O Estadão traz a história de um urbanista que viveu com dois corações durante um período. Trata-se de uma nova técnica de transplante, desenvolvida no Incor, que evita o uso de coração mecânico, procedimento caríssimo não coberto pelos planos de saúde.
A história é boa, mostra o avanço da medicina local. Mas, claro, não deixaram passar a oportunidade de fazer proselitismo pró SUS. Tanto o paciente, que “viu a finitude da vida e a importância do SUS”, quanto o repórter, que fez questão de repercutir a “visão”.
Nada é por acaso. Por trás dessa declaração inocente, está uma crítica velada a esses “neoliberais insensíveis que querem privatizar a saúde do brasileiro”. Afinal, “saúde não é mercadoria”, como bem nos lembrou, outro dia, uma ministra do STF.O curioso nessa história é que estamos falando de um urbanista, profissional de classe média, que certamente tem o seu plano de saúde privado. Foi parar no Incor provavelmente porque seu plano não cobria o procedimento necessário, e o Estado, financiado por todos nós, pagou pela sua cura. Se eu estivesse no lugar dele, também estaria tecendo loas ao SUS. Afinal, salvou a sua vida.
Tem só um pequeno problema: o SUS não foi feito para salvar a vida dos 1% mais ricos da população. O SUS foi feito para prestar atendimento de saúde para os 99% da população que não têm acesso aos hospitais particulares. Que o sistema privado é melhor que o público, não há dúvida. Se assim não fosse, não existiria a indústria de planos de saúde ou esses consultórios de baixo custo que pululam pelo país. A primeira coisa que um indivíduo faz quando começa a ganhar algum dinheiro é contratar um plano de saúde e colocar o filho na escola particular. Saúde e educação públicas são o fetiche da intelectualidade, mas cada um se defende quando se trata de resolver a própria vida.
Ficou famoso o slogan “viva o SUS” logo após tomar a vacina. Claro, uma campanha nacional de vacinação não seria possível sem a coordenação do Estado. O que não significa que os postos de aplicação precisassem ser, necessariamente, públicos. Haveria formas de parceria com a iniciativa privada. Mas, mesmo considerando a utilidade do SUS para a campanha de vacinação, vamos combinar que montar todo um sistema de saúde só para campanhas de vacinação não parece justificar-se economicamente.
O ponto é que nem a troca de um coração nem uma campanha nacional de vacinação escondem a precariedade do nosso sistema universal de saúde. Basta perguntar para as pessoas que esperam meses na fila por uma consulta ou que adentram nos hospitais públicos por esse país afora (o Incor não está no padrão SUS).
Defender o SUS tem como objetivo se contrapor a uma visão mercantilista da saúde. A saúde é um bem universal, que deve ser atendido por um sistema universal. Desde, claro, que eu tenha acesso a hospitais particulares. Sabe como é, o SUS é ótimo, desde que seja para os outros.