O TCU e os empregos improdutivos

A Ceitec, conhecida por ser a empresa do “chip do boi”, foi criada em 2008, no governo Lula, para servir de polo de desenvolvimento tecnológico na área de semicondutores.

O PPI, órgão responsável pelas privatizações, recomendou a extinção pura e simples da empresa. Será que o governo resolveu rasgar dinheiro e abriu mão de vender a empresa, faturando algumas centenas de milhões de reais? Vejamos.

A Ceitec faturou, em 2020, R$ 9,7 milhões. Com certeza tem padaria em São Paulo que fatura mais do que isso. Teve gastos com pessoal de R$ 36,5 milhões e com outras despesas administrativas de R$ 29,4 milhões. Para fechar o buraco, recebeu “subvenções” do governo brasileiro de R$ 57,8 milhões.

Poderíamos pensar que a empresa ocupa um espaço estratégico no desenvolvimento tecnológico brasileiro. Mas, com um faturamento de menos de R$ 10 milhões anuais, difícil imaginar que vá fazer alguma falta, a não ser como ganha-pão para os seus funcionários. Mas chegaremos lá.

Segundo a World Semiconductor Trade Statistics, a indústria de chips movimenta mais de 400 bilhões por ano. De dólares. Metade desse volume é produzido nos EUA, 20% na Coreia e o restante é dividido entre Japão, China, Taiwan e União Europeia. Por outro lado, o mercado consumidor está concentrado na China (cerca de 1/3) e outros países do Sudeste Asiático (outros 25%), que produzem as quinquilharias eletrônicas que todos amamos.

O que faz uma empresa que fatura 2 milhões de dólares anuais nesse jogo de gigantes? Difícil dizer. Já tivemos uma empresa estatal que conseguiu se destacar no mundo tecnológico: a Embraer. A fabricante do Bandeirante foi privatizada, não liquidada. Tinha algum valor comercial e estratégico. Em um mundo com abundância de capitais, onde empresas recém saída das fraldas levantam centenas de milhões de reais em rodadas de aporte de recursos, não seria difícil encontrar alguém interessado na Ceitec, se a empresa tivesse algum valor. Faz 12 anos que a Ceitec foi fundada. Se nesse tempo não conseguiu sequer andar com as próprias pernas e fatura menos que uma padaria, alguma coisa está muito errada.

Aqui não vai nenhum julgamento sobre os funcionários da Ceitec. Tenho certeza de que se trata de técnicos capacitados e dedicados. Infelizmente, no entanto, trabalham em uma empresa que suga mais de R$ 50 milhões por ano dos magros cofres do Tesouro, para fabricar um punhado de coisas sem escala, em uma indústria que deixou de estar na fronteira da tecnologia há alguns anos. Infelizmente, os seus empregos não se justificam. Tenho certeza de que, se forem realmente qualificados, não terão dificuldades em encontrar outros empregos neste mundo sedento por profissionais de tecnologia.

O TCU está preocupado com a demissão dos funcionários da Ceitec. Faria bem o TCU em se preocupar em como o dinheiro do contribuinte está sendo gasto para sustentar esses empregos. Cumpriria melhor a sua função institucional.

A Superliga e o STF

Essa história da Superliga me faz lembrar o Clube dos 13.

Em 1987, os 13 principais clubes do futebol brasileiro resolveram criar um campeonato próprio, a Copa União. A CBF, à época, organizou, como sempre, o seu próprio campeonato. Chamou a Copa União de “módulo verde” e o seu campeonato de “módulo amarelo”. Verde e amarelo, sacou?

Segundo as regras estabelecidas pela CBF, o campeão brasileiro deveria sair do enfrentamento entre os campeões dos dois módulos. O Flamengo, campeão da Copa União, recusou-se a entrar em campo para enfrentar o Sport, campeão do torneio da CBF. A CBF declarou o Sport como campeão brasileiro de 1987. A coisa foi parar (como tudo no Brasil) no STF, que em 2018 declarou definitivamente o Sport como o campeão brasileiro daquele ano.

Essa discussão toda pode parecer bizantina, mas teve efeito prático importante em outra polêmica fundamental: quem deveria levar definitivamente para casa a taça das bolinhas. Essa taça estava reservada para o primeiro pentacampeão brasileiro desde 1971. Caso o título de 1987 valesse, a taça deveria ter sido entregue ao Flamengo, que teria vencido seu quinto título brasileiro em 1992. No entanto, com o título de 1987 sub-júdice, o São Paulo ganhou o seu quinto título em 2007, reivindicando a taça. Apesar de o STF já ter pacificado a questão sobre quem foi o campeão brasileiro de 1987, esta disputa da taça das bolinhas ainda está sem decisão final. O STF acabará tendo que decidir sobre esta importante questão também.

Fico imaginando como a UEFA e os clubes europeu vão se virar sem ter um STF para decidir essas questões.

A pobreza como destino

Mario Vargas Llosa, em artigo publicado hoje no Estadão, pede votos para Keiko Fujimori no 2o turno das eleições peruanas, a serem disputadas em junho.

Imagine um 2o turno entre Guilherme Boulos e Eduardo Bolsonaro, este concorrendo após seu pai ter governado o país por 10 anos e ter tentado dar um golpe para se perpetuar no poder. Agora imagine Fernando Henrique pedindo votos para Bolsonaro. Isso é mais ou menos o que está acontecendo no Peru neste momento. Como chegamos neste ponto?

Estou muito longe de ser um especialista em política peruana. Faço aqui apenas uma análise à distância, tentando traçar paralelos com a política brasileira, um exercício sempre precário.

Quem acompanha Vargas Llosa não pode deixar de ficar espantado com esse posicionamento. O prêmio Nobel de literatura foi um crítico áspero de Alberto Fujimori, de quem foi adversário nas eleições de 1990, tendo perdido no 2o turno.

A partir do governo de Alberto Fujimori, o Peru, assim como o Brasil, entrou em uma fase de reformas estruturais que lhe permitiu alcançar estabilidade econômica rara por essas bandas latinas. Cabe ressaltar que Vargas Llosa também era a favor dessas reformas, o que nos leva a crer que a história do Peru estava escrita em 1990.

No gráfico abaixo, podemos observar a relação entre a renda/capita do Brasil e a do Peru.

