O Congresso aprovou um projeto de lei que prevê multa para empresas que pagam salários diferentes para homens e mulheres que tenham o mesmo cargo ou função. Como agora é lei, todos os problemas das mulheres acabaram.
Ocorre que, se fosse simples assim, bastaria uma lei para cada problema da sociedade. Sabemos que não é assim que funciona.
Há, de fato, um gap salarial entre homens e mulheres, isso é inegável. Existem inúmeros estudos que demonstram esse fato. A questão é: por que isso acontece?
A lei recém aprovada tem como pressuposto de que este gap é fruto de discriminação por parte das empresas. Estas pagariam, por algum motivo sórdido, salários diferentes para homens e mulheres no mesmo cargo e com a mesma experiência. É a visão, por exemplo, da advogada Fernanda de Avila e Silva, uma das fundadoras do “Me Conta Direito”, projeto que busca esclarecer mulheres sobre os seus direitos. Em entrevista ao Estadão na matéria sobre o assunto, a advogada diz:
A matéria cita como fonte um artigo que fez bastante barulho no ano passado, de autoria dos economistas Beatriz Caroline Ribeiro, Bruno Kawaoka Komatsu e Naércio Menezes Filho, que encontraram diferenças significativas nos salários entre homens e mulheres, segundo gênero, raça, escolaridade e tipo de instituição de ensino frequentada (pública ou privada). O professor Naércio foi meu orientador no mestrado, é um cara sério e muito fera em econometria. Fui atrás do artigo para entender melhor.
Foi feita uma regressão linear em que foram encontrados coeficientes significativos para as diferenças de salários entre homens e mulheres, entre brancos e negros e entre pessoas que cursaram faculdades públicas e privadas. Até aí, nenhuma novidade, sabemos que homens ganham mais do que mulheres, que brancos ganham mais do que negros e que pessoas que cursaram faculdade pública ganham mais do que pessoas que cursaram faculdades privadas. A questão é: por que?
Uma hipótese, no caso da diferença de gênero, é a idade/experiência: as mulheres saem antes e mais frequentemente do mercado de trabalho porque precisam cuidar dos filhos. Quando voltam (se voltam) perderam terreno e ficaram atrás, em termos de experiência, de homens de mesma idade.
Outra hipótese, que pode ser complementar à primeira, é que as mulheres, por algum motivo (que pode ter relação com a hipótese acima ou com outras razões), não chegam a cargos de chefia. Assim, mulheres com mesma idade que homens ganham menos porque estão em cargos de menor remuneração. Nessa hipótese, a lei aprovada teria pouco o que fazer, dado que regulamenta salários de mesmos cargos/experiência.
Uma terceira hipótese é a levantada pela advogada entrevistada acima: as empresas usam qualquer pretexto para pagar menos para as mulheres. Mas a desculpa de pagar menos simplesmente para economizar não se sustenta: se fosse esse o caso, as empresas poderiam pagar menos para os homens e economizariam da mesma forma. Ou poderiam pagar igualmente menos para homens e mulheres, economizando ainda mais. O fato é que pagam menos para mulheres, o que não passaria de um machismo patriarcal estrutural. Simples assim.
Esta terceira hipótese é a única que sobra se as duas primeiras não puderem ser provadas. Voltemos ao artigo do professor Naércio. Destaco o seguinte trecho:
De fato, encontram-se coeficientes significativos para gênero, mesmo controlando por idade. Ou seja, mulheres ganham menos do que homens mesmo tendo a mesma idade e, supostamente, a mesma experiência e o mesmo cargo. Mas aí é que mora o problema: como provar que, tendo a mesma idade, mulheres e homens têm a mesma experiência e o mesmo cargo? Por isso o artigo reconhece que podem existir outros fatores de influência, alguns inclusive não observáveis. Os dados da PNAD, nos quais se baseia o artigo, obviamente não traz informações de cargo ou experiência.
Um outro artigo do professor Naércio joga uma luz diferente sobre o problema:
O artigo levanta a hipótese e traz algumas evidências de que a idade não reflete a experiência no trabalho no caso das mulheres, devido a suas decisões de fecundidade.
Uma observação importante, antes de continuarmos: estamos sempre trabalhando com dados agregados e grandes tendências. Não estamos falando de casos particulares. Há mulheres que têm filhos e conseguem levar carreira e lar de maneira igualmente brilhante. Mas, na média, não é isso o que acontece. E estamos sempre nos referindo a médias populacionais. Sigamos.
Há algumas evidências, portanto, de que as mulheres podem ter menos experiência ou cargos menores (o que é equivalente do ponto de vista salarial) porque têm dupla jornada. É justamente essa a hipótese que a advogada entrevistada acima levanta: as empresas usariam essa “desculpa” para afirmar que as mulheres seriam menos produtivas e, portanto, mereceriam ganhar menos. Mas a questão é que, como mostra o artigo acima, pode não ser uma mera desculpa.
Vejamos a letra do projeto de lei aprovado pelo Congresso, que acrescenta o parágrafo 3o ao art. 401 da CLT (que trata das penalidades):
Parágrafo 3o: Pela infração ao inciso III do art. 373-A, relativamente à remuneração, que deverá ser regularmente apurada em processo judicial, inclusive com observância do disposto no art. 461, excluídas as parcelas e vantagens de caráter pessoal, será devida multa em favor da empregada em valor correspondente ao dobro da diferença salarial verificada mês a mês, durante o período não prescrito do contrato de trabalho.
O inciso III do art. 373-A diz o seguinte:
III – considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional.
E o artigo 461 diz o seguinte:
Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade.
Portanto, a lei da igualdade já existia, faltava apenas estabelecer uma penalidade, que é o que foi feito agora.
O problema de toda lei é a sua aplicação. Medir “funções idênticas” e “trabalho de igual valor” não é tarefa simples. Os operadores do direito, procuradores e juízes, serão chamados a arbitrar este tipo de reivindicação, carregando seus vieses e suas convicções. Está longe de ser algo objetivo.
Na hipótese de que haja apenas uma má vontade ancestral das empresas, não haverá problema: as empresas se adaptarão à nova realidade, pagando a cada empregado de acordo com a sua experiência/produtividade. A lei as obrigará a isso e, como não há motivo econômico que as impeça, era apenas preconceito que as movia, a lei resolverá o problema.
Mas, se a hipótese de menor experiência em razão de dupla jornada for verdadeira (e, como vimos acima, há uma probabilidade não desprezível de que seja), as empresas serão obrigadas a escolher entre o mais experiente e o menos experiente pagando a mesma coisa. Adivinha qual será a escolha quando as multas começarem a ser aplicadas. Esta consequência também foi antecipada pela advogada entrevistada acima. Ela diz: “embora uma ‘ala mais conservadora da sociedade’ possa alegar ‘por isso não contratam mulheres’“. Pois é, talvez seja essa a consequência da lei, a depender da forma como for aplicada.
O problema do gap salarial de gênero vai muito além de igualar salários de cargos semelhantes. O problema é estrutural, de divisão de tarefas na sociedade. Nem sei se esse é um problema que tem solução. A única coisa que sei é que, novamente, as empresas estão sendo chamadas a resolver um problema que não lhes pertence. Ou, na melhor das hipóteses, elas não têm como resolver, a não ser empregando seu escasso capital para consertar uma deficiência da sociedade. Não seria a primeira vez.