Um país de maricas

Somos um país de maricas.

Não podemos ficar alguns dias em isolamento social que já começamos a reclamar.

Não conseguimos enfrentar uma recessão que já achamos que é o fim do mundo.

Não queremos tomar vacina porque vai fazer mal.

É muito mimimi.

Que geração é essa nossa?

Somos todos maricas

“Todos nós vamos morrer um dia”.

Sim, é verdade. É o único destino comum a todos nós.

Assim como é verdade que qualquer ser humano em plena posse de suas faculdades mentais luta com todas as suas forças para adiar esse dia.

Na torta lógica do presidente, quem procura adiar o dia de sua morte é um maricas.

Por que somente a COVID-19? Por que não enfrentar todas as outras doenças de peito aberto? Por que tomar vacinas? Por que olhar para os dois lados antes de atravessar a rua? Por que se submeter a cirurgias? Por que, afinal, tentar “fugir disso, fugir da realidade?”

Sim, somos todos maricas. O único valente é o presidente.

A importância dos partidos políticos

Um total de 1.216 candidatos concorreram nas eleições presidenciais norte-americanas: Joe Biden, Donald Trump e mais 1.214 candidatos independentes.

Surpreso com essa informação? Pois é. Quem está acostumado a ver apenas dois candidatos disputarem as eleições nos EUA, não imagina a quantidade de maluco que acha que pode ser presidente fora das máquinas partidárias dos partidos Democrata e Republicano.

Quem quer concorrer de verdade à cadeira no Salão Oval, submete-se ao escrutínio interno de um desses dois partidos, para, assim, poder contar com a máquina partidária trabalhando a seu favor. Uma campanha eleitoral do tamanho da americana envolve centenas de milhões de dólares, sem os quais não dá nem para começar a pensar em concorrer.

Pensei nisso quando vi as articulações entre Huck e Moro com vistas às eleições de 2022. Nenhum dos dois pertence a qualquer partido. E, mesmo assim, não são vistos como um dos 1.214 malucos que querem chegar à Casa Branca de forma independente. Pelo contrário: suas pretensões são levadas à sério pelos políticos e pela mídia.

Bolsonaro chegou ao poder em um partido de aluguel, ao qual não está mais afiliado. Nunca teve vida partidária, sempre foi um lobo solitário. A operação Lava-Jato desnudou um esquema de corrupção de tal envergadura, entranhada de tal forma nas máquinas partidárias e no financiamento eleitoral, que a ideia mesma de partido político tornou-se sinônimo de falcatrua. Bolsonaro surfou essa onda.

A questão de fundo, no entanto, é a seguinte: existe democracia sem partidos políticos fortes? Observando-se a experiência das maiores e mais estáveis democracias ocidentais, a resposta é um rotundo não. Ou, por outra: não temos experiência de democracias estáveis sem partidos políticos fortes.

O que é um partido? Um partido é um agrupamento de pessoas com ideias semelhantes e que trabalham de forma mais ou menos unida para chegar ao poder e implementar essas ideias. Um sistema de poder sem partidos fica refém de personalismos: o líder carismático, cuja palavra se torna lei.

No Brasil, temos dezenas de partidos políticos, assim como nos EUA, onde existem 52 partidos além dos democratas e republicanos. Apesar dessa miríade de partidos, somente alguns poucos realmente podem ter a pretensão de chegar ao poder máximo da República.

Um partido político não serve apenas para eleger o presidente. Há um sem número de cargos executivos e legislativos que formam a teia de sustentação de uma candidatura presidencial. Quer dizer, além do dinheiro, estamos falando também de apoio político para a campanha.

O fenômeno Bolsonaro foi único, em um momento particular da história brasileira. Pode até ser reeleito em 2022, com base em seus atributos pessoais, mas dificilmente fará o seu sucessor se não montar uma máquina partidária digna do nome. As dificuldades em montar o Aliança não autorizam muito otimismo nesse campo.

Achar que a democracia brasileira será uma exceção à regra das democracias ocidentais é uma ilusão. Aqui os partidos políticos continuarão a formar a infraestrutura do poder político. Bolsonaro já reconheceu esse fato implicitamente, ao liberar espaços para o Centrão em seu governo.