No início dos anos 90, a renda do Brasil era o dobro da peruana. Nos últimos 30 anos, o Peru praticamente nos alcançou, com a renda brasileira ficando apenas 15% acima da peruana (o ano de 2020 está contaminado pela epidemia).

O rating soberano do Peru foi elevado para Grau de Investimento em abril de 2008, um mês antes do Brasil. A diferença é que eles ainda são Grau de Investimento, com rating BBB+, enquanto nós perdemos o Grau de Investimento no final de 2015, sendo hoje BB-. Ou seja, precisaríamos de 5 upgrades para atingir o nível do Peru. Hoje, um título do governo do Peru de 10 anos está pagando 5% ao ano, enquanto o nosso, para atrair investidores, precisa pagar 9% ao ano.

O interessante é que a disciplina que permitiu diminuir as taxas de juros e aumentar a renda atravessou governos de esquerda (como o de Humala) assim como de direita (como o de Alejandro Toledo), ou mesmo simplesmente populistas, como o de Fujimori.

No entanto, algo aconteceu. Mais do que a Lava-Jato, que devastou a classe política peruana, um descontentamento generalizado parece estar dando as cartas, assim como aconteceu no Chile. Chegamos, então, ao artigo de Mario Vargas Llosa.

Vargas Llosa, em seu artigo, prevê o fim das eleições livres, a lá Chavez/Maduro, caso o Guilherme Boulos deles, Pedro Castillo, seja eleito e implemente a sua agenda de estatização generalizada. Vê em Keiko Fujimori o “mal menor”, caso ela se comprometa a “respeitar a liberdade de expressão, não expulsar os juízes do Poder Judiciário e a convocar eleições ao término de seu mandato”. Ou seja, desde que a filha de Fujimori seja a democrata que seu pai não foi. Entre a ameaça à democracia pela esquerda e pela direita, Llosa opta por esta última. Se optou, é porque viu um “mal menor”.

O que mais me chama a atenção nisso tudo é o fato de o Peru ter, aparentemente, seguido à risca o receituário da Faria Lima para ser feliz: disciplina fiscal e reformas. O que nos leva à conclusão de que, se essas são condições necessárias para o progresso, estão longe de serem suficientes. O Peru está, igualzinho ao Brasil, entre a cruz e a caldeirinha, mesmo sendo um aluno exemplar.

A conclusão a que eu chego é que, por mais que façamos, somos reféns do nosso DNA, que determina a fraqueza de nossas instituições, eternamente capturadas por elites predatórias, e sempre ficaremos sujeitos a qualquer populista com discurso apelativo que aparece. A nossa pobreza é um destino.

Reféns de uma utopia

Chamou-me a atenção reportagem do último 13 de abril no Valor Econômico sobre o imbróglio do linhão que ligaria Manaus a Boavista, trazendo energia da usina de Tucuruí para o Estado de Roraima. Não por ser um assunto novo, mas por não o ser. Esses assuntos vêm e vão, e sempre que voltam me causam uma sensação de deja vu. Espantou-me o fato de ainda não ter sido resolvido.

Para saciar minha própria curiosidade, resolvi investigar as origens do problema e onde está enroscando. Preparados? Puxem o banquinho, porque a história é longa.

Um pouco de contexto

O Estado de Roraima é o único da Federação que não está conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Isso significa que não consegue receber energia elétrica produzida por nenhuma hidroelétrica em funcionamento no país. Suas necessidades de energia são supridas por um contrato com a Venezuela e por usinas termoelétricas. Estas usinas termoelétricas, além de poluentes, geram energia mais cara do que as hidroelétricas. Este custo adicional é pago pelos consumidores de eletricidade de todo o país através da CDE – Conta de Desenvolvimento Energético. Trata-se de um arranjo precário, que deixa os 500 mil habitantes do Estado sem energia de maneira frequente, como podemos ver, por exemplo, aquiaqui e aqui.

A solução para este problema seria a construção de um linhão que ligaria Manaus (AM) a Boavista (RR). Este projeto está parado porque faltam as autorizações ambientais. Mais especificamente, a autorização para passar o linhão pela reserva indígena Waimiri Atroari. Esta reserva, estabelecida em 1989 pelo então presidente José Sarney, tem aproximadamente 26 mil km2 de área (cerca de 10% maior que o Estado de Sergipe), onde vivem aproximadamente 2 mil índios da etnia Waimiri Atroari em algo como 30 aldeias.

Cronograma dos acontecimentos

Este cronograma foi a melhor aproximação que consegui fazer, levantando informações esparsas em várias reportagens. As duas principais fontes, no entanto, foram uma petição dos índios Waimiri Atroari para o MPF, de 18/03/2019, e as notas taquigráficas de uma audiência na Câmara dos Deputados sobre o assunto, em 23/04/2015. Há algumas contradições entre essas duas fontes, que procurei dirimir de maneira que o cronograma fizesse mais sentido.

Setembro/2011: tudo começa com o leilão da concessão do Lote A de linhas de transmissão, realizado na Bovespa em 02/09/2011.

Na verdade, começou antes, com os estudos de viabilidade do projeto. Quatro alternativas foram levantadas pela EPE – Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério das Minas e Energia. Estas quatro alternativas estão resumidas na tabela abaixo:

Vou destacar duas dessas alternativas: a número 1, que foi a escolhida, e a número 3, a única que evitava a passagem pela reserva Waimiri Atroari.

Observe a diferença de custo entre essas alternativas: cerca de 60%. Mas não foi somente a diferença de custo que fez pender a balança para a alternativa 1. Na Análise Sócio-Ambiental das alternativas, fica claro que esta alternativa também era melhor do ponto de vista ambiental, pois evitava atravessar grandes extensões de mata virgem.

É importante ressaltar que o Ministério das Minas e Energia consultou a Funai sobre o problema de o linhão atravessar uma reserva indígena. A Funai expediu um ofício em 18/08/2011, afirmando que não haveria impedimento legal, desde que tomadas as medidas mitigadoras e realizados todos os estudos. Não se tratava de uma autorização, mas de um pré-clereance. No Brasil, as licenças ambientais são obtidas após os leilões de infraestrutura, não antes. Mas esta carta dava um conforto de que seria possível passar o linhão pela reserva, dado que outros linhões pelo Brasil também passam por reservas indígenas.

Feito o leilão, sagrou-se vencedor o consórcio Transnorte, cujos sócios eram a Alupar e a Eletronorte, subsidiária da Eletrobrás.

