A marcha da vacinação

Criei um gráfico para tentar uma visualização mais clara do que chamei de “marcha da vacinação”.

O meu amigo Victor H M Loyola, sugeriu incluir também uma estimativa do término da vacinação para pessoas com 70 anos de idade ou mais. Então, temos três estimativas: término da vacinação para pessoas nessa faixa etária, para pessoas com 55 anos de idade ou mais e para cobrir 70% da população.

O gráfico termina no final de 2023. México e Argentina, com ritmo muito lento de vacinação, ultrapassam esta data.

Quando conseguiremos vacinar “todo mundo”?

Quando conseguiremos vacinar “todo mundo”?

Movido por essa curiosidade, fui pesquisar o ritmo de vacinação em vários países. Para isso, usei dados do site Our World in Data. Fiz duas perguntas:1) Quando cada país conseguirá vacinar todas os seus habitantes com 55 anos ou mais?2) Quando cada país conseguirá vacinar 70% de sua população?

Para responder a estas questões, considerei a velocidade média de vacinação dos últimos 7 dias, para suavizar eventuais distorções. Aqui vão as duas tabelas, com alguns países selecionados:

Datas em que cada país conseguirá vacinar todos os seus habitantes com 55 anos ou mais (sem considerar outros grupos prioritários concorrentes):

  • Reino Unido: fev/21
  • Chile: fev/21
  • EUA: mar/21
  • Espanha: ago/21
  • França: ago/21
  • Brasil: ago/21
  • Alemanha: out/21
  • Itália: nov/21
  • Canadá: mai/22
  • Argentina: jun/22
  • México: nov/35

Datas em que cada país conseguirá vacinar 70% da sua população:

  • Reino Unido: abr/21
  • Chile: abr/21
  • EUA: jun/21
  • Espanha: mai/22
  • França: mai/22
  • Alemanha: jun/22
  • Itália: ago/22
  • Brasil: mar/23
  • Canadá: mar/24
  • Argentina: jul/25
  • México: jun/65

Claro que essas datas dependem de se manter o atual ritmo de vacinação. Esse ritmo tem mudado com o tempo. Por exemplo, o Chile começou muito lentamente, mas acelerou de maneira impressionante nos últimos 10 dias. Os EUA também aceleraram.

O Brasil acelerou também, mas ainda está em ritmo insatisfatório. Precisamos acelerar mais. Vou acompanhar estes números e trazê-los aqui periodicamente.

A corrida da vacinação

Todos estamos ansiosos, acompanhando a corrida da vacinação. O Brasil não aparece bem na fita: segundo o site Our World in Data, que traz estatísticas diárias da vacinação ao redor do mundo, o Brasil vacinou, até o momento, 1,9% de sua população, o que coloca o país em 30o lugar quando comparado com países da OCDE e outros acompanhados pela organização, em um total de 42 países (tabela 1 abaixo).

No entanto, neste primeiro momento, estamos todos correndo para vacinar pelo menos os grupos prioritários: adultos maiores de 65 anos de idade e profissionais da saúde. Então, ajustei o ranking, procurando calcular o número de vacinas já distribuídas em relação a esse público alvo: considerei o percentual da população acima desta idade, somado com o número de médicos + enfermeiras. Como o Brasil tem uma população mais jovem e temos menos profissionais da saúde como proporção da população quando comparado a estes países, subimos para a 18a posição no ranking (tabela 2).

Já vacinamos o equivalente a 20% desta população prioritária. Considerando que a vacinação começou há cerca de 1 mês, no ritmo atual levaríamos outros 4 meses para vacinar esta população prioritária. Não é lá muito animador, mas a velocidade deve aumentar daqui em diante.

PS.: não considerei, por falta de dados, o fator “fura-fila”, que deve ser mais pesado aqui que em outros países do grupo.

Kafka e o Estado Democrático de Direito

Defensores do Estado Democrático de Direito das mais diversas cores saudaram a decisão da 2a turma do STF de compartilhar os dados apreendidos na operação Spoofing com a defesa de Luís Inácio Lula da Silva.

O racional é o seguinte: todas as partes do processo precisam ter acesso aos mesmos dados. Se a PF, o MP e o juiz tiveram acesso aos vazamentos das conversas entre Moro e os procuradores, por que a defesa não haveria de ter? “Paridade de armas” é um dos pilares da justiça em um Estado Democrático de Direito, segundo seus defensores.

