Mundo paralelo

Já tive oportunidade de comentar aqui algumas decisões esdrúxulas de juízes a respeito de demandas que teriam consequências econômicas nefastas.

Observando o teor da PEC emergencial aprovada pelo Senado (e que deve ser aprovada pela Câmara nessa semana), caiu-me uma ficha: os juízes decidem do modo que decidem porque vivem em um mundo sem restrições orçamentárias.

A PEC emergencial trata de congelamento de salários do funcionalismo público caso as despesas obrigatórias atinjam 95% das despesas totais. Mas, vejam só: esse congelamento não atinge o Legislativo ou o Judiciário. Assim, a professora ou a enfermeira terão o seu salário congelado, mas não o aspone DAS-52398 ou o desembargador.

Só pode ser por isso que leis e julgamentos constroem um mundo maravilhoso, onde todos têm a sua dignidade humana preservada, sendo a dos autores e operadores da lei a primeira na fila.

Ocorre que, como no mundo real existe restrição orçamentária, a dignidade humana dos funcionários do Legislativo e do Judiciário vem às custas da dignidade humana do restante da população. Por mais que a letra da lei afirme o oposto.PS.: é claro que essa elite do funcionalismo público sabe o que é restrição orçamentária. Caso contrário, aquele procurador mineiro não teria reclamado do “miserê” que ganhava. O que só torna a coisa pior: eles não vivem em um mundo à parte, eles sabem exatamente o que estão fazendo.

Ficamos mais pobres

Ontem foi manchete em todos os jornais a queda do PIB (a maior em um ano desde o ano do Plano Collor) e a “saída” do país do grupo das 10 maiores economias do mundo.

Dois rápidos comentários.

O primeiro refere-se à queda em si. Em termos comparativos, não ficamos tão mal (veja gráfico abaixo com a queda do PIB ao redor do mundo). Encolhemos bem menos do que os nossos pares latino-americanos e os países europeus.

O que provavelmente levou a esse encolhimento menor foi o nosso auxílio emergencial mais generoso do que a média global. Mas este encolhimento menor teve um custo: o aumento brutal de nossa dívida. O risco percebido pelos agentes econômicos acabou se refletindo na taxa de câmbio. Conforme podemos observar no gráfico abaixo, a nossa moeda só perdeu para o peso argentino em termos de desvalorização em relação ao dólar.

Isso nos leva ao outro ponto deste post: a queda no ranking das maiores economias do mundo. No ano passado éramos a nona maior economia, neste ano fomos ultrapassados por Canadá, Coréia e Rússia, caindo para a 12a posição.

O detalhe deste ranking é que a contabilização é feita em dólar, de modo a se poder comparar os países entre si. Ora, como a nossa moeda foi a que mais se desvalorizou, caímos no ranking não pela queda do PIB em si, mas pela desvalorização do Real. A ligação entre queda do PIB e queda neste ranking é simplesmente inadequada.

Ficamos mais pobres em dólar. Em reais, nosso PIB encolheu 4,1%. Em dólares, 23,3%. Enquanto isso, o PIB russo encolheu 10,5%, o canadense 5,7% e o coreano 1,5% em dólares. Não é à toa que caímos esse tanto no ranking.

Isso significa que não ficamos tão mais pobres quando consideramos a nossa capacidade de compra de produtos fabricados aqui dentro (incluindo serviços), mas ficamos sim bem mais pobres quando se trata de comprar produtos e serviços no exterior. Além disso, o nosso posicionamento relativo no mundo perde força.

Como voltar a subir nesse ranking? Mais importante do que o crescimento do PIB em si é a revalorização do Real. E, para que o Real volte a se valorizar, é necessário diminuir o risco percebido pelos investidores. Não intervir em estatais seria um bom começo. O encaminhamento de reformas estruturais e privatizações também ajudaria. Além, claro, de tratar a dívida pública de maneira séria.

Mas alguém sempre poderá dizer que ficar bem nesse ranking é bobagem, o que importa é que o brasileiro tenha uma vida digna (um dia vou escrever um post sobre o que raios significa esse “vida digna”). Ok, é uma escolha. Ser pobre é uma escolha. Cada país caminha na direção de suas escolhas.

100% do quê?