Huck e Moro, portanto, antes de pretenderem alguma coisa, precisarão encontrar partidos políticos que lhes deem base para a sua pretensão. Como disse acima, o fenômeno Bolsonaro foi único em um momento muito particular da história brasileira. Muito difícil se repetir, a não ser que outro fenômeno do porte da Lava-Jato ocorra novamente.

Uma verdadeira chapa de centro

“Conversa com Moro irrita aliados de Huck”.

Daí, você vai ler a reportagem, e o único “aliado” entrevistado é Flávio Dino, governador do Maranhão e “cotado” para compor chapa com Huck. A reportagem vai além, dizendo que Dino já defendeu publicamente a aproximação de Huck com Lula.

Estamos a 2 anos das eleições. Luciano Huck é apenas uma possibilidade eleitoral. Uma possibilidade remota. A esquerda sonhava com um cavalo de Tróia que a levasse de volta ao poder, e Huck podia fazer esse papel. Ao entabular diálogo com Moro, Huck desmancha ilusões.

O que é uma chapa de centro? Basicamente é uma que é vista como de esquerda por quem é de direita, e vista como de direita por quem é de esquerda. Huck e Moro desagradam bolsonaristas e lulistas. Talvez esteja nascendo aí uma verdadeira chapa de centro.

A responsabilidade da vítima

Na minha infância, havia um programa de televisão na Globo chamado A Grande Família. Era um seriado divertido sobre uma família meio tresloucada.

Em um dos episódios, um personagem (não me lembro qual) aparece todo ferido em casa. Havia sido atropelado. A história vai se desenrolando, até que se descobre que fora o tal personagem que havia causado o acidente para receber o seguro. A vítima era o criminoso e o criminoso era a vítima. Um plot twist, como diríamos hoje.

Esse episódio me veio à lembrança quando li e ouvi toda essa discussão a respeito do estupro em festas regadas a álcool. Estamos falando do grau de responsabilidade da vítima no crime da qual, supostamente, é vítima.

Para começo de conversa, e para estabelecer uma premissa sobre a qual todos vamos concordar, não existe crime se não existe intenção. Tanto é assim que, se uma pessoa é dopada e perde a consciência, não pode ser imputada por crime. E existe a figura da inimputabilidade, em que o indivíduo, seja por ser criança, seja por ser doente mental, não tem noção do que seja um crime. Intenção de cometer o crime, portanto, é um elemento essencial para a responsabilização do criminoso.

Mas, como em tudo o que envolve seres humanos, há muitos tons de cinza nessa “intenção”. Por exemplo, um motorista bêbado que atropela e mata uma pessoa. Obviamente, o motorista não tinha a intenção de matar aquela pessoa, mas se colocou em risco de fazê-lo ao dirigir bêbado. Temos aí a figura do crime culposo, em que não há a intenção de matar, mas houve um acidente que causou a morte. O fato de o motorista ter bebido agrava a circunstância, pois ele se colocou em risco de cometer um crime. Mas é menos grave do que um crime doloso, premeditado.

Vejamos o outro lado, o que nos aproximará do ponto que nos interessa. Uma pessoa atravessa uma grande avenida fora da faixa de pedestre, ao lado de uma passarela, é atropelada e morre. O motorista estava sóbrio, não estava usando o celular, tentou desviar, mas não conseguiu.

O motorista deve ser condenado? Entendo que não. Nesse caso, a vítima colocou-se em risco de morte, o motorista não conseguiu evitar o desfecho, por mais que tentasse. Neste caso, estar em plena posse de suas faculdades mentais ajuda o suposto criminoso a se safar da pena. Se estivesse bêbado, isso seria um agravante, não um atenuante.

Tendo lançado os alicerces do nosso edifício, vamos agora construir o entendimento da responsabilidade da vítima no seu próprio estupro.

Vamos começar com o caso clássico de estupro, em que não há dúvida de que houve o crime e de quem é o culpado (ainda que, como veremos mais à frente, até essa certeza pode restar abalada, a depender das premissas adotadas). A moça está voltando para casa por uma viela escura e erma, quando é surpreendida por um tarado, que a estupra ali sob a mira de uma arma. Não há dúvida, neste caso, de quem é a vítima e de quem é o criminoso.