A confusão é grande aqui. Vamos focar apenas na questão formal, ou seja, na ação dos hackers em si. O conteúdo das mensagens e seu significado perde relevância diante da forma como foram obtidas, ainda que, em minha humilde opinião, não invalidem uma vírgula do processo contra Lula.

Imaginemos uma situação em que hackers invadam e sequestrem as comunicações entre Lula e o seu advogado de defesa, para deles obter vantagem. Em uma operação da PF, esses hackers são presos. O MP, então, entra no STF com o objetivo de ter acesso às conversas obtidas pelos hackers. O STF daria acesso em nome da “paridade de armas”?

Alguém poderia dizer que, neste caso, a relação entre réu e advogado é sagrada, e nada pode violá-la, enquanto a relação entre o juiz e os procuradores não é sagrada. No entanto, apesar de não sê-lo, a inviolabilidade da comunicação é princípio basilar em qualquer democracia digna do nome. No momento em que escutas não autorizadas servem como elementos em um processo, o sistema de justiça passa a ser terra de ninguém. Ou seja, inviolabilidade da comunicação também é sagrada, e só pode ser quebrada por ordem judicial em uma democracia.

O argumento de que todas as partes precisam ter acesso a todos os dados do processo é risível. As conversas entre o juiz e os promotores já eram de acesso destes ANTES dos hackers. Por definição. Afinal, são eles os autores das conversas. Imaginemos que os hackers não tivessem tido sucesso em sua empreitada. Qual seria a chance de êxito de uma injunção da defesa de Lula junto ao STF para ter acesso ao conteúdo dos celulares de Moro e procuradores? Nenhuma, por óbvio. E ninguém estaria aqui falando de “paridade de armas”. Quer dizer, foi a própria ação dos hackers que legitimou uma “prova” a ser usada no processo. É coisa de malucos. Ou mal-intencionados.

Do jeito que a defesa de Lula, os ministros do STF e todos os outros defensores do Estado Democrático de Direito colocam a coisa, parece que Lula é Josef K., personagem de Franz Kafka processado e condenado por crime não conhecido pelo próprio réu. Ora, Lula foi condenado por crimes bem conhecidos em processos abertos e com base em provas mais do que robustas, referendadas em duas instâncias adicionais à primeira. Alegar cerceamento de defesa ou parcialidade do juiz é somente mais uma chicana das inúmeras que nosso sistema de justiça é pródigo em oferecer a quem pode pagar bons advogados. A isso chamam Estado Democrático de Direito.

Ninguém mexe no meu queijo!

O economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper, genuinamente preocupado com o destino dos pobres do Brasil, escreve artigo sugerindo oito potenciais fontes de receitas para financiar a extensão do auxílio emergencial:

  1. Corte nas emendas parlamentares
  2. Corte temporário de gastos no judiciário e legislativo
  3. Participação de estados e municípios no financiamento do auxílio
  4. Prorrogação do congelamento do salário do funcionalismo público
  5. Corte de isenções fiscais do Imposto de Renda da Pessoa Física
  6. Revogação da desoneração da folha de pagamentos
  7. Revogação de benefícios fiscais a setores específicos
  8. Extinção ou privatização de estatais menos relevantes

Obviamente, grande parte dessas medidas tem zero chance de passar no Congresso, ou mesmo de ser proposta pelo Executivo. E, mesmo que conseguisse passar por esses dois obstáculos, seriam derrubadas pelo Judiciário.

Entendo este artigo do Marcos Mendes como uma provocação. Todo mundo se apieda da situação daqueles que não têm onde caírem mortos, e acha muito justo que o Estado pague um auxílio. Não conheço hoje, no Brasil, quem seja contra a esta ideia. Mas desde que a conta seja do outro.

Vamos pegar o item que acho o menos controverso desta lista: as emendas parlamentares. Menos controverso no sentido de que, se fizermos uma enquete, a grande maioria dos brasileiros vai concordar que se trata de um item que deve ser cortado mesmo. Mas, os parlamentares dirão que se trata de verbas para obras importantes em comunidades muito pobres. Vamos deixar essas comunidades sem esses benefícios?

