Por que a Ford está saindo do Brasil?

Em 1990 (século passado, portanto) fui admitido no programa de trainee do Lloyds Bank. Não era minha intenção trabalhar em banco quando me formei em engenharia, mas era o emprego possível em um país destroçado pelo Plano Collor.

E que emprego! Não dava para reclamar. Não podia haver maior símbolo de solidez. Um dos maiores bancos do Reino Unido, o Lloyds Bank tinha, à época, nada menos que 127 anos de presença no Brasil. Depois do Banco do Brasil, era a casa bancária mais antiga em atividade no país.

Ao longo da década de 90, eram comuns os boatos de saída do banco do país. A argumentação da diretoria era sempre a mesma: com 127, 130, 135 anos de presença no Brasil, o banco saberia sobreviver aos problemas do nosso país e não tinha a mínima intenção de interromper essa história.

Saí do Lloyds Bank em 2000 e, em 2003, o Lloyds Bank saiu do Brasil, vendendo seus ativos para o HSBC e colocando um epílogo em 140 anos de história. O HSBC, alguns anos depois, venderia seus ativos para o Bradesco, seguindo o mesmo caminho.

Dizem que o melhor negócio do mundo é um banco bem administrado e o segundo melhor, um mal administrado. Não é bem assim. Bancos, como qualquer negócio, precisa ser bem administrado. E, como qualquer setor da economia, segue um determinado ciclo de vida. No caso, a indústria bancária no Brasil, principalmente no varejo bancário, entrou em sua fase de maturidade nos anos 90-2000. Nessa fase do ciclo, as empresas que têm a pretensão de sobreviver precisam ganhar escala e investir muito, principalmente em tecnologia, para simplesmente permanecer no jogo. O Lloyds Bank avaliou que não valia a pena e resolveu abandonar a mesa. HSBC e Citibank tomaram a mesma decisão alguns anos depois.

Assim como a queda de um avião é o resultado de uma cadeia de acontecimentos que resulta no acidente, uma decisão empresarial é normalmente o resultado de uma série de fatores e decisões anteriores. No caso do Lloyds Bank, a indústria bancária avançou para a consolidação e o banco decidiu não acompanhar. Claro que o ambiente de negócios complexo e volátil teve o seu papel, talvez em um ambiente melhor a decisão tivesse sido diferente. Talvez.

Todo esse filme me passou pela cabeça quando a Ford anunciou a sua decisão de sair do país depois de mais de 100 anos de atividades. Assim como os bancos, as montadoras também têm essa aura de que têm margens de lucro absurdas, pois os carros no Brasil “são muito caros”. O fechamento da Ford não orna com essa percepção.

Claro, o ambiente de negócios complexo e volátil deve ter tido o seu papel na decisão. Mas a Ford está inserida em uma indústria em profunda transformação e, pelo menos no Brasil, estava perdendo terreno há anos. A decisão de sair do Brasil é fruto dessa conjunção de fatores, difícil apontar o dedo para um só. Mas, claro, não deixa de ser impactante.

Fica aqui minha solidariedade às famílias dos funcionários da Ford, alguns dos quais são meus clientes e amigos.

O que é a realidade?

Ao longo dos séculos, os filósofos se debateram com essa questão. No início era tudo muito simples: realidade é aquilo que nós vemos e sentimos. Os sentidos humanos eram a porta de entrada da realidade em nossas mentes. A realidade estava fora do ser humano, que tinha a missão de apreendê-la.

A partir de Descartes, no entanto, esta noção dá um rodopio de 180 graus. “Penso, logo existo” é algo completamente diferente de “Penso porque existo”. A realidade, a partir de Descartes, passa a ser, de alguma maneira, criada pela mente humana. A existência está subordinada ao pensamento: “penso, logo existo”. Se eu não pensasse, não teria nenhuma evidência da minha existência.

Claro que nós e o mundo existimos além da nossa própria consciência. Mas, ao reduzir ao pensamento a única evidência de nossa existência, Descartes abre a caixa de Pandora do idealismo. Ou seja, da ideia de que nós criamos a nossa própria realidade.