O segundo caso é o que nos interessa. A garota vai vestida com uma minissaia a uma festa, toma drinks além da conta e “fica” com vários rapazes ao longo da festa. No final, mantém relações sexuais com um ou mais dos rapazes. No dia seguinte, alega que foi abusada, pois o sexo não foi consentido.

Vamos explorar a questão da intenção, que é o coração do crime. Consigo ver três alternativas:

1) Existe a intenção de manter relação mesmo sem o consentimento da vítima. O rapaz aproveita-se do fato de que a vítima não está em plena posse de suas faculdades para dar curso ao crime.

2) O rapaz, sob altas doses de álcool e de testosterona, não tem condições de pensar em consentimento, preservativo ou coisas do tipo. Age como um animal no cio e, como tal, é inimputável.

3) Do ponto de vista do rapaz, a vítima deu o seu consentimento implícito ao ir a uma festa de minissaia, ter bebido todas e ter ficado com todos.

Note que, nos três casos, NÃO HÁ consentimento explícito por parte da moça. Estamos aqui, logo de início, descartando a hipótese de que houve consentimento e de que a moça esteja mentindo a esse respeito. Ou seja, não estamos focando em algo semelhante ao que ocorreu no episódio da Grande Família, descrito no início, em que a vítima é o criminoso e vice-versa. Se restar provado, de alguma forma, que a moça está mentindo, de que houve o consentimento, a moça será processada por calúnia. Mas não é este o caso que nos interessa explorar aqui.

Pois bem. Na primeira alternativa, parece não haver dúvida de que ocorreu o crime, agravado pelo fato de a vítima não ter condições de se defender. Este caso parece pacífico. Vamos explorar as outras duas alternativas.

Não sou jurista, mas a segunda alternativa, a inimputabilidade por seguir os instintos, não me parece que se sustente. Se assim fosse, todos poderíamos nos escorar nessa desculpa. O tarado que espreita a moça no beco escuro também poderia alegar que não tinha domínio de suas faculdades mentais, tal o grau de testosterona no seu organismo. Seria quase como o caso do atropelamento do pedestre que atravessa fora da faixa. A moça colocou-se em situação de risco ao andar sozinha em uma viela escura e erma, e o rapaz estava passando por lá com sua alta dose de testosterona e não teve como desviar, acabou estuprando a moça. Parece-me óbvio que essa hipótese não se sustenta.

Não estou aqui negando o papel dos instintos animais que habitam a alma humana. Muitas vezes fazemos coisas por impulso, levados por nossas emoções, e nos arrependemos depois. Mas entendo que a culpabilidade continua existindo, pois somos também racionais, e devemos saber controlar nossas emoções. Se não conseguimos, devemos ser afastados do convívio social. No caso da festa, o fato de o rapaz ter tomado todas ou, inclusive, estar drogado, agrava a culpabilidade, pois colocou-se conscientemente em risco de cometer crime. É o caso do motorista bêbado.

Vamos à terceira alternativa. Esta é, de longe, a mais controversa, aquela que mais envolve julgamentos morais a respeito do comportamento da mulher. Seria o fato de vestir minissaia, beber e ficar com rapazes um sinal implícito de consentimento para a consumação do ato sexual? Note que não estou falando de colocar-se em situação de risco. O sujeito que atravessa fora da faixa também não está consentindo no próprio atropelamento, apesar de estar se colocando em situação de risco. A moça que anda sozinha em uma viela escura também está colocando-se em situação de risco, e nem por isso alguém pensa que está, com isso, consentindo em ter relação sexual com o tarado. Não se trata, portanto, de analisar o comportamento de risco, ainda que o risco esteja presente. A terceira alternativa trata da moralidade da escolha da mulher.

Em nossa sociedade, a mulher é vista como corresponsável pelo seu próprio abuso, pois estaria consentindo implicitamente ao se vestir e se comportar de maneira considerada imprópria. A dança do acasalamento humano é extremamente complexa, como tudo o que envolve seres humanos. Esse entrelaçamento de razão e emoção, entre anjo e animal, dá margem a um caleidoscópio de interpretações.