E assim, vamos avançar nesta lista, e todos esses gastos têm objetivos muito nobres. Todos eles. Preservação de empregos, desenvolvimento econômico, justiça tributária etc etc etc. Todo mundo sempre tem um bom e justo motivo para defender a sua teta no Estado.

É nesse sentido que o artigo é provocativo: todo mundo quer resolver o problema dos pobres, desde que não se mexa no meu queijo. Qual a solução? Aumentar a dívida pública.

O aumento da dívida pública joga o problema para o futuro. No futuro, alguém vai pagar essa conta. Talvez não seja nem essa geração. E adivinha quem vai pagar a conta?

Se, hoje, ninguém quer abrir mão de um milímetro que seja de seus benefícios, porque abririam mão no futuro? Não vão abrir igualmente. Essa conta será dividida entre todos os brasileiros, afundados em estagnação econômica e inflação. Todos os brasileiros pagarão a conta, os mais ricos e os mais pobres, aqueles que têm como pagar e aqueles que não têm. E, óbvio, quem não tem como pagar a conta sofrerá mais.

Ou o auxílio emergencial é pago com outras fontes do orçamento, ou será pago pelos mais pobres no futuro.

Redes Sociais e a busca pelo censor ideal

O canal do jornalista Allan dos Santos no YouTube, chamado Terça Livre, foi retirado do ar pelo próprio YouTube. Segundo a rede social, o canal havia violado os seus termos de serviço uma vez, e foi suspenso por uma semana. Allan dos Santos criou então um outro canal alternativo para continuar postando os vídeos do Terça Livre. O YouTube entendeu que o canal alternativo procurava burlar as suas regras, o que levou ao encerramento definitivo de todos os canais de Allan dos Santos na rede social.

Ao que parece, a primeira advertência se deu pela postagem de vídeos denunciando supostas fraudes nas eleições norte-americanas. Estas postagens foram consideradas “notícias falsas” pelo YouTube, o que levou à primeira advertência. A questão fundamental, portanto, não é o encerramento em si das contas de Allan dos Santos. Este encerramento ocorreu porque, efetivamente, o jornalista tentou burlar as regras ao criar um canal alternativo. O problema fundamental é a natureza da primeira advertência. Teria a rede social legitimidade para vetar conteúdos? Este veto não se configuraria em uma agressão à liberdade de expressão?

Uma pequena digressão inicial: a liberdade de expressão como uma boa desculpa

Antes de enfrentar este tema, gostaria de chamar a atenção para duas reações ao acontecido. O primeiro, do próprio Allan dos Santos, e o segundo, do Partido da Causa Operária (PCO).

Chamo a atenção para o ponto em comum às duas manifestações: nos dois casos, o agente responsável pela censura seria um grande ente manipulador global: os “globalistas” no dizer de Allan dos Santos, os “monopólios imperialistas”, no caso do PCO. Tenho uma regra mestra que guia as minhas decisões sobre no que acreditar ou não acreditar: se tem cheiro de teoria da conspiração, normalmente descarto. É o caso dessas duas notas. Os dois extremos se encontram não na defesa da liberdade de expressão, mas no exorcismo de fantasmas. A defesa da liberdade de expressão parece ficar em segundo plano. A verdadeira luta se dá contra “forças ocultas e poderosas”, e a defesa da liberdade de expressão serve apenas como uma desculpa conveniente. O amor do PCO à liberdade de expressão não orna com a férrea censura implementada para “defender la revolución” em países onde partidos guiados pela sua mesma ideologia dão as cartas. E tampouco o apreço de Allan dos Santos pela liberdade de expressão combina com a diuturna demonização da grande imprensa levada a cabo pelo governo a que apoia. O governo Bolsonaro diminuiu as verbas publicitárias para a TV Globo e aumentou as da TV Record, não respeitando critérios técnicos de audiência. É o seu modo de censurar os “inimigos da revolução”.

Em resumo: liberdade de expressão é um termo tão elástico quanto, por exemplo, democracia. Segue o jogo.

A legitimidade das redes sociais como árbitros do jogo político

Mas, neste artigo, o foco não será a liberdade de expressão. Vamos, outrossim, tentar responder à seguinte questão: tem o YouTube legitimidade para derrubar canais hospedados em sua plataforma? Terá o YouTube exorbitado de seu poder ao derrubar os canais de Allan dos Santos? Este texto será como que uma continuação do post Redes Sociais e Poder Político, publicado neste mesmo blog. E como ele, terá mais perguntas do que respostas.