Maio/2012: é estabelecido um Grupo de Trabalho pela Eletronorte, que tinha como objetivo avaliar, juntamente com a FUNAI, e a Associação da Comunidade Waimiri Atroari (ACWA), os resultados do Programa Waimiri Atroari (PWA). Este programa havia sido celebrado em junho de 1987 para compensar os indígenas pelos prejuízos causados em função da construção da hidroelétrica de Balbina em suas terras. A hidroelétrica havia inundado 1,16% da área da reserva e resultado na remoção de duas aldeias. Este convênio era pago pela Eletrobrás, no valor aproximado de R$ 6 milhões/ano. Considerando que são 2.000 índios, resulta em R$ 250/índio/mês, contando homens, mulheres e crianças. O convênio venceria em junho de 2013, 25 anos depois de firmado (conforme item 17 da petição para o MPF). Guarde essa data.

O fato de a Eletronorte fazer parte do consórcio vencedor não pode ser coincidência. O fato de a subsidiária da Eletrobrás já financiar este programa certamente deu mais segurança ao consórcio para dar o seu lance no leilão do linhão. Meu palpite é que a Eletronorte já havia antecipado a provável solicitação da comunidade pela extensão do programa como pré-requisito para a aprovação da passagem do linhão por suas terras.

Os próprios índios, como reconhecem no item 25.a da petição ao MPF acima citada, “informam à Funai, em agosto de 2012 […] que não poderiam conversar sobre a Linha de Transmissão até que o ponto de pauta relevante para eles – a renovação do PWA – estivesse vencido. Ou seja, só teriam condições de conversar sobre a Linha de Transmissão […] após a renovação do PWA […]” (grifo nosso). Há, claramente, uma troca tácita aqui.

No entanto, no item 28 da petição ao MPF acima citada, é transcrito um comunicado da comunidade para a Eletronorte, em janeiro de 2013, afirmando que “a comunidade em nenhum momento disse que se o PWA fosse renovado concordariam com a instalação de linhas de transmissão em suas terras. O que a comunidade disse e escreveu é que só CONVERSARIA SOBRE O ASSUNTO APÓS A RENOVAÇÃO DO PWA”. A ênfase, como se pode observar, é malandra: não há realmente uma troca, mas apenas a retirada de um empecilho para, daí sim, começar a conversar. Somente negocia desta maneira quem tem condição de força. A força está com os índios, não com os capitalistas.

Junho/2012: o consórcio apresenta para o Ibama o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) exigido para a concessão de licença prévia de construção.

Setembro/2012: o Ibama, após consulta à Funai, devolve o EIA, pois falta o Componente Indígena. Componente Indígena é a parte do estudo que aborda a questão indígena. Para elaborar este Componente Indígena, é necessária a autorização da Funai para entrar na reserva e conversar com os índios. Os índios informam que não haveria conversa enquanto o PWA não fosse renovado. Portanto, nada de Componente Indígena, nada de EIA, nada de Licença Prévia de construção por parte do Ibama.

Janeiro/2013: a Eletronorte faz saber à comunidade Waimiri Atroari que somente estenderá o PWA se houver autorização para a passagem do linhão (item 35 da petição ao MPF citada acima). Os índios não gostam, obviamente, principalmente porque entendem que os impactos causados pela Usina de Balbina “são eternos, nada compensará o que ocorreu”, conforme escrito textualmente no documento citado acima. Ou seja, a comunidade Waimiri Atroari entende que tem direito eterno a uma mesada da Eletronorte e o linhão não tem nada a ver com o assunto.

Maio/2013: “De forma contrariada, (os índios) se viram realmente obrigados, coagidos, a aceitar a renovação nos termos impostos pela Eletronorte”. Este trecho está no item 39 da petição ao MPF citada acima. Nesta data, um mês antes do fim do convênio, o PWA é renovado, sujeito “à assinatura do Protocolo de Intenções entre a Eletronorte, a Funai e a ACWA que formaliza a concordância com o início imediato dos estudos do processo de licenciamento ambiental da LT Manaus – Boa Vista, bem como o cronograma geral do empreendimento, o qual fará parte integrante do PWA”.

Note que estamos em maio de 2013 e nem sequer houve o início dos estudos ambientais, que deveriam ter terminado no fim do ano anterior. O ano de 2012 todo foi gasto tentando convencer os índios a conversar, mas estes queriam a aprovação do PWA antes. A Eletronorte deu um xeque-mate, forçando não a consulta prévia aos índios, mas já o início dos estudos. Pelo menos, foi isso o que a Eletronorte pensou.

Julho/2013: início dos Estudos de Impacto Ambiental em campo, para elaboração do Componente Indígena. Como funciona? O secretário-adjunto do Ministério das Minas e Energia explica durante a audiência na Câmara: “a etnia aponta um antropólogo, a FUNAI homologa e o empreendedor, então, contrata esse profissional, que então faz o estudo”.

Dezembro/2013: a Justiça Federal decide suspender, em caráter liminar, a implantação da linha de transmissão de energia elétrica entre Manaus e Boa Vista. A medida atende a um pedido do Ministério Público Federal no Amazonas.

Março/2014: o consórcio entrega ao Ibama o EIA complementado com o Componente Indígena.

Maio/2014: reunião de apresentação preliminar dos estudos, que teve os seguintes encaminhamentos acordados entre a Transnorte, a Funai e a comunidade indígena, entre outros:

  • a Transnorte custearia a tradução do “Estudo do Componente Indígena” e do “Diagnóstico Arqueológico Colaborativo” para a língua kinja iara, objetivando a melhor compreensão dos Waimiri Atroari em relação ao conteúdo dos estudos;
  • a Funai encaminharia à Presidência da República a solicitação feita pela comunidade Waimiri Atroari referente a ida da então Presidente da República para a Terra Indígena Waimiri Atroari, a fim de tratar do empreendimento.

Os grifos são meus. Os índios pediram a tradução do Componente Indígena e nada menos do que a ida da então presidente da República para a comunidade. Quem sabe se a Dilma tivesse realmente ido, não teria desenrolado a coisa.

Junho/2014: realização das audiências públicas nos 4 municípios que seriam atravessados pelo linhão.

Junho ou Setembro/2014 (aqui há uma contradição insanável das fontes): a FUNAI devolve o Estudo de Impacto Ambiental, apontando 27 impactos irreversíveis do projeto nas terras indígenas, inclusive com a opinião contrária do antropólogo quanto à conveniência de construção do linhão na reserva.