Não é à toa que praticamente todas as religiões estabeleçam o casamento como o ambiente adequado para a relação sexual. Não há consentimento mais explícito do que o pacto nupcial. Neste pacto, a mulher dá o seu consentimento público, não há dúvida em relação a isso. (Ainda que, hoje em dia, mesmo esse consentimento público precisaria ser renovado a cada relação sexual, caso contrário teríamos a figura do “estupro marital”. Sim, a coisa é complexa. Sigamos). No momento em que, em nossa sociedade, a relação sexual passou a ser aceita fora do ambiente nupcial, o consentimento da mulher passou a ser mais difícil de identificar.

Vamos voltar ao caso em foco. A moça afirma que não deu o seu consentimento. A sociedade diz que a forma de se vestir e de se comportar implicam em um consentimento, ainda que não explícito. Como resolver esse impasse?

Não tem solução. Cada um vai ter o seu ponto de vista de acordo com a sua visão de mundo. Eu, particularmente, acho que o consentimento deve ser explícito, ainda que reconheça a dificuldade de se identificar isso em uma festa regada a muito álcool e drogas. A vida real é sempre mais complexa que as teorias. Mas, se a moça diz que não quis, a sua palavra deve ter mais peso do que as circunstâncias. É isso o que eu penso.

É comum dizermos para nossas filhas que tomem cuidado em festas, como se a transa fosse uma via de mão única. Na verdade, os rapazes também fariam bem em se cuidar e evitar transar com moças com alto teor etílico, caso queiram evitar dor de cabeça para as suas vidas. Pois a intenção e o consentimento são conceitos muito fluidos nessas circunstâncias.

Aceitando a derrota

Os apoiadores de Donald Trump têm lembrado a injunção que Al Gore fez na Suprema Corte para a recontagem dos votos na Flórida, responsável pela apertadíssima margem da vitória de George Bush no ano 2000. Trump estaria apenas exercendo o seu direito de espernear, como Gore fez em 2000 e Aécio fez em 2014, quando também pediu auditoria dos votos.

Não concordo.

Trump está fazendo algo completamente diferente. O presidente dos EUA está colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral inteiro, ao usar a palavra “fraude”. Gore e Aécio pediram recontagem e auditoria em pleitos muito apertados. A diferença na Flórida foi de apenas 537 votos! Trump vem dizendo que o próprio processo eleitoral estaria viciado criminosamente pelo partido adversário. E vem dizendo isso mesmo antes do pleito começar.

Ir em busca de direitos é prerrogativa de qualquer cidadão que se sinta prejudicado. Isso é uma coisa. Outra coisa é envenenar o ambiente democrático, colocando em dúvida a lisura do próprio processo.

Al Gore aceitou a determinação da Suprema Corte pela não recontagem dos votos. Não saiu da disputa dizendo que havia sido vítima de uma fraude. Vamos ver se Trump acusará a Suprema Corte de conivência com uma fraude eleitoral.

Quem paga?

Esta funcionária, que traduz para libras as falas de Bolsonaro, é paga com dinheiro do fundo eleitoral? Ou é uma funcionária do Palácio do Planalto?

Por que essa questão é importante? Simples: a única fonte oficial de recursos públicos (nossos impostos) para as campanhas eleitorais é o fundo eleitoral. Caso essa funcionária esteja sendo paga pelo fundo eleitoral de algum partido, tudo bem.

Caso contrário, temos a utilização da máquina governamental para o apoio a alguns candidatos. Entendo que se trata de abuso de poder político, passível de cassação das candidaturas ou, se eleitas, de seus mandatos.

A relativização do estupro

Rodrigo Constantino foi demitido de quase todos os veículos de comunicação onde trabalhava.

Acho que todos viram a fala de Constantino que deu motivo para estas medidas drásticas. Ele basicamente diz que colocaria sua filha de castigo caso ela saísse para uma festa, ficasse bêbada e fosse abusada na festa. E não denunciaria o abusador.

A filha do comentarista fez um vídeo tocante defendendo o pai, afirmando que ele, como qualquer pessoa decente, não é, nem poderia ser, a favor do estupro.

Pois bem. Vamos começar por essa última parte. Parece óbvio que ninguém, em sã consciência, seja a favor do estupro. Nem bandido é a favor. Dizem que estuprador, na cadeia, precisa ficar separado dos demais presos. Caso contrário corre o risco de ser devidamente cancelado do mundo dos vivos. No mínimo, vai sentir na própria pele o que é ser abusado.