Filmes como Show de Truman e Matrix brincam com esse conceito. Existe uma falsa realidade montada para nos enganar. Nos movemos nessa falsa realidade como se fosse a verdadeira. Os protagonistas descobrem, horrorizados, que foram manipulados. Mas, nestes casos, ainda assim existe uma realidade “verdadeira”, aquela que manipula a falsa realidade. Saindo da falsa realidade, temos uma realidade “de verdade”.

Mas a coisa pode ser mais complexa. Em um episódio da série Black Mirror, um rapaz serve como piloto de testes de um vídeo game ultrarrealista. Durante o episódio, ele “volta para a realidade”, somente para descobrir que ainda estava dentro do jogo. O espectador termina o filme sem ter certeza se o final é ainda um sonho ou a “realidade”.

Nos casos acima, a realidade é criada externamente. Mas pode ser criada também internamente, por uma doença psíquica. Nos filmes Uma Mente Brilhante e Clube da Luta, o personagem principal é vítima de alucinação, e contracena com personagens criadas pela sua própria mente. Quem está fora de sua mente vê a realidade como ela é, enquanto o protagonista jura que aquilo que vê é a própria realidade.

Toda essa digressão me veio à mente diante desta questão das alegações de fraudes na eleição dos EUA. Qual a realidade?

Em todos os exemplos acima, há um momento em que o protagonista descobre a realidade. A verdade verdadeira, aquela que está fora da nossa mente e percepções. Truman descobre a verdade depois de desconfiar de vários erros nas filmagens, John Nash descobre que suas alucinações não envelhecem, o narrador de Clube da Luta é chamado pelo nome de sua alucinação. São momentos-chave dos filmes, em que a realidade se faz presente em toda a sua crueza.

No filme A Origem, em que Leonardo de Caprio faz o papel de uma espécie de “navegador de sonhos”, ele precisa ter um objeto, uma espécie de token, que o ajude a distinguir o sonho da realidade. No caso, ele usa uma espécie de pião. Se o pião não cai, ele está no sonho. Assim como o token usado pelo personagem de Leonardo de Caprio, também precisamos de algo firme, seguro, que nos permita distinguir o que é realidade daquilo que simplesmente está em nossa mente. Não é tão fácil quanto nos filmes.

No caso das eleições americanas, cada lado tem o seu “token” de estimação, aquele que lhe dá a segurança de que está do lado da realidade. Do lado daqueles que acreditam que houve fraude, o token é a convicção de que “Sleepy Joe” não teria condições de vencer Mr. Trump em uma eleição limpa. Como disse o chefe do Partido Republicano de Waukesha, um condado do Wisconsin, em uma matéria da The Economist, “Não há absolutamente nenhuma maneira de Biden ter superado Barack Obama no condado de Waukesha pelos números que eles estão proclamando”. Esta convicção faz com que a única explicação plausível, a única realidade possível, seja a fraude.

Do lado de quem não acredita na fraude, o “token” é a tradição de mais de 200 anos ininterruptos na realização de eleições, em um país aberto e com pesos e contrapesos funcionando. Uma fraude sistêmica precisaria ter o concurso de milhares de pessoas, em um esquema gigantesco que dificilmente passaria despercebido. Seria mais ou menos como duvidar de que o homem foi à Lua: milhares de pessoas envolvidas na farsa em um pacto de silêncio dificílimo de manter. Além disso, todos os pedidos de revisão e impugnação foram rechaçados pelos comitês eleitorais ou pela justiça, que precisariam estar envolvidos na fraude.

Qual desses dois “tokens” indica a realidade?

John Nash, quando nota que suas alucinações não envelhecem, descobre em que lado da realidade elas estão. Ele é uma pessoa com uma inteligência superior (ganhador do prêmio Nobel), e consegue se arrancar de dentro de suas alucinações somente com seu raciocínio. A maioria de nós não consegue. Somos reféns de nossas ideias preconcebidas, de nossa formação, de nossas posições.

Mas, efetivamente, existe uma só realidade. Ou bem houve uma gigantesca fraude que mudou o resultado das eleições americanas, ou não houve algo decisivo, que pudesse fazer grande diferença. Qual a real?