Novembro/2014: o MPF solicita paralisação das obras do Linhão Tucuruí que afetam diretamente os territórios indígenas; a Justiça Federal suspende o leilão.

Dezembro/2014: o consórcio devolve o EIA com os esclarecimentos devidos. Para tanto, contrataram um grupo de antropólogos, rebatendo item por item apontados pela Funai. Na opinião desses antropólogos, os impactos apontados são temporários, ocorrerão somente durante a construção, e são mitigáveis; muitos deles, até reversíveis. No entanto, o Ibama nega a Licença Prévia (LP) das obras no linhão, considerando o parecer desfavorável da Funai.

Janeiro/2015: o então Ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, encaminha ofício ao Ministro da Justiça, pressionando por um posicionamento da Funai no sentido de liberar as obras.

Abril/2015: em audiência na Câmara dos Deputados nesta data, o representante da Funai informa que a tradução do Componente Indígena havia sido feita, mas ainda não havia sido encaminhada à tribo (lembre-se que essa tradução foi solicitada em reunião de maio de 2014 – essa tradução voltará à narrativa mais adiante). Depois disso, deveria haver uma oitiva dos índios, que sequer tinha data marcada (!).

Aqui cabe uma interrupção para desenvolver um pouco mais sobre essa questão da oitiva dos índios, que acho que sintetiza o absurdo de toda essa situação.

Segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário, todas as intervenções que envolvam indígenas devem passar antes por consultas aos mesmos. Antes de qualquer consulta, como vimos, a comunidade exigiu a renovação do Programa Waimiri Atroari, citado acima, o que somente ocorreu em maio/2013. A partir daí, começa o calvário da oitiva dos índios. Vou citar o trecho do representante da Transnorte, Fábio Lopes Alves, na audiência da Câmara dos Deputados, segundo as notas taquigráficas:

A questão que também tem de ser analisada — e eu venho tratando disso diuturnamente por conta do problema — é a própria normativa, o disciplinamento. Isso está indefinido. O nobre Deputado perguntou a quem competia a OIT. Até pouco tempo atrás queriam que a Presidente fosse lá para fazer a OIT. Isso está no relatório da FUNAI.
O estudo com tradução indígena tem 700 páginas. Não se questiona se era necessário ou não. Mas foi dito que não era peça determinante no processo de licenciamento. Assim que indicaram o nome do tradutor nós o contratamos, porque não é fácil encontrar tradutor de waimiri-atroari na praça. No mesmo dia nós o contratamos.
Pois bem, foi feito…
O SR. PRESIDENTE (Deputado Edio Lopes) – Esse tradutor foi contratado sob indicação da FUNAI?
O SR. FÁBIO LOPES ALVES – Foi. Foi feito um programa de tradução, respeitando-se, é lógico, os calendários indígenas. Isso levou 4 ou 5 meses. Chegou agora. O estudo saiu com 700 páginas dobradas, porque um lado é a língua portuguesa e outro é… Perguntamos o que fazer, e mandaram tirar 32 cópias para distribuir. São 21 mil páginas. Isso foi agora, há uma semana. Estamos providenciando para mandá-las.
Então, essas questões deixam o empreendedor nesse limbo, nessa confusão e, de fato, o empreendimento não sai. Fica assim: Não, só quando houver a oitiva. Entra mês, sai mês e o empreendimento não sai. Essa é a verdade.

O indigenista José Porfírio de Carvalho, em outro trecho da audiência, comenta sobre os hábitos de leitura dos índios:

Agora, o que está pendente? Está pendente o seguinte: falta chegar o relatório realmente para eles lerem — e eles não vão ler. Eles não têm o hábito de, todo dia, no final da tarde, sentar numa cadeira ou numa rede e ficar lendo. Eles não têm esse hábito. Eles leem devagarzinho. A leitura é devagar, não é uma coisa rápida, não é. Então, temos que ter paciência, ou nós os atropelamos, o que é diferente — é diferente. E eles dizem: Já estamos acostumados a ser atropelados. E estão mesmo, mas eles sabem reagir. Só isso. Mas eles precisam ouvir alguém do Governo que vá lá convencê-los de que nós não vamos fazer a linha por fora porque há vários motivos.

Acho que os textos falam por si. Parece-me que o ponto principal a ter em mente aqui, para compreender melhor o imbróglio da oitiva, é entender que, para os índios, não é qualquer conversa que pode ser considerada uma consulta. Há todo um ritual para isso, ritual esse que deve respeitar os tempos e modos dos índios. Pode parecer somente enrolação, e é.

Junho/2015: o Senador Telmário Mota (PDT/RR) realiza reunião com o presidente recém-empossado da Funai, tendo como pauta as obras do Linhão Tucuruí.

Setembro/2015: a Transnorte protocola na Aneel requerimento para rescisão amigável do contrato de concessão.

Outubro/2015: nova reunião ocorre dentro da reserva indígena, na qual estavam presentes representantes do Ministério de Minas Energia, Funai, Ibama, Eletrobras e a governadora de Roraima, Suely Campos (PP), entre outras autoridades.

Novembro/2015: a presidente Dilma Rousseff, em audiência com a governadora de Roraima, Suely Campos (PP) no Palácio do Planalto, promete resolver o quanto antes a liberação da obra de construção do Linhão de Tucuruí.

Novembro/2015: a Funai, pressionada pelo Ministro das Minas e Energia, Eduardo Braga, dá o seu aval para o início da construção do linhão. A pressão aumentou depois de a concessionária Transnorte avisar que tinha desistido da obra. A Funai era então presidida pelo ex-deputado estadual petista João Pedro Gonçalves da Costa. Quer dizer, o governo petista não foi lá um exemplo no tocante ao “respeito aos índios”.

Dezembro/2015: com o aval da Funai, o Ibama emite a Licença Prévia de construção. Agora vai!!!

Fevereiro/2016: a juíza Marília Gurgel Rocha de Paiva e Sales, do TRF do Amazonas, suspende os efeitos da licença ambiental concedida pelo Ibama, que autorizava o início da construção do Linhão de Tucuruí. A juíza destaca na ação que foram realizadas quatro consultas públicas entre os dias 08 e 11 de junho de 2014, nas cidades de Presidente Figueiredo/AM, Manaus/AM, Rorainópolis/RR e Boa Vista/RR. Mas ressalta que nenhuma delas aconteceu dentro da terra indígena Waimiri Atroari.