O principal argumento em favor do direito de o YouTube derrubar qualquer canal é o seguinte: assim como o Facebook e o Twitter no caso do cancelamento dos perfis de Donald Trump, o YouTube é um empreendimento privado. Caberia ao seu dono, portanto, criar as regras do seu mundo. Na nota em que explica o banimento do canal Terça Livre, o YouTube diz textualmente o seguinte: “o YouTube também se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios”. É isso. Minha empresa, minhas regras.

No entanto, parece claro que “minha empresa, minhas regras” não é uma expressão absoluta, válida em todos os casos. Uma empresa não pode, por exemplo, poluir um rio ou escravizar pessoas por um simples ato de seu poder. O fato de uma empresa ter sido constituída com capitais privados não lhe dá permissão para fazer tudo de acordo com seus próprios critérios. Há limites, dados pelo direito dos outros. Cabe, então, analisar se o YouTube, ao derrubar o canal Terça Livre, feriu o direito de um terceiro.

O YouTube está fornecendo uma mercadoria: uma infraestrutura para manter vídeos na internet. Como qualquer empresa, o YouTube pode escolher a quem fornecer a sua mercadoria, de acordo com seu exclusivo critério. Ninguém tem o direito de exigir de uma empresa que lhe venda alguma coisa, a não ser que se trate de um bem essencial vendido por um monopolista (água encanada, por exemplo). Não é o caso do YouTube. Não se trata de um bem essencial, e nem tampouco a empresa é monopolista, há outros fornecedores. Portanto, ao se recusar a vender o seu produto para o Terça Livre, o YouTube não feriu o direito de ninguém. Além disso, sempre se poderá dizer que, se o YouTube não existisse, este serviço também não existiria, e o cliente ficaria sem o serviço de qualquer forma. Ou seja, não existe uma espécie de “direito divino” a um canal no YouTube. Este direito só existe porque a empresa existe, trata-se de um direito “criado” pela empresa, que, portanto, também teria o poder de subtrair este direito de um determinado cliente.

Há dois contra-argumentos a esse raciocínio.

O primeiro está no critério usado pela empresa para se recusar a fornecer a sua mercadoria. Por exemplo: um supermercado não pode barrar a entrada de uma pessoa negra em suas dependências, alegando ter uma regra própria que impede negros de frequentarem o estabelecimento. É óbvio que o supermercado não é monopolista, e o cliente barrado pode procurar outro. Mas isso não isenta a empresa de ser acusada de crime de discriminação racial. O critério para não vender para o cliente precisa também ser ético. Por isso, o YouTube dizer que “se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios” não está correto. É preciso entender quais são esses critérios. E note que não entramos na areia movediça da discussão sobre liberdade de expressão. Estamos apenas analisando a discricionariedade de uma empresa em relação ao fornecimento de mercadorias a seus clientes. No momento em que uma empresa se estabelece, são precisos motivos fortes para deixar de fornecer seus serviços para determinados clientes.

O YouTube, de fato, estabelece claramente os seus critérios, que estão devidamente descritos nos seus termos de serviços. A empresa existe há 16 anos. Se algum desses critérios estivesse em desacordo com a lei, como por exemplo a discriminação racial, já teria sido denunciada faz tempo. Portanto, em princípio, nada do que o YouTube faz transgride o ordenamento legal vigente, o que faz com que este primeiro contra-argumento não se aplique ao caso em tela.

O segundo contra-argumento é mais sutil e aplica-se especialmente a este caso. Trata-se do jogo político, entendido como a busca pelo poder político por parte de grupos organizados. Calar a voz de um ator político significa dar mais força ao grupo político opositor. No jogo democrático, todos os atores políticos deveriam ter à disposição as mesmas armas. Claro, isso é uma utopia, pois sabemos que recursos financeiros distorcem este jogo. As redes sociais se constituíram em um advento que justamente equilibrou o jogo democrático, ao dar voz a atores que, de outra maneira, seriam ignorados por não terem recursos financeiros. Assim, ao calar a voz de um dos principais apoiadores do governo, o YouTube voltaria a desequilibrar o jogo democrático em favor de seus adversários. Aliás, este mesmo contra-argumento serve para condenar o fechamento das contas de Donald Trump no Facebook e no Twitter. Em outras palavras, uma vez que o YouTube existe, o direito de usar o seu espaço deveria ser equilibrado entre todas as forças políticas. Este direito, “criado” pela existência da empresa, não poderia ser retirado por ela.