Minha regra pessoal, neste caso, é evitar coisas que cheiram a teoria da conspiração. Esse é o meu token, é onde confiro se o que estou vendo é alucinação ou realidade. Tenho imensa dificuldade em aceitar teorias da conspiração. No caso em foco, como já disse acima, a fraude precisaria ter o concurso de várias milhares de pessoas, em um esquema gigantesco. Não parece muito possível. Tem algo errado com essa história. Com a história inversa consigo lidar melhor: poderia Trump perder de “Sleepy Joe”? Com algum esforço, é possível traçar um cenário em que sim, isso seria possível. A Covid mudou o cenário eleitoral. A forma como o governo Trump, e o próprio presidente, lidaram com o assunto, foi desastrosa, na minha opinião. Enfim, motivos há para que Trump tenha perdido a eleição por uma margem estreita.

De qualquer modo, na disputa entre as duas realidades, há um árbitro. Por mais que não concordemos com a realidade “alternativa”, em sociedades civilizadas se respeita o árbitro. O juiz em campo, por mais que tenha errado ou esteja de má fé, no final das contas, é o juiz, e deve ser respeitado. Quando o PT chamou o impeachment de “golpe”, na verdade estava desrespeitando os juízes do julgamento, no caso, os deputados. Quando Trump insiste na tese de fraude, está desrespeitando os juízes do jogo, no caso, os comitês eleitorais e a justiça em suas várias instâncias.

Há alguns anos, recebi um e-mail de um economista, em cuja assinatura havia os dizeres “adequatio mentis ad rem”. Fiquei curioso e perguntei a ele o que significava. “Adeque sua mente à realidade”, ele me explicou. Os economistas precisam ser humildes e aceitar os dados da realidade para construir seus modelos, e não tentar enfiar a realidade dentro dos seus modelos pré-concebidos. Este é o sentido. Desde então, adotei este slogan como lema da minha vida: procure conhecer a realidade como ela é. Trata-se de uma tarefa difícil, muito difícil, pois a realidade, como vimos, se esconde sob diversas narrativas e, principalmente, sob o nosso próprio modo de pensar. Mas trata-se de uma tarefa essencial para manter a sanidade mental.

Ideias perigosas

Estes são tuítes do nosso chanceler, Ernesto Araújo, o rosto de nossa diplomacia. Escolhi esses três, mas poderia ter escolhido quaisquer outros para ilustrar meu ponto.

Vamos ao primeiro. Ninguém diz que é um “atentado à democracia” quando há críticas ao legislativo e judiciário. Críticas todos fazemos a tudo o tempo inteiro. Isso é uma coisa. Outra coisa bem diferente é pedir o fechamento do Congresso e do STF ou, como no caso em foco, invadir o Congresso para fazer justiça com as próprias mãos. Assim como seria retirar o presidente do seu posto à força. É óbvio que o chanceler usa o direito de criticar, que é universal, para justificar atos que nada tem a ver com críticas.

O segundo tuíte é mais ardiloso. Começa com uma condenação dos atos, ok. A seguir, no entanto, vem o “mas”. Qualquer um com algum treino de interpretação de texto sabe que essa conjunção adversativa guarda para o final a verdadeira convicção do orador, a prioridade número 1 em sua ordem de prioridades, a cláusula inegociável. Tente mudar a ordem e veja o efeito. “Sou contra o aborto, mas…”, por exemplo, trás depois do “mas” as exceções à regra geral ou a verdadeira convicção do autor da frase. No caso, o chanceler justifica a invasão como reação ao “desrespeito ao povo”.

Já o terceiro é o mais perigoso de todos. Opõe o “povo” às instituições democráticas. Quem é o “povo”? Quem fala em nome do “povo”? Em uma democracia representativa liberal, o “povo” fala através das instituições democráticas, executivo, legislativo e judiciário, com seus pesos e contrapesos. Ernesto Araújo quer nos fazer crer que essas instituições passaram por cima da vontade do “povo”. E quem fala pelo “povo” se não forem essas instituições? Só pode ser o líder ungido. No caso, Trump. Ernesto Araújo, o chanceler brasileiro, está sugerindo que o líder popular é a encarnação da vontade do “povo”, justificando, assim, que as instituições da democracia representativa sejam ultrapassadas. Trump com o “povo”, sem mais nada. Bem, não vou aqui listar todas as experiências pelas quais a humanidade passou com esse tipo de arranjo político.