Março/2016: o desembargador Cândido Ribeiro, do TRF1, acolhe recurso da União e derruba a liminar que suspendia os efeitos da Licença Prévia do processo ambiental do Ibama. Em sua decisão, o desembargador afirma que os documentos que constam no processo, como protocolos de reuniões de trabalho, atestam que o povo indígena foi consultado pela Funai sobre a elaboração do Estudo do Componente Indígena Waimiri Atroari (EIA-CI-WA).

Março/2016: a Transnorte protocola a 1ª versão do Plano de Trabalho para o estudo de detalhamento das medidas de mitigação e compensação. Análise da Funai indica necessidade de reformulação.

Julho/2016: a Transnorte protocola a 2ª versão do Plano de Trabalho. A Funai afirma que as inconsistências não foram sanadas.

Agosto/2016: a Transnorte protocola a 3ª versão do Plano de Trabalho e a Funai afirma novamente que não responde às questões apontadas.

Fevereiro/2017: a Transnorte protocola a 4ª versão do Plano de Trabalho, após reunião com a Funai.

Março/2017: a Funai manifesta-se pela conformidade do Plano de Trabalho apresentado, sendo agendada para abril reunião com a comunidade indígena para a sua apresentação.

Abril/2017: demissão do Presidente da Funai suspende reunião de apresentação do Plano de Trabalho para a comunidade indígena.

Maio/2017: o povo Waimiri Atroari entra em rituais de luto pelo falecimento do indigenista José Porfírio Fontenele de Carvalho.

Agosto/2017: o povo Waimiri Atroari convida o novo presidente da Funai para retomar o diálogo suspenso pela demissão do antecessor (4 meses depois!).

Setembro/2017: reunião com o presidente da Funai, em que é solicitada nova data para reunião de apresentação do Plano de Trabalho. A data fica acordada para início de dezembro de 2017.

Novembro/2017: a Licença Prévia que havia sido emitida em dezembro/2015 é anulada pela 3ª Vara Federal de Manaus pelo não cumprimento da legislação sobre a consulta ao povo Waimiri Atroari. Lembrando que essa “legislação” na verdade é uma convenção internacional da OIT.

Janeiro/2018: reunião de apresentação do Plano de Trabalho para a elaboração do Plano Básico Ambiental entre o presidente da Funai e a Comunidade Waimiri Atroari (aquela reunião que deveria ter ocorrido em abril de 2017).

Março/2018: em resposta à reunião de janeiro, a comunidade Waimiri Atroari considera o Plano de Trabalho como satisfatório, solicitando, entretanto, sua adequação ao Protocolo de Consulta do Povo Waimiri Atroari, para início dos trabalhos em campo. Reunião técnica para esta adequação é marcada para abril. (grifos nossos – esse Protocolo de Consulta voltará em outros pontos).

Abril/2018: a reunião técnica de adequação do Plano de Trabalho ao Protocolo de Consulta da comunidade Waimiri Atroari é suspensa devido à demissão do Presidente da Funai.

Junho/2018: reunião do presidente da Funai e do Ministro da Defesa com os Waimiri Atroari, onde foi reafirmado pelas autoridades o compromisso em cumprir o Protocolo de Consulta.

Agosto/2018: a Eletronorte envia ofício à Funai, informando que a continuidade dos pagamentos do programa de compensação (PWA) fica condicionada ao cumprimento, pela comunidade indígena, de ações para o licenciamento ambiental da linha de energia elétrica. Em resposta, a comunidade Waimiri-Atroari manda carta afirmando que “não aceitaremos essa imposição e só nos manifestaremos acerca da linha de transmissão quando nos considerarmos suficientemente esclarecidos sobre seus impactos e as medidas de compensação ou mitigação decorrentes”.

Na mesma carta, os Waimiri Atroari agendam a reunião de adequação do Plano de Trabalho ao Protocolo de Consulta para 13 de setembro de 2018.

Setembro/2018: realizada a reunião de adequação do Plano de Trabalho ao Protocolo de Consulta, na qual o empreendedor apresenta Plano de Trabalho com cronograma detalhado das medidas de mitigação e compensação.

Fevereiro/2019: a juíza federal de Manaus (AM) Raffaela Cássia de Sousa determina que a Eletronorte pare de fazer pressão sobre os índios waimiri-atroari, em função do ofício enviado em agosto do ano anterior. O MPF argumenta que “a empresa adotou uma medida de chantagem ao povo kinja [como se autodenominam os waimiri-atroari], exigindo a manifestação positiva ao empreendimento de linha de transmissão, independentemente de adoção do procedimento de consulta prévia, livre e informada. A atuação abusiva chegou a patamares inimagináveis, colocando em risco a própria autossutentabilidade dos waimiri-atroari”. (grifo nosso)

Lembre-se: estamos em 2019, quase 4 anos depois de terem sido entregues os estudos traduzidos. Mas o curioso mesmo é o MPF falar em “autossutentabilidade” quando os índios dependem da mesada da Eletronorte.

Fevereiro/2019: O Conselho Nacional de Defesa (CND) classifica a linha Manaus-Boa Vista como projeto estratégico. A medida foi tomada para tentar viabilizar a emissão da licença ambiental.

Fevereiro/2019: O diretor técnico do consórcio Transnorte, Raul Ferreira, confirma que as obras do Linhão de Tucuruí devem ser retomadas no segundo semestre de 2019. Segundo ele, o principal entrave para a retomada da obra – que era a negociação com os indígenas – foi superado e essa fase está concluída.

Animadinho o diretor, não?

Março/2019: o diretor-geral da Aneel, André Pepitone, anuncia que o projeto será retomado pelo Consórcio vencedor da licitação, com base no despacho do CND.

Junho/2019: um documento enviado pela Associação Comunidade Waimiri-Atroari (ACWA) ao ministro da Justiça, Sérgio Moro, rebate a acusação de serem apontados como principais obstáculos à efetivação da linha de transmissão Manaus – Boa Vista. “A única condição imposta pela Comunidade Indígena Waimiri-Atroari foi a de que seja respeitado o direito de consulta prévia”, reforça trecho da nota, assinada pelo diretor gerente da ACWA, Mario Parwe Atroari.