Aqui já entramos em terreno mais pedregoso. Angela Merkel, a respeito de quem não paira nenhuma dúvida sobre suas convicções democráticas, condenou o fechamento das contas de Donald Trump. Seu argumento: empresas privadas não podem tomar decisões que envolvam o jogo político. Trata-se de uma esfera pública, que deveria ser tratada pelos representantes do povo devidamente eleitos. É um ponto.

Juntamos aqui o primeiro e o segundo contra-argumentos: dentre os critérios que seriam considerados inválidos para barrar determinados clientes, poderiam estar aqueles que desequilibram o jogo político? Mais do que isso: as redes sociais teriam legitimidade para arbitrar sobre o jogo político?

O YouTube, de fato, tem critérios sobre o que pode e o que não pode ser feito em seus canais quando se trata de política. Estes critérios podem ser lidos aqui, e incluem manipulação de vídeos, informações incorretas ou obtidas através de hackers e até “denunciar falsamente que um candidato não pode ser eleito por não apresentar os requisitos de cidadania necessários para assumir cargos públicos em um determinado país”. Só faltou dizer que não pode afirmar que Obama não é norte-americano…

Em princípio, esses critérios do YouTube (e imagino que sejam basicamente os mesmos no Facebook e no Twitter) foram concebidos para tornar mais justa a luta política. Merkel, como vimos, não vê legitimidade das redes sociais para adotarem critérios deste tipo. Ou, no mínimo, para aplicarem esses critérios aos casos concretos. Porque os critérios são sempre bons e justos, o diabo está no detalhe da aplicação ao caso concreto.

Vamos dar uma parada no raciocínio por um instante, e desviar para o caso concreto. Depois voltamos. O canal Terça Livre recebeu uma advertência por propagar vídeos mostrando supostas fraudes no processo eleitoral norte-americano. A questão é saber se as fraudes são verdadeiras ou se são, elas mesmas, fraudes feitas para distorcer os resultados de um processo eleitoral legítimo. Quem tem o poder de distinguir a verdade? Neste caso concreto, entendo que seja o próprio árbitro do processo eleitoral, que são as juntas eleitorais e os juízes aos quais se apelou contra os resultados apurados. Até onde eu saiba, não houve reversão substantiva de resultados nessas instâncias. Ou seja, as instituições da mais longeva e sólida democracia ocidental referendaram o resultado eleitoral. Acusar de fraude é, em si, uma fraude. O árbitro por direito do processo já declarou que não houve fraude a ponto de mudar o resultado. Já deveria ser o suficiente. Resta inútil procurar rebater nas redes sociais todas as acusações de fraude, por um motivo simples: não há argumento que vença uma teoria da conspiração. Sempre prevalecerá a convicção de que o resultado não poderia ser aquele, a não ser por interferência de um “grande ente manipulador global”. Contra esta convicção, não há o que fazer.

Esta breve digressão ao caso particular nos será útil para voltar com novos elementos à nossa discussão anterior: teriam as redes sociais legitimidade para interferir no jogo político, mesmo com critérios bons, justos e belos? Em princípio, ao coibir a propagação de falsidades (e estamos assumindo aqui que, como desenvolvemos no parágrafo acima, a acusação de fraude nas eleições norte-americanas é, em si, uma fraude), o YouTube estaria protegendo o processo político. Como se lê em seus termos, “temos a responsabilidade de […] promover um discurso político íntegro”. Novamente: é papel do YouTube fazer isso, ou deveríamos ter uma instância política dedicada a isso?