Na época do PT, passei muita vergonha com o nosso chanceler Celso Amorim, e seu alinhamento automático a figuras como Fidel, Chávez e Maduro. Mesmo as coisas mais abjetas eram recebidas com um “mas”, justificando, na prática, o alinhamento. Bem, o mesmo nível de vergonha sinto agora do nosso chanceler Ernesto Araújo.

A única fraude

“Sem voto impresso em 2022 vamos ter problemas”. Bolsonaro refere-se, mais uma vez, a supostas fraudes eleitorais.

“Ninguém pode negar” que houve fraude nas eleições americanas.

Pois é. Fiquei curioso e fui investigar por conta própria uma das alegações de fraude que andam rodando por aí. Trata-se do condado de Bibb, na Geórgia, onde um “cientista de dados” teria denunciado uma manipulação clara. A descrição da suposta fraude vai a seguir:

Bem, o condado de Bibb fez não uma, mas DUAS recontagens. A primeira manualmente e a segunda por meio de escaneamento. Tudo acompanhado por fiscais de ambos os partidos. Veja aqui um vídeo onde o responsável pela eleição no condado explica o processo.

Mas o mais curioso vem agora: a Geórgia adotou exatamente o sistema que Bolsonaro quer: urna eletrônica com impressão dos votos. Foram esses votos que serviram para a recontagem.

Eu pergunto: adiantou? Trump desistiu da alegação de fraude? Obviamente não. Pergunto novamente: vai adiantar no caso brasileiro? Bolsonaro vai dizer que as eleições foram limpas se o voto impresso for adotado? Obviamente não! Basta ver o que o seu guru fez nos EUA.

As eleições sempre serão fraudadas. Trata-se de um grande esquema da esquerda globalista. Se Bolsonaro perder, terá sido fraude. Se Bolsonaro ganhar no 2o turno, terá sido fraude, pois devia ter ganho no 1o (vide 2018). Se ganhar no 1o turno, terá sido fraude, porque a diferença devia ter sido bem maior. As eleições são fraudadas sempre. Perdemos por causa da fraude. Ganhamos apesar da fraude.

A única fraude que existe é a dupla Trump e Bolsonaro.

A democracia dos EUA sobreviverá a Donald Trump

O que estamos vendo acontecer no Congresso norte-americano é inaceitável. Donald Trump passou de qualquer limite do razoável em seu direito de contestar os resultados eleitorais. Trump perdeu em todas as instâncias políticas e jurídicas possíveis e imagináveis sobre suas alegações de fraude eleitoral. As instituições americanas falaram. Trump e seus seguidores mais fanáticos fizeram questão de não ouvir. Isso é mais do que uma vergonha. Isso é um desafio à mais antiga e estável democracia do planeta.

A democracia americana passou, nos últimos 230 anos, por 44 transmissões de poder, das quais 24 entre presidentes de partidos diferentes. Todas elas de maneira pacífica, servindo de farol para o mundo livre. Esta seria a 45a transmissão de poder, e a 25a entre presidentes de partidos diferentes. Trump quebrou essa tradição, em nome de sabe-se lá o que.

Donald Trump dirá que não tem nada a ver com a invasão do Capitólio. Claro, ele não deu a ordem direta. Mas fez comício colocando gasolina na fogueira. Esperava o quê?

Alguns dirão que, se não for assim, não se mudará o tal “sistema”. Cada um tem uma ideia de um “mundo melhor”. Sabemos como terminam as experiências de imposição de um “mundo melhor” por meio da força.

Os EUA são a prova histórica e palpável de que a democracia representativa, com todos os seus defeitos evidentes, é o melhor sistema para conciliar visões diferentes do que vem a ser o tal “mundo melhor”. Ou, como dizia Churchill, o pior sistema, com exceção de todos os outros.

A democracia dos EUA sobreviverá a Donald Trump.

O país está quebrado?