100% de alguma coisa é tudo. O problema é saber o que é esse “tudo”.

No pico anterior da pandemia aqui na capital paulista, atingimos 250 casos/milhão/dia e quase 9 óbitos/milhão/dia. Hoje estamos rodando a cerca de 150 casos/milhão/dia e quase 4 óbitos/milhão/dia. Não lembro de ter lido na época (junho/julho) que estávamos com o sistema de saúde particular saturado. O que aconteceu de lá para cá?

Simples: o número de vagas de UTI para Covid-19 diminuiu, dando lugar a vagas para cirurgias eletivas. O “tudo” encolheu. E isso aconteceu porque os hospitais, apesar de sua aura de anjo da guarda da humanidade, são um business tanto quanto uma bar. Abrir mão das eletivas significou um baque financeiro enorme no primeiro semestre, e agora os grandes hospitais particulares relutam em voltar a dedicar essas vagas para a Covid.

Duas coisas então: 1) se houver um decreto para o fechamento do comércio, deveria vir acompanhado de uma proibição de cirurgias eletivas. Afinal, guerra é guerra e 2) faria bem a imprensa em divulgar não somente o percentual de ocupação, mas o número total de leitos disponíveis. Sem esse dado, a informação pode ficar distorcida.

PS.: por favor, não entendam esse post como uma minimização da crise sanitária pela qual estamos passando. Os números de São Paulo estão bem melhores dos que os do Sul do país, mas é uma questão de “quando”, não de “se” a nova cepa vai chegar por aqui, estressando o nosso sistema.

A conquista da casa própria

Esta saiu no Antagonista.

O senador Flávio Bolsonaro acabou de adquirir uma singela casa em Brasília, no valor total de R$ 5.970.000,00.

O filho 01 iniciou sua carreira política em 2003, aos 22 anos de idade, como deputado estadual da Assembleia Legislativa do RJ, onde bateu ponto até 2018, quando se elegeu senador da República. Ao que consta, este foi o seu primeiro emprego. Um deputado estadual do RJ ganha hoje R$ 25.322,25 mensais. Descontado o imposto de renda, sobra líquido algo como R$ 19 mil/mês. Considerando 13 salários anuais, teríamos uma renda líquida acumulada de R$ 3,95 milhões.

Depois disso, foram mais dois anos no Senado, recebendo R$ 33.763 mensais. Descontado o imposto de renda, sobra líquido cerca de R$ 28 mil/mês. Considerando 13 salários anuais, teríamos uma renda líquida acumulada de R$ 730 mil.

Somando-se os dois montantes, temos R$ 4,68 milhões. Então: a entrada da singela casa custou R$ 2,87 milhões. Ou seja, o senador precisaria ter guardado 60% de todos os seus ganhos como deputado e senador desde que começou a trabalhar para juntar o dinheiro para a entrada na singela casa.

Ah sim, tinha a incrível loja de chocolate também. Gostaria de perguntar para um franqueado da Koppenhagen se ele sonha um dia comprar um imóvel no valor de 6 milhões…

Mas, sigamos. O financiamento do imóvel foi realizado pelo BRB – Banco de Brasília, um banco estatal. A taxa cobrada é prefixada, no valor de 3,71% ao ano.

Fui dar uma olhada nas condições de financiamento dos principais bancos brasileiros.

As taxas mais em conta são do Bradesco e Itaú, 6,9% ao ano. O Santander cobra 7,0%, enquanto a Caixa cobra 9,5%. Nada parecido com os camaradas 3,7% ao ano. Claro que você já sabe que não tem almoço de graça. Se alguém está pagando menos, outro alguém está subsidiando. Parabéns, brasileiro.

Mas não para por aí. Mesmo a uma taxa de 3,7% ao ano, o financiamento de R$ 3,1 milhões em 360 meses gera uma parcela pelo sistema Price de R$ 14.178,40. Como o sistema adotado é o SAC, a parcela inicial é ainda maior. Isso resulta em aproximadamente 50% da renda líquida do senador. Bem, para quem guardou 60% de sua renda durante toda a sua vida, abrir mão de 50% não deve ser um grande desafio.

Enfim, o senador mostra que é possível, com disciplina e esforço, conquistar o sonho da casa singela própria. Um verdadeiro exemplo para o brasileiro.