Só pode ser brincadeira…

Junho/2019: após mais de oito horas de julgamento no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), os desembargadores decidem que a concessão de licença de instalação para as obras do linhão de Tucuruí no Amazonas só poderá ser realizada após consulta aos povos Waimiri-Atroari. O início das obras, no entendimento do MPF, depende diretamente da consulta com respeito ao Protocolo de Consulta.

Setembro/2019: A Transnorte solicita à justiça a rescisão do contrato de concessão do linhão Manaus-Boa Vista. Segundo a empresa, a Aneel não teria reajustado a remuneração para o nível requerido, o que manteria a obra inviável do ponto de vista econômico-financeiro. Ainda segundo a empresa, os gastos totais com a obra seriam de R$ 2,6 bilhões, R$ 1 bilhão acima do previsto em 2011, devido aos atrasos na obtenção do licenciamento ambiental. A Aneel considera que a obtenção da licença ambiental é risco do empreendedor.

<aqui passa-se um ano sem nenhum registro na imprensa>

Setembro/2020: o ministro das Minas e Energia, almirante da reserva Bento Albuquerque, entrega a parlamentares da bancada federal de Roraima um novo calendário para a construção do Linhão de Tucuruí. Agora, o início efetivo da obra está previsto para o começo de 2021, com prazo previsto de conclusão para o final de 2023.

Mais uma previsão furada…

Janeiro/2021: a tradução do Plano Básico Ambiental-Componente Indígena (PBA-CI) para a língua dos Waimiri-Atroari foi concluída e entregue aos indígenas. A reportagem diz que o plano foi traduzido recentemente. No entanto, como vimos, em audiência na Câmara dos Deputados de abril/2015, o representante da Transnorte havia dito que foi feita uma tradução, mas que ainda não havia sido entregue aos índios. Depois de tantas idas e vindas, aprovações e desaprovações, é provável que seja outro documento. Esta outra reportagem diz que o trabalho de tradução deveria ter sido iniciado em março/2020, mas foi adiado em função da pandemia e somente retomado em outubro/2020, com a anuência dos índios.

Então ficamos assim: um trabalho monstruoso de tradução foi feito em 2015 e foi simplesmente jogado fora. Novo esforço de tradução precisou ser feito em 2020.

Fevereiro/2021: os indígenas Waimiri Atroari iniciam a distribuição do Plano Básico Ambiental-Componente Indígena (PBA-CI) traduzido para as 60 aldeias da reserva. Só depois de todo mundo ler, será marcada reunião de acordo com os “protocolos de consulta”.

Março/2021: a justiça do DF (1ª instância) determina a rescisão do contrato entre a Transnorte e a União, abrindo espaço para uma relicitação da concessão. Cabe recurso.

Quase 10 anos depois do leilão…

Abril/2021: o diretor-geral da Aneel, André Pepitone, informa que deverão ter início ainda neste ano as obras que permitirão a Roraima receber energia do Sistema Interligado Nacional (SIN).

Análise

Segundo esta reportagem, o indigenista José Porfírio Carvalho diz, a respeito da reunião que teve lugar em 01/10/2015:

“As autoridades foram acompanhadas de técnicos do Ibama e do Ministério de Minas e Energia e apresentaram aos índios o projeto da obra, mas não houve entendimento com relação ao traçado dentro da terra indígena Waimiri Atroari. Os índios queriam e querem saber quais as razões concretas de o traçado ser instalado dentro das terras indígenas e não por outra opção. Nem a governadora [de Roraima] nem os técnicos do Ibama e do Ministério de Minas e Energia conseguiram explicar os motivos. Nada ficou acertado. […] O principal impacto é o processo construtivo, onde para cada obra estarão circulando dentro de suas terras 100 homens, máquinas, isto multiplicado por 250 [torres] é um impacto de dimensão violenta”.

O mesmo indigenista, em entrevista ao site Amazônia Real, afirma textualmente: “Os Waimiri Atroari não têm nenhum interesse em que essa linha seja construída por dentro de suas terras. […] Mas ainda não disseram isto publicamente, pois se disserem que não deixam passar, eles vão lutar todo dia para que não seja construída, mesmo que resulte em morte deles”.

Fica claro nessas falas que os indígenas simplesmente não querem a construção, o que contradiz o discurso oficial, que diz que os índios não são contra o linhão, apenas querem ser devidamente consultados. Como eles não têm o poder de vetar (ninguém tem, funciona como uma desapropriação, você pode discutir os termos da desapropriação, mas como é de interesse público, não tem como barrar), apelam para o discurso de que “não foram consultados”. O motivo de passar pela terra deles já ficou claro no projeto: a passagem por fora consumiria 60% a mais de recursos e teria impacto ambiental muito maior. O traçado pela terra indígena, por margear uma rodovia já construída, teria impacto ambiental próximo de zero. Difícil acreditar que esse arrazoado não tenha sido explicado para os indígenas.

Que os povos indígenas não têm poder de veto até o próprio diretor da Funai reconhece, como mostra esse diálogo da audiência de abril/2015 deixa claro:

O SR. PRESIDENTE (Deputado Edio Lopes) – A pergunta é: a FUNAI entende que a consulta de que trata a OIT 169 tem cunho deliberativo? Ou não? Eu quero saber a posição da FUNAI nesse aspecto.
O SR. ARTUR MENDES – O senhor quer saber, para ser mais objetivo ainda, se os índios têm poder de veto? É isso?
O SR. PRESIDENTE (Deputado Edio Lopes) – É, se têm poder de deliberação.
O SR. ARTUR MENDES – Não, não têm. A decisão do Governo brasileiro leva em conta a manifestação dos índios, mas não necessariamente será… Eles não têm esse poder de veto.

Ao longo do processo, há quase que uma impossibilidade física de consulta aos índios. O tempo inteiro eles alegam que não foram “adequadamente consultados”. No entanto, se recusaram a conversar antes da renovação do PWA. Como consultar alguém que se recusa a conversar? E, mesmo após a renovação, a alegação de que não foram “adequadamente consultados” perdurou.

Na verdade, eles queriam ter sido consultados antes mesmo da definição da melhor alternativa de traçado, antes do leilão. O que é um desejo legítimo, porém inviável, dado o interesse público envolvido. Por mais que desejassem, os Waimiri Atroari não formam uma nação dentro da nação. São parte do Brasil e estão sujeitos às mesmas leis que todos os outros brasileiros. Qualquer obra de interesse público tem o direito de passar por qualquer lugar, desde que os prejudicados sejam devidamente indenizados. A questão não é se vai passar ou não, mas quanto vai custar passar. Os índios, na prática, estão vetando o projeto, sob a alegação de que não foram “adequadamente consultados”.