Depois de mais um dia extenuante de trabalho, cheguei em casa, joguei-me no sofá e exclamei: “Estou morto de cansaço!”.

Minha esposa, alarmada, imediatamente chamou um médico para verificar se aquilo era verdade. O médico garantiu: “não, minha senhora, seu marido não está morto, pode ficar tranquila. Ele só precisa de umas boas férias”.

Saindo o médico, minha esposa me deu uma senhora bronca: “nunca mais faça isso! Achei que você estivesse morto mesmo!”

Quando Bolsonaro disse “o Brasil está quebrado”, os jornais foram atrás dos médicos, digo, economistas, para atestar se era aquilo mesmo. Obviamente, disseram que não era nada daquilo, que o país não estava quebrado, mas seria bom tomar alguns cuidados. A imprensa fez o papel da esposa, que não entende uma metáfora.

Podem ficar tranquilos os analistas econômicos das redações: os investidores entendem uma metáfora. Eles sabem que o Brasil não está tecnicamente quebrado, tanto que continuam a financiar a dívida do país. Mas sabem, também, que o país está sim metaforicamente quebrado: já vamos para o sétimo ano seguido de déficit primário, e a nossa relação dívida/PIB deu um salto para mais de 90%. Portanto, apesar de não estar tecnicamente quebrado, inspira cuidados. Assim como eu não estou morto, mas à beira de uma estafa.

Na verdade, não só os investidores entenderam a metáfora, como se sentem mais confiantes quando o presidente assume metaforicamente que o país está quebrado. A leitura é de que a possibilidade de adoção de políticas populistas, que de fato poderiam levar o país a quebrar tecnicamente, está mais distante. Os investidores não precisam que o presidente “revele” que o país está quebrado. Eles sabem fazer contas.

PS.: fiquem tranquilos os amigos, não estou exausto e nem à beira de uma estafa. Foi só uma parábola para explicar a metáfora do presidente.

Modelito chinês

Teve um ex-presidente e ex-presidiário que deu uma entrevista a um jornal chinês há algum tempo elogiando o sistema econômico e político daquele país. Vamos ver se vai adota-lo por inteiro.

A loira do banheiro

Notinha de hoje no Estadão, que me fez pensar em vários aspectos dessa pandemia no estágio atual.

Em primeiro lugar, salta aos olhos o viés do jornalista: Bolsonaro não “provocou” uma aglomeração. A aglomeração já estava ali. Os jornais não cansam de estampar fotos de aglomerações em ruas, praias e festas todos os dias. E Bolsonaro não está em nenhum desses lugares. As pessoas que se aglomeraram em torno de Bolsonaro não brotaram do fundo do mar. Já estavam lá antes da chegada de Bolsonaro e continuaram depois.

Claro que o presidente deu um mau exemplo. Se usasse o poder de seu cargo para reforçar as medidas sanitárias preconizadas pelos especialistas, não haveria aglomeração na praia. Será? É justamente este o ponto que me fez parar para pensar.

Será que Bolsonaro (ou qualquer presidente) tem esse poder de liderança, a ponto de fazer as pessoas mudarem de comportamento? Ou será que Bolsonaro faz a leitura do que vai nas mentes e corações de uma parte do povo e age de acordo? Ou, até mais do que isso: não será que Bolsonaro é uma parte desse povo, que está cansado de quarentenas e não acredita mais em “especialistas”? Estarão errados em sua percepção negacionista?

Vejamos.

Depois de 10 meses de epidemia temos 200 mil mortos. Arredondando, 0,1% da população. Imagine você chegando para uma festa com mil convidados. Um amigo seu também foi convidado, só que vocês chegaram em momentos diferentes. Sua missão: encontrar seu amigo nesse salão, mas sem sair muito do seu lugar. Essa é a chance de um brasileiro conhecer pessoalmente algum morto por Covid. Podemos tentar melhorar a estatística, dizendo que meu amigo e eu temos um conhecido em comum na festa. Lembre-se que isso significa que temos, em proporções brasileiras, 200 mil amigos em comum. Mas vá lá. Mesmo assim, a chance de conhecermos alguém que conhece alguém que morreu de Covid também é relativamente baixa. Sobram 997 pessoas que não conhecem nem você e nem o seu amigo.