Peço que leiam a pequena nota a seguir. É de abril de 2019:

Mark Zuckerberg, que de bobo não tem nada, pediu, em um artigo no Washington Post, regras claras sobre o que pode e o que não pode ser publicado nas redes. Obviamente, não veio nada por parte dos governos. O poder político simplesmente não sabe como lidar com este assunto. Então, as redes sociais resolveram fazer justiça com as próprias mãos, seguindo seus exclusivos critérios. Por quê? Alguns vão dizer que há um viés ideológico por parte de seus executivos. Outros vão afirmar que houve uma resposta a uma pressão da opinião pública. Na prática, é irrelevante o porquê. O fato é que as redes sociais têm o poder de fazer o que fizeram, a lei não os impede de fazer o que fizeram, e decidiram então fazê-lo. A motivação é irrelevante.

Irão os governos legislar sobre o que pode e o que não pode aparecer nas redes sociais? Ou sobre o poder que têm as redes sociais de decidir o que pode ou o que não pode aparecer? Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.

O problema do censor ideal

Sempre se dirá que há conteúdos inequivocamente prejudiciais, sobre os quais não há dúvida de que não deveriam estar no ar. O fato é que, se 100% das pessoas concordassem que um determinado conteúdo não deveria estar no ar, ele não estaria no ar, por definição. Como todos os conteúdos que estão no ar contam com uma parcela de pessoas que os apoiam, seria preciso uma instância definidora do que pode e do que não pode estar no ar. E esta instância, desculpe-me o nome feio, chama-se censor.

E aqui cabe novamente distinguir entre as regras e a aplicação das regras. Hoje, tanto as regras quanto a sua aplicação aos casos práticos estão nas mãos das redes sociais. Zuckerberg, ao que parece, está pedindo regras gerais. Fica a dúvida se isso também inclui a criação de alguma instância estatal responsável pela sua aplicação. Seria, aí sim, um órgão censor estatal.

Chegamos, finalmente, à questão da liberdade de expressão. A censura (este é o nome) a determinados conteúdos fere a liberdade de expressão, um direito fundamental do ser humano? Como escrevi no meu post anterior, entendo que a liberdade de expressão não é um bem absoluto, sendo limitada pelo prejuízo que possa causar a terceiros. Todos concordamos que uma pessoa aplicando um golpe na internet está exercendo a sua liberdade de expressão de maneira criminosa. O problema está em aplicar, de maneira universalmente aceita, o conceito abstrato de crime aos casos concretos. As fraudes eleitorais aconteceram de fato ou são, em si, uma fraude? Quem decide isso? A regra em si é sempre boa. O problema é sempre sua aplicação ao caso concreto.

O censor ideal seria aquele que aplica as regras boas de maneira inequivocamente adequada. Existe? Obviamente não, assim como não existe o juiz ideal. Mas não é pelo fato de não termos um juiz ideal que não devemos ter juízes de maneira alguma. Há casos concretos em que a liberdade de expressão deve ser limitada. Falta um censor com legitimidade que aplique este princípio ao caso concreto no jogo político. Fica a pergunta: as redes sociais podem fazer este papel enquanto não existir uma instância legítima?

Resumindo

Concluo com um resumo do que vimos até aqui.

As redes sociais são empreendimentos privados. No entanto, mesmo empreendimentos privados não podem negar os seus produtos e serviços a qualquer um, a não ser baseados em critérios justos. A mera existência da empresa, que permite a oferta do produto, não é motivo suficiente para negar a oferta do produto de maneira absolutamente discricionária.

Este ponto é especialmente importante quando se trata da arena política: todos os contendores deveriam poder contar com o mesmo espaço nas redes sociais, para o bem do equilíbrio do jogo político. Critérios objetivos e sua aplicação aos casos concretos deveriam, em tese, ser de responsabilidade do poder público. As redes sociais estão somente ocupando um vácuo deixado pelo poder público, de acordo com seus próprios critérios. Não que os critérios do poder público sejam necessariamente melhores, é só uma questão de legitimidade.

Por outro lado, a figura de um censor público não rima com liberdades democráticas. Equação difícil de resolver.

Lula será o candidato

A mando de Lula, Haddad se auto-anunciou como pré-candidato do PT à presidência nas eleições de 2022.

Como interpretar esse movimento?

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de que o anúncio foi feito por Haddad e não pela direção do partido. Em qualquer partido sem dono, há uma briga de foice pela legenda entre vários pretendentes. Não no PT. O PT tem dono.