“A consulta não é simplesmente uma audiência homologatória. Os indígenas têm um protocolo de consulta próprio”, diz o procurador da República, Júlio José Araújo Junior, que atuou no caso quando esteve na Procuradoria do Amazonas. É compreensível. O que não é compreensível é passarem-se quase 10 anos e esse tal “protocolo de consulta próprio” ainda não ter sido aprendido pelo homem branco.

O interessante é que a Oi passou cabos óticos ao longo da rodovia, por dentro da reserva, e esta obra foi aprovada, em troca de compensações para a tribo – no caso, telefone de graça para toda a tribo, segundo depoimento do indigenista José Porfírio Carvalho na audiência da Câmara em 2015. Portanto, não parece ser um problema de compensar corretamente, mas do impacto em si da obra. Enterrar cabos parece ser muito menos intrusivo do que construir torres de transmissão. Existe um veto sim à obra do linhão. Um veto ilegal, sob a capa da “falta de consulta prévia, livre e informada”.

Cabe ressaltar que a pressão para a construção do linhão ocorreu também no governo Dilma. Não foi, portanto, uma invenção do governo Temer ou do governo Bolsonaro. Até para não parecer que se trata de uma questão ideológica.

Conclusão

Somos reféns de uma utopia.

Quando Pedro Álvares Cabral aportou por essas terras, o mundo era outro. Muito mais violento, muito mais selvagem. A consciência ética do mundo evoluiu, e nos tornamos mais sensíveis a violações de direitos humanos. O que era apenas natural na época, hoje nos parece uma injustiça que deve ser reparada.

No entanto, passaram-se 500 anos. Por mais que alguns possam lamentar, a fila andou, e formou-se um país no lugar onde estavam antes terras indígenas. Esta é a realidade atual. Somos todos brasileiros, não há nações independentes dentro da nação. Claro, os descendentes dos povos indígenas originais merecem proteção e reparação. Mas suas necessidades devem ser sopesadas com as necessidades de seus outros irmãos brasileiros.

A utopia consiste em considerar que é possível remontar o cenário de 500 anos atrás, como se o Brasil não existisse. Somos reféns dessa utopia, a busca pelo paraíso idílico, uma ilha desconectada da realidade à sua volta. Se é para ser assim, que se declare a independência das nações indígenas e que vivam de acordo com suas próprias possibilidades. Sim, sabemos que isso não é possível em dois níveis: não é possível desmembrar territorialmente a nação e, principalmente, os índios não conseguiriam realmente sobreviver sozinhos. Não por outro motivo os Waimiri Atroari dependem da mesada da Eletronorte.

É essa utopia que tem feito os 500 mil brasileiros de Roraima viverem em um ambiente de incerteza energética, com apagões frequentes, além de depender da energia produzida por fontes poluentes e caras, em uma conta dividida entre todos os outros 210 milhões de brasileiros, ricos e pobres.

Poderia o traçado do linhão ter evitado a terra Waimiri Atroari? Sim, ao custo de algumas centenas de milhões de reais (que hoje parece barato, depois de todo esse imbróglio) e um grande impacto ambiental. Seria razoável? Parece que não. A reserva dos Waimiri Atroari é 10% maior do que o estado do Sergipe. Difícil entender como, com uma área desse tamanho, a colocação de 250 torres ao longo de uma estrada que já existe poderia, de alguma forma, ameaçar o modo de vida dos indígenas.

Mas a utopia, o índio sem o pecado original, é muito forte. Mais forte do que todo um país.

Principais fontes de referência

O centro do sistema

Qual a maior empresa do Brasil? Se você chutou “Petrobras”, errou. Com cerca de R$ 300 bilhões anuais de faturamento, a Petrobras é apenas a segunda maior empresa do Brasil.

A maior empresa do Brasil, de longe, é o governo federal. Com “faturamento” de aproximadamente R$1,5 trilhões, é nada menos do que cinco vezes maior do que a segunda colocada.

Mas o governo não é uma empresa qualquer. Se compararmos com o sistema solar, o governo é o Sol, tem luz própria. Não apenas é muito maior, mas sua natureza é diferente. O governo emite uma moeda que é aceita nas transações entre todas as outras empresas. E, além disso, elabora leis que tornam obrigatório o pagamento de impostos. A Petrobras não tem o poder de obrigar ninguém a comprar seus produtos. Mas o governo tem o poder coercitivo de garantir o seu “faturamento”: todos são obrigados a pagar impostos.

Como qualquer empresa, no entanto, o governo pode dar lucro ou prejuízo. No nosso caso, dá prejuízo. E dos grandes. Mas, ao contrário dos outros planetas, o Sol pode emitir moeda a seu bel prazer ou obrigar os outros planetas a pagarem mais impostos. E seu tamanho é tão maior, que é virtualmente impossível escapar de financiar a sua dívida. Todos os planetas orbitam em torno do Sol, não há escapatória possível.

Às vezes me pego pensando porque se gasta tantos litros de tinta analisando no detalhe a política e as decisões de Brasília.

O motivo é simples: qualquer tempestade eletromagnética no Sol pode ter influência deletéria nos planetas. O Sol, pelo seu tamanho e pelas suas características únicas, é determinante para a vida dos planetas. Por isso é tão importante a estabilidade do governo. Assim como o Sol nasce e se põe todos os dias, sem que notemos a sua presença a maior parte do tempo, assim deveria ser o governo.

Essa alegoria tem um defeito: os planetas não podem sair de suas órbitas, mas as pessoas e empresas podem sim decidir que esse Sistema Solar não lhes serve e procurar outro Sol para orbitar. Os planetas seguem as leis da física, as pessoas e empresas seguem as leis da sobrevivência.

Uma sinalização

“Estou aguardando o povo dar uma sinalização”. Para quê? “Para tomar providência”. O que quer que isso signifique.

Temos, na história do Brasil, dois presidentes que pediram sinalização para o povo.

O primeiro foi Jânio Quadros. Renunciou, esperando que o “povo” o reconduzisse em triunfo para o Palácio do Planalto. Os brasileiros receberam a renúncia com frieza.

O segundo foi Collor. Pediu que o “povo” usasse verde e amarelo em seu apoio. Os brasileiros usaram preto.