Na falta dessa experiência pessoal, resta somente a cobertura jornalística, que procura trazer os casos de mortes por Covid para o cotidiano das pessoas. Ou seja, procuram transmitir a sensação de que o seu amigo é amigo de todo mundo. No início até funciona.

Quando eu era criança, de vez em quando aparecia, na escola, o boato da loira do banheiro. Seria uma mulher morta, com algodão no nariz, e que ficava no banheiro assustando as pessoas. Os mais velhos entravam no banheiro e saiam afetando terror, para assustar os mais novos. No início todo mundo ficava apavorado e evitava ir ao banheiro. Mas a vontade de fazer xixi era mais forte, e uma criança mais valente arriscava. E, adivinha? Não havia loira nenhuma ali! Estava desfeita a farsa, para júbilo da garotada.

Não estou dizendo que a Covid seja uma farsa, longe disso. Mas, com as estatísticas atuais, apenas um em mil banheiros tem uma loira com algodão no nariz. A imprensa procura chamar a atenção para este banheiro, mas o fato é que os outros 999 banheiros ainda não tem loira alguma, e as pessoas cada vez mais têm a sensação de que não vão encontrar nenhuma mesmo.

É bem conhecido o fenômeno da assimetria da atribuição de probabilidades: o ser humano costuma dar maior probabilidade subjetiva a um fenômeno positivo do que a um fenômeno negativo. Assim, as pessoas apostam na Mega-Sena com a firme esperança de ganhar, mesmo que a chance seja de 1 em 50 milhões, mas não apostam na chance de morrer de Covid, cuja chance real (já aconteceu) é uma em mil. Aliás, é maior do que isso, pois a letalidade é maior que 0,1%. Mas o ser humano olha com esperança o fato de uma ou duas pessoas terem ganho a Mega-Sena, e olha com desdém o fato de 200 mil terem morrido de Covid. Esta é a psique humana.

Voltando a Bolsonaro e à parcela da população que não está nem aí para a epidemia. O problema é que estamos há 10 meses dizendo que tem uma loira no banheiro, e a tal da loira não aparece na vida concreta das pessoas. As pessoas sentem falta do convívio, da vida normal, e começam a retoma-la, acreditando que a loira não vai aparecer mesmo. Pelo menos, não para elas. A única forma de mudar essa percepção é acontecer um desastre de proporções bíblicas, que sirva de aviso. Tipo, cadáveres sendo carregados por caminhões do exército porque acabaram os carros funerários, e pessoas morrendo ao vivo nas portas dos hospitais por falta de atendimento. O problema é que, depois do desastre, há pouco o que se possa fazer. O próprio aviso é o desastre, de modo que, quando acontecer, pouco mais poderá ser feito.

Nassim Taleb, eu seu livro O Cisne Negro, fala sobre risco e percepção de risco. Ele faz um experimento mental, em que um legislador exige portas blindadas para a cabine do piloto dos aviões, para evitar atentados como o das torres gêmeas. Obviamente, não teria sido aprovado, pois era um risco muito baixo, desprezível. Precisou ocorrer um evento daquele tipo, de proporções bíblicas, para ser adotado, mas aí o atentado já havia ocorrido. Se tivesse sido adotado antes, o atentado não teria acontecido. Mas sem o atentado ter acontecido, todo aquele gasto pareceria inútil, pois evitava um risco muito remoto. O próprio atentado serviu de aviso, mas aí o atentado já ocorreu.

Tudo isso para dizer que aglomerações são um problema global, não é exclusividade brasileira. Elas acontecem mesmo em países onde os dirigentes estão comprados com as medidas sanitárias, pois faz parte da própria forma como os seres humanos percebem a realidade e se comportam diante dessa percepção. Claro que, como narrativa política, colocar a conta da pandemia no colo do presidente faz todo sentido. Por isso, parece-me que Bolsonaro erra ao reforçar essa narrativa. Mas, do pontos vista prático, uma parcela da população estaria se aglomerando hoje, com ou sem o aval do presidente. Bolsonaro é apenas mais um que acha que não tem loira nenhuma no banheiro. E a percepção probabilística está do lado dele.