seu perfil. A entrada de Kassab no gabinete de Doria é mais um sinal das pretensões nacionais do governador eleito de São Paulo.

Por fim, chama a atenção o fato de Kassab não ter nem sequer tentado negociar um cargo no governo Bolsonaro. O PSD, pela primeira vez desde a sua fundação, tem um governo pela frente que promete não trocar cargos por apoio no Congresso. A relação deverá se dar em outros termos, se é que se dará de alguma forma. Só o tempo dirá. Uma coisa, no entanto, parece certa: no dia em que Kassab se tornar oposição, é que o governo acabou.

Como se fabrica uma fake news

Texto da página de Pedro Burgos


Um bom caso para entender como as fake news se espalham é a história de “bolsonaristas estão vaiando quando Freddie Mercury beija outro homem nas sessões de Bohemian Rhapsody.” Você já deve ter ouvido (ou compartilhado/comentado) o caso a essa altura.

Procurei bastante ontem, e o primeiro tuíte sobre o assunto já fala da história em segunda mão, a pessoa em questão não havia presenciado nada, mas “lido”. Foi publicada na hora do almoço do sábado. Teve 25 mil RTs (http://bit.ly/2AOkplc). Nas 10 mil interações do tuíte, a tônica é “na minha sessão não aconteceu isso, por sorte. O povo até chorou/aplaudiu. Mas que coisa horrível!”

O tuíte foi a única fonte da “reportagem” de duas “matérias” no dia seguinte. Logo de manhã cedo, estava no Diário do Centro do Mundo (http://bit.ly/2PKaMfH). A postagem na seção “Essencial” tinha o título “Bolsominions vaiam cenas gays do filme sobre Freddie Mercury, Bohemian Rhapsody”. Ela só tinha uma frase e uma imagem do tuíte. Não precisou mais para ter 21 mil curtidas no Facebook.

No Cinepop: “Brasileiros estão vaiando as cenas gays de ‘Bohemian Rhapsody’”. Teve 140 mil interações no Facebook. Para dar um verniz de jornalismo sobre um texto que só tem um tuíte de fonte, a coisa é colocada assim: “parece que uma parte dos espectadores brasileiros não gostaram das cenas homoafetivas exibidas no longa. E o descontentamento invadiu a Internet.”

Começaram a surgir dúvidas sobre o fato. Aí o Hypeness ontem usou um título comum a agências de “fact-checking”: “Sim, os brasileiros estão vaiando cenas gays da biografia do Queen no cinema.” 174 mil pessoas curtiram isso no Facebook. Dessa vez, o texto não traz sequer um link ou captura de imagem de um tuíte. A coisa é verdade porque é verdade, oras.

E aí chego ao cerne da questão. O texto do Hypeness passa a maior parte do tempo falando não sobre o “fato” do título, mas sobre a vida de Freddie, com coisas como “Talvez estas pessoas não saibam, mas apesar de raramente falar sobre a vida pessoal, o africano nascido em Zanzibar nunca fez questão de esconder a orientação sexual.” (na verdade ele se definia como bi).

O objetivo dessas postagens e compartilhamentos então não é denunciar um absurdo, mas demarcar a superioridade moral, o conhecimento sobre a ignorância e preconceito. Nas redes sociais, notícias são acessórios para o que os americanos chamam de “virtue signaling”. Então, quando a “notícia” é só uma muleta, ela ser verdadeira ou falsa é menos importante. Por isso que acho que fake news são mais consequência que causa. A crença em desinformação é o sintoma de uma sociedade fraturada, em que um lado acredita que o outro é capaz de coisas grotescas — seja encenar um atentado ou distribuir mamadeiras eróticas.

Veja, é perfeitamente possível que em alguma sessão pessoas tenham vaiado cenas do filme. E elas podem ser eleitoras do Bolsonaro, claro. Mas o comentário mais comum nessas notícias, mesmo de gente que acreditou nelas, foi de como nas sessões em que elas viram havia só choro de emoção — e até aplausos. Por que a exceção não confirmada é “notícia”, então? O fato de tantas pessoas escolherem um evento isolado sem qualquer comprovação para generalizar o comportamento do “inimigo” diz mais sobre essas pessoas do que elas imaginam. E a quantidade de jornalista que escreve artigo denunciando fake news e no minuto seguinte compartilha isso, olha…