O segundo aspecto que me chamou a atenção foi o silêncio de Lula. Foi Haddad a fazer o anúncio, citando Lula. Por que não o próprio Lula a ungir o seu pré-candidato? Aliás, o silêncio de Lula tem sido ensurdecedor desde a sua saída da prisão. Tínhamos mais notícias de Lula durante a sua estadia em Curitiba do que depois.

Uma pista para esse silêncio pode ser encontrada na notinha da Coluna do Estadão, encomendada por “ministros do Supremo”. Segunda a nota, o anúncio da pré-candidatura de Haddad “baixa a fervura” do julgamento a respeito da parcialidade de Moro, o que abriria as portas para a anulação da sentença e, consequentemente, a purificação da ficha de Lula. Em outras palavras, o julgamento no Supremo seria absolutamente técnico, pois o seu viés político (permitir a candidatura de Lula) estaria mitigado pelo anúncio de uma alternativa “viável”.

Bem, todos esses movimentos apontam para uma candidatura Lula em 2022. Seu silêncio é o da raposa que sabe que não ganha nada ficando ao sol dois anos antes da eleição. Ele não precisa trabalhar para ser conhecido, então não precisa começar a fazer campanha já. Aliás, a votação de Andrade em 2018 mostra que Lula consegue uma votação expressiva mesmo não aparecendo na cédula.

Como nota cômica, a matéria traz o depoimento de Boulos, reclamando que o PT deveria “discutir projetos” antes de “discutir nomes”. O sujeito acha realmente que existem chances de o PT apoiá-lo em 2022. Não consigo parar de rir.

O candidato do PT em 2022 será Lula.

PS.: há uma outra hipótese para o sumiço de Lula: ele estaria doente e, de fato, a unção de Haddad representaria uma passagem de bastão dentro do partido. Desse modo, o julgamento no STF serviria para dar um lustro na biografia do condenado, mais do que abrir as portas das eleições. É só uma hipótese menos provável.

Insight precioso

Taí um insight importante para os nossos políticos: 78% (!) dos brasileiros acham mais importante preservar o meio ambiente do que criar empregos. É o que indica pesquisa do Ibope, que contrapôs corretamente os dois temas. Sim, porque, como venho insistindo aqui, é o crescimento econômico e a busca pelo conforto da civilização que causam a degradação do meio-ambiente.

Sugiro então a Bolsonaro que desligue Belo Monte, proíba o plantio de soja e a criação de boi na “Amazônia” e tome outras iniciativas que protejam o nosso meio-ambiente. Segundo o Ibope, 78% dos brasileiros estarão prontos a reeleger o presidente, mesmo que percam seus empregos em função de apagões recorrentes e o dólar nas alturas decorrentes dessa agenda. É o que diz o Ibope.

Vacinação privada

Meus amigos César Mattos e Cleveland Prates desenvolveram um artigo muito bem estruturado, defendendo a compra e distribuição de vacinas pela iniciativa privada. Resumo a seguir o que, na minha opinião, é o principal argumento colocado.

Digamos que você tenha dois e somente dois estados da natureza:

Estado 1) o governo consegue importar 100 unidades de vacina. As 100 vacinas são distribuídas de acordo com uma fila determinada pelo governo.

Estado 2) governo mais iniciativa privada conseguem importar 110 vacinas. 105 dessas vacinas são distribuídas pelo governo usando o critério de fila e 5 são distribuídas para quem pode pagar mais.

Não existe um terceiro estado da natureza em que o governo consiga importar 110 unidades. As 10 unidades adicionais somente foram possíveis porque a iniciativa privada pagou mais e conseguiu uma oferta adicional.

Pergunta: qual o estado da natureza que otimiza a imunização no país? Obviamente, o estado 2.

Minha única restrição a este raciocínio é que nada garante que a iniciativa privada brasileira teria mais sucesso do que iniciativas privadas de outros países. Em um ambiente de super restrição de oferta, poderíamos entrar em um jogo de “rouba monte”, prejudicando a oferta para os governos. No final, o governo brasileiro poderia ter somente 90 vacinas, e não as 100 do estado 1. Talvez por isso os laboratórios, hoje, estejam negociando apenas com os governos. Mais para frente, quando a oferta global de vacinas estiver mais normalizada, certamente a iniciativa privada será bem-vinda para ajudar a aumentar a oferta de vacinas no país.