Estamos falando, neste caso, do estupro a seco, aquele que ocorre nos caminhos ermos das cidades e dos campos. A moça sozinha, voltando para casa, é surpreendida pelo tarado, que força uma relação sexual obviamente não consentida. Este parece ser o caso em que não há dúvida de que não houve consentimento.

Constantino, no entanto, está se referindo a uma outra circunstância: a menina se embebedou, “ficou” com meninos durante a festa e, portanto, teria como que “consentido implicitamente” na relação sexual. Ou até explicitamente, mas não se lembra, dado o teor alcoólico.

Seria o primeiro caso “preto no branco”, enquanto o segundo caso entraria em uma espécie de “zona cinzenta”, onde a culpabilidade seria, digamos assim, fluida? Creio que não.

Vamos combinar que abuso é abuso, independentemente da quantidade de álcool no sangue. Aliás, não sou jurista, mas parece-me que abusar de uma pessoa bêbada é até mais grave do que se estivesse sóbria, pelo simples fato de a pessoa abusada não ter o devido discernimento para dizer sim ou não.

É óbvio que, quando temos filhos, damos os conselhos de sempre: não ande sozinho por aquela rua, não leve celular no bloquinho de carnaval, não beba na festa, etc. Isso é uma coisa, são os cuidados básicos de segurança que toda pessoa deve observar. Outra coisa completamente diferente é dizer que a falta desses cuidados justifica o ato de quem se aproveita para roubar, matar ou estuprar, a ponto de, inclusive, poupar o bandido de ser denunciado! Se minha filha chegasse em casa dizendo que havia sido abusada, as circunstâncias pouco importam. A única coisa que importa é a palavra dela, que indica não consentimento. E se não houve consentimento, é estupro. Ponto, sem vírgula

.O que está implícito na fala do Constantino, e que justifica o repúdio e a sua demissão de vários veículos de comunicação, é justamente a ligação entre “ficar” e embebedar-se em uma festa com o consentimento de uma relação sexual. E, como bem notou uma amiga, esta ligação só existe para mulheres. Homem pode se embebedar à vontade que a ninguém ocorre que ele esteja a fim de ser estuprado.

Enfim, Rodrigo Constantino se notabilizou por ser uma voz do conservadorismo brasileiro. Voz meio estridente, mas ok. Neste caso, no entanto, o que poderia ser, com um pouco de boa vontade, um libelo pela disciplina dos filhos (um valor caro ao conservadorismo) se tornou uma relativização do estupro. Triste papel.

O moto-perpétuo da economia

Luis Eduardo Assis, ex-diretor do BC, nos brindou com um artigo no Estadão de 26/10/2020, em que defende que não há problema em um governo se endividar na própria moeda, pois não haveria risco de calote. Em outras palavras, comprar títulos de um governo na moeda local não teria risco.

A lógica é a seguinte: “um aumento de gastos públicos equivale à criação de depósitos bancários, que elevarão as reservas dos bancos, que serão utilizadas para a compra de títulos da dívida pública, que financiarão o gasto inicial”. O trecho segue abaixo.

Se perdeu? Eu explico: os gastos públicos vão, de uma maneira ou de outra, parar no sistema bancário (as empresas ou pessoas destinatárias dos gastos públicos acabam depositando esse dinheiro nos bancos). Os bancos não tem outra alternativa a não ser comprar títulos públicos com esse dinheiro, o que financiará os gastos do públicos. Fecha-se o círculo. Qual o problema com esse raciocínio?

O problema é que, se fosse assim, estaria inventado o moto-perpétuo. Como sabemos, o moto-perpétuo é aquele aparelho imaginário que funciona com a própria energia que gera. Por exemplo, um motor que gera energia elétrica e usa essa energia para o seu próprio funcionamento, não necessitando de fonte externa. Já imaginou? Seria o fim de qualquer crise de energia. Mas não, infelizmente o moto-perpétuo não existe.

Se os governos pudessem emitir dívida em sua própria moeda sem que houvesse o risco de calote, não haveria país pobre no mundo. Seria o “moto-perpétuo econômico”: o governo emite dívida, faz os gastos públicos, e esse mesmo dinheiro volta para os cofres do governo, que inicia novamente o processo. Onde está o furo?