Por outro lado, quando os brasileiros realmente foram para as ruas, a “sinalização” não foi nada boa para os governantes de plantão.

Em 1964, o povo na rua sinalizou que não queria mais Jango.

Em 1984, o povo na rua sinalizou que não queria mais a ditadura militar.

Em 1992, o povo na rua sinalizou que não queria mais Collor.

Em 2016, o povo na rua sinalizou que não queria mais Dilma.

Pedir “sinalização” para o povo é sinal de fraqueza, não de força. E os tubarões sentem cheiro de sangue na água de longe.

Aluguéis: o “empurrãozinho” para o IPCA

O cão de Pavlov liberal que vive dentro de mim começou a salivar quando viu a notícia: “Câmara vai tentar fixar IPCA como teto de reajuste de aluguéis para evitar IGP-M”. Taí o governo se metendo novamente no livre mercado!

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Recentemente, negociei dois contratos de aluguel, pedindo para trocar o IGP-M pelo IPCA. Em um deles houve resistência. Não por qualquer motivo financeiro, mas pelo costume. “Sempre foi assim, não sei se será possível mudar”. No final, consegui.

Richard Thaler ganhou o Nobel de Economia em 2017 por suas pesquisas em finanças comportamentais. Ele escreveu um livro muito interessante, Nudge (que pode ser traduzido por “empurrãozinho”), no qual elenca várias situações em que, a depender de como as alternativas são apresentadas, as decisões dos seres humanos são diferentes. Por exemplo, em uma campanha de doações, está provado que se arrecada mais se as opções forem R$ 100, R$ 200 e R$ 500, do que se forem R$ 20, R$ 50 e R$ 100, mesmo havendo um campo para preencher com um valor qualquer de doação.

Thaler dá um nome a políticas públicas que têm como objetivo levar as pessoas a escolher “o melhor”: “paternalismo libertário”. Ele foi muito criticado por isso, mas muitas campanhas governamentais, principalmente nos EUA, levam em consideração os princípios desenhados por Thaler para levar a mudanças de comportamento das pessoas.

No gráfico abaixo, podemos ver as variações anuais do IGP-M e do IPCA ao longo do tempo, mostrando que o IGP-M é bem mais volátil que o IPCA.

O IPCA, por ser muito mais estável ao longo do tempo, reduz sobremaneira os potenciais atritos entre as partes do contrato. Além disso, o IGP-M é um índice que não tem relação com a inflação das pessoas e da maioria das empresas, por ser muito influenciado pelos preços das matérias-primas.

O IPCA, portanto, é claramente um índice superior ao IGP-M para locadores e locatários. Por que, então, o IPCA não é usado em lugar do IGP-M? Costume. É o padrão dos contratos. Ninguém pensa muito no assunto.

Neste contexto, um “empurrãozinho” do governo pode levar a sociedade para um equilíbrio melhor. Estabelecer um índice é a melhor alternativa? Talvez não. Mas deixar do que jeito que está pode ser uma alternativa ainda pior, em um mundo onde a “livre negociação” é exercida por pessoas que muitas vezes nem sabem a diferença entre o IGP-M e o IPCA.

Achei fracas as objeções elencadas na reportagem. Vejamos:

1. “A imposição de um índice “engessaria” o mercado”.

Bem, hoje temos um mercado “engessado” no IGP-M. Apenas trocaríamos o tipo de gesso. A livre negociação entre as partes esbarra, como dissemos acima, na ignorância sobre os índices disponíveis no mercado.

2. “Insegurança jurídica”.

Não vejo como essa lei poderia afetar a segurança jurídica dos contratos, a não ser que fosse retroativa, o que não é o caso.

3. “Expectativa frustrada de retornos em IGP-M por parte de investidores em fundos imobiliários”.

Bem, nesse caso há uma confissão implícita de que o IGP-M é um índice que roda mais alto do que o IPCA. Só que esta é uma não questão: se os reajustes forem mais altos do que a capacidade de pagamento dos locatários, os imóveis ficarão vazios. E é melhor um aluguel reajustado pelo IPCA do que um imóvel vazio. O que temos visto é que essa “expectativa de retorno” dos fundos imobiliários se frustrou mesmo tendo o IGP-M como indexador. No final, o que acaba mandando é o mercado, independentemente do indexador dos contratos. Além disso, a volatilidade não é amiga do investidor: o IPCA permite ter uma previsibilidade maior sobre o fluxo de caixa, o que sempre é desejável.

4. “Risco de desabastecimento e preços elevados”.

Você acha mesmo que um locador vai deixar de alugar o seu imóvel porque o indexador agora é o IPCA e não o IGP-M? Não vejo risco de “desabastecimento”. Ainda mais porque os contratos têm prazo determinado, normalmente 30 meses. Depois disso, vale novamente o mercado. Se o aluguel estiver muito defasado, o locatário pode renegociar e, no limite, pedir o imóvel de volta. Aliás, como sempre foi, não será a mudança do indexador que mudará isto.

Enfim, sempre torço o nariz para intervenções do governo no funcionamento dos mercados. Mas, neste caso específico, acho que vale um “empurrãozinho” para que o mercado assuma um equilíbrio melhor para todos. Talvez Richard Thaler tivesse uma ideia melhor para desenhar essa política. Mas, na ausência do Prêmio Nobel, é o que temos para o momento.

Açodamento

“Açodamento” é uma palavra chave no debate parlamentar. É como o “clinche” no boxe: o pugilista que está apanhando se agarra no adversário para interromper a luta e tomar um ar. No parlamento, quando os partidos da minoria percebem que a vaca está indo para o brejo, acusam o processo de “açodado” e pedem mais “debates com a sociedade”. Como se os parlamentares não fossem representantes da sociedade em uma democracia representativa.

Por isso me espantou que um grupo de entidades do campo, digamos, “progressista”, esteja acusando de “açodado” o processo de substituição da Lei de Segurança Nacional.

Há menos de duas semanas, um outro grupo de entidades, ligadas a partidos do mesmo campo ideológico, pedia o fim rápido da LSN. Segundo Mercadante, presidente da fundação Perseu Abramo, do PT, “o importante é que seja feito logo”.

Agora, provavelmente vendo que a nova lei está indo para uma direção que não lhes agrada, essas entidades perguntam “pra quê a preeeeeessssaaaa”?

É o que sempre digo: cuidado com seus desejos, eles podem se realizar.