O furo está em que os gastos do governo normalmente destroem valor. E é a criação de valor que gera crescimento econômico, não o dinheiro criado do nada pelo governo através da emissão de dívida pública. O lucro, no final, é que é a medida do valor criado.

Se os negócios obtêm menos dinheiro do que investiram para produzir o que quer que seja, se inviabilizam e morrem. O único ente que “não morre” é o governo. Os países não morrem porque podem emitir dinheiro e dívida e podem forçar o recolhimento de impostos. De modo que o prejuízo do governo é coberto pelo aumento do dinheiro em circulação (inflação), pelo aumento da dívida e pelo aumento dos impostos. Mas, toda vez que faz isso, na verdade o governo está distribuindo o seu prejuízo pela sociedade que o financia.

Poderíamos pensar no exemplo mais extremo de contratar operários para cavar buracos e depois tapá-los, mas vamos usar um exemplo mais real e indiscutível de gasto do governo: investimentos em educação. É óbvio que o investimento em educação é essencial. Mas é preciso que seja bem feito, de modo que o valor criado pela mão de obra formada seja maior do que o investimento realizado. Caso contrário, o governo terá prejuízo, da mesma forma que teria se tivesse remunerado pessoas para cavar buracos e depois tapá-los. E esse prejuízo será distribuído pela sociedade que financia o governo. Afinal, como sabemos, governos “não morrem”.

Voltando ao artigo, o autor se pergunta o que podem fazer os financiadores da dívida pública a não ser continuar financiando a dívida pública. Ao lembrar que os donos do capital podem simplesmente ir embora com o dinheiro, Assis considera que o câmbio flutuante seria um antídoto mais do que suficiente para evitar esta fuga. O câmbio desvalorizado funcionaria como um pedágio absurdamente caro para quem quisesse transitar por essa estrada que leva o dinheiro para o exterior. Afinal, quem iria retirar o seu dinheiro do país se tivesse que comprar dólar, por exemplo, a R$ 10,98? (Veja o trecho abaixo – aliás, este número está incorreto, pois não considerou a inflação nos EUA. O correto é corrigir pelo diferencial da inflação entre Brasil e EUA, o que daria algo próximo a R$ 7,60. Mas, segue o jogo.)

Esta é outra falácia. Se esta mesma pergunta fosse feita há um ano, usando R$5,00 como valor do dólar, certamente a resposta seria “haveria menos interesse” em enviar dinheiro para fora. No entanto, o capital continua saindo não com o dólar a R$ 5,00, mas a R$ 5,80. Ocorre que os investidores não querem saber o nível atual do dólar, mas se este nível vai ficar por aí ou vai subir ainda mais.

Estive na Argentina há quase 7 anos, quando o dólar estava sendo negociado a 10 pesos. Era o dólar Maradona. Hoje, o câmbio oficial está em 75 pesos e o paralelo está o dobro disso. Se os investidores avaliarem que R$ 10 é um nível daí para cima, vão continuar saindo do mesmo jeito. E, convenhamos, contar com o dólar a R$ 10 para evitar a saída de capitais é o mesmo que quebrar as pernas de um menino para que ele pare de correr. Se chegar nesse nível, é que muita coisa deu errado antes. E se continuar errado, não há motivo para achar que o dólar pare em R$ 10. Assim como não há motivo para achar que o dólar vai parar em R$ 5,80 se não fizermos a lição de casa.

Economistas como Luis Eduardo Assis põem a ênfase no crescimento econômico, e chamam de “fundamentalistas” os que estressam a questão fiscal. De fato, somos “fundamentalistas”, no sentido de que colocamos a ênfase nos fundamentos. Quando vamos construir uma casa, colocamos primeiro os alicerces. O equilíbrio fiscal é o alicerce da casa. A casa é o crescimento econômico. Assim como não há casa sem alicerce, não existe crescimento sem equilíbrio fiscal. Ninguém é maluco de achar que colocar os alicerces é o suficiente para ter uma casa. Nem ninguém são tentará construir uma casa sem alicerces. Uma coisa depende da outra. Essa dicotomia entre equilíbrio fiscal e crescimento econômico é simplesmente